O eu e o infinito

 

Cada homem tem dois corações: aquele que bate dentro do peito e um outro muito maior que é também o coração pulsante do universo. Muitos passam toda a vida tentando conectar-se com este grande coração e estão dispostos a correr riscos por ele, estão dispostos a morrer por isso… são estes os homens verdadeiramente livres.”

 

                                                                          Um analisando

A dor sem nome

Uma antiga lenda hindú fala de um tempo quando todos os homens eram deuses. Porém, os homens abusaram tanto da própria divindade que Brahama decidiu privá-los do poder divino escondendo-o onde fosse impossível encontrá-lo.

Foi assim que o Senhor dos deuses, reunido em conselho com as divindades menores, disse: “Eis aquilo que faremos com a divindade do homem: nós a esconderemos no interior do seu eu mais profundo e secreto, pois é o único lugar onde o homem não irá procurá-la.” A partir daquele momento, conclui a lenda: “o homem deu a volta ao mundo, escavou, explorou, escalou montanhas e se pôs a navegar pelos mares em busca de algo que se encontra dentro de si mesmo.”

As nossas tradições espirituais afirmam que, tal estado de “amnésia cósmica” tem início ainda antes do nascimento. Segundo as antigas tradições, o separar-se da nossa natureza divina, do nosso Eu mais profundo, é a nossa ferida existencial que lentamente se transforma numa dor indescritível – a “dor sem nome”, aquela sede insaciável de infinito – um desejo arrasador de algo que não sabemos ao certo como definir. Em muito dos seus escritos Jung descreve o desejo devastador que nos atormenta, considerando-o um impulso que segue na direção da completeza, da totalidade, elemento propulsivo do processo de individuação, a força dinâmica que tende a unir o eu e o inconsciente.

Durante os estados não ordinários de consciência, ativados por meio da respiração holotrópica, pode ocorrer a revivescência do próprio nascimento ou então do estado intra-uterino, descrito como um momento de indizível beatitude, liberdade e expansão, uma experiência oceânica daquilo que é “sem limites”. Segundo as descrições das vivências relacionadas ao momento do nascimento, a passagem pelo canal do parto é difícil e sofrida, aumentando cada vez mais a sensação de “limite” e de confinamento numa dimensão corpórea, material. O nascimento representa, portanto, um “divisor de águas” e assinala a passagem da dimensão espiritual (transpessoal) ao mundo material (pessoal).

A fonte abandonada

Em 1961, Jung enviou uma carta ao criador do “Programa dos Doze Passos,” Bill Wilson, na qual escrevia: “Em latim a palavra empregada para álcool é “spiritus”. O mesmo termo é, portanto, usado tanto para a mais elevada experiência religiosa quanto para o mais desvirtuoso dos venenos. Desse modo, uma fórmula útil é: Spiritus contra spiritum”. Jung relaciona a sede que o alcoólico tem de álcool com um anélito mais profundo da alma: o desejo arrebatador que cada ser humano tem de conhecer a sua verdadeira identidade, de transcender os próprios limites, de se unir com Deus e alcançar a totalidade. Portanto, é um sintoma bastante expressivo da demanda de um percurso interior que conduza a dimensões mais anímicas e espirituais, uma necessidade impelente de começar a se relacionar com a fonte interior. A tradição define a não satisfação desta necessidade como “inferno”. Sendo assim, o percurso espiritual poderia se revelar um valioso antídoto não somente contra a devastação do álcool, mas também contra quaisquer outras formas de dependência, drogas, sexo, jogo, comida, poder etc.

Normalmente o primeiro sonho que as pessoas portadoras de dependência trazem para dentro da análise é a representação de uma intenção inconsciente, um “pedido” de tipo espiritual.

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A transcendência

Primeiro sonho de Giacomo, 35 anos, dependente de álcool e cocaína:

 

Está subindo por uma estreita e sinuosa estrada de montanha. Quando chega ao topo da montanha, vê uma “antena radar” que aponta para o alto. Avista um rebanho de ovelhas. Um homem degola uma delas. Caminha dentro de um bosque e vê uma fonte abandonada, muito velha onde ainda há água. Vê duas crianças escondidas.

Neste primeiro sonho de  Giacomo a aspiração à transcendência se expressa por meio de imagens muito significativas. A imagem mais singular parece ser a “antena radar que aponta para o alto”, a qual denota não somente a aspiração a “alturas mais elevadas” como também o contato com uma dimensão mais sútil e diáfana da existência: a imagem da antena radar que captura as ondas invisíveis do éter. A  ovelha é tradicionalmente o animal sacrificial. Neste sonho, o homem degola a ovelha. Autocensura, sacrifício e expiação são as etapas iniciais de cada percurso espiritual. A fonte cintilante é normalmente associada a imagens paradisíacas, e uma fonte abandonada onde ainda há água é uma fonte viva que pode recomeçar a jorrar.

As duas crianças escondidas simbolizam as potencialidades do sonhador. A criança interior é síntese e promessa de tudo aquilo que ainda não somos; a criança é pensada em contraposição ao adulto que, enquanto “homem feito”, é representação daquilo que, tendo sido completado, esgotou-se sem futuro, evolução ou  novidade. Nas palavras  de J. A. Gaiarsa: “A criança interior age dentro de nós como o broto dos vegetais, como área de crescimento. É o futuro presente no presente.”

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A imanência

O primeiro sonho apresentado em terapia por Valerio, um jovem de 28 anos, dependente de álcool, revela a exigência de contato com uma dimensão primordial da existência:

 

Trabalha a madeira. É muito forte o contato das suas mãos com a “matéria-prima” que ele transforma em objetos de uso cotidiano. 

 

Nas culturas pagãs a madeira simboliza a vida em oposição à pedra que representa a morte. A busca do espírito no interior da natureza foi o motivo dominante do percurso de Valério; sendo fotógrafo profissional, Valerio contou com a ajuda da sua máquina fotográfica na busca daquilo que ele definia “o mistério primordial feito de sombras e luzes.”

No seu livro, Guarire dalla dipendenza (Curar-se da dependência), Christina Grof define alcoólicos e toxicômanos “pesquisadores espirituais”, e analisa algumas etapas dos “doze passos”, a terapia utilizada pelos Alcoólicos Anônimos no tratamento da dependência. Baseando-se, sobretudo, na sua experiência pessoal, Christina Grof traça um paralelo entre os momentos fundamentais dos percursos espirituais, na forma como foram descritos pelas várias tradições, e as etapas principais do percurso dos “doze passos” na luta contra o álcool. Estas são algumas palavras do seu relato autobiográfico:

“… Naqueles momentos eu pude ver de relance o brilho de um estado de completeza no qual cada fio da minha experiência parecia repentinamente conjugar-se aos outros: tudo parecia, então, estar em ordem, cada coisa adquiria significado… Também encontrei aquilo que eu procurava no delicioso esquecimento com o qual o álcool me brindava: os meus limites desapareciam, o sofrimento se evaporava e eu achava que estava livre… Até que o álcool se voltou contra mim” .

             A falência espiritual

O programa terapêutico utilizado pelos Alcoólicos Anônimos acredita que por trás da imperiosa vontade de álcool exista uma recôndita aspiração à transcendência, definindo como “doença da alma” o estado de quem é aflito por alguma dependência. A “falência espiritual” é o momento no qual se toca “o fundo do poço”, momento crucial que marca o limite, mas também assinala uma mudança no comportamento autodestrutivo do alcoólico.

“Para se adaptar ao nosso mundo secular a criança renuncia ao êxtase”, escreve Mallarmé. Esta renúncia causa uma imensa saudade, e como descrito nos versos poéticos e na literatura espiritual, a alma passa a ter sede de algo que é indefinível; o impulso a faz procurar contato com a dimensão mais profunda de si mesma, um movimento evolutivo na direção de uma consciência mais ampla e completa. Caso não seja ouvido, o impulso se transforma tendencialmente nos mais variados “sintomas” indo de um difuso “mal de viver” com passagens pela “perda de sentido da vida” até as suas manifestações mais extremas como, por exemplo, as várias formas de dependência de substâncias.

 Normalmente, o primeiro contato com o álcool ou com aquilo que se transformará no objeto da própria dependência, é descrito pelas pessoas que fazem uso de tais substâncias como uma espécie de “amor à primeira vista”, um “vestígio do absoluto”; seria como reencontrar algo que se procurou a vida toda; uma sensação de, finalmente, “estar em casa”. Todos nós conhecemos o sentimento de “fortalecimento” e liberdade típico do estado de embriaguês; quando estamos sóbrios, este sentimento de imbatibilidade é redimensionado e, reduzido, “se empobrece.” Às vezes o primeiro contato com o álcool ou com qualquer outro “objeto de dependência” é vivido como um momento de expansão infinita, uma verdadeira e própria experiência  “pseudomística”.

Depois do primeiro encontro com aquilo que se tornará o objeto da própria dependência, após haver experimentado o gosto de “Absoluto”, começa a grande aventura para aqueles que, buscando a expansão e liberdade através destes meios inadeguados, iniciam um percurso individual na direção do desconhecido.

À medida que cresce o envolvimento, criando a dependência da substância ou do “objeto” em questão, a pessoa enfrenta dentro de si todo tipo possível de adversidades e desafios que a levam ao extremo das suas forças até que, enfim, é obrigada a depor as armas e enfrentar a última prova: a rendição.

É necessário chegar à “falência espiritual”, tocar o “fundo do poço” para entender que a substância ou o comportamento em questão não constituem o verdadeiro objeto da própria busca. Esta consciência, todavia, exige um gesto extremo, um grau de solidão e abandono que pode ser terrificante. Somente assim, porém, será capaz, finalmente, de abrir a porta e operar uma “radiante metaformose”.

Um momento tão doloroso como este, gradual ou brusco que seja, marca o início da transformação: a passagem da experiência limitada do eu, o “pequeno eu”, a uma dimensão mais ampla, transpessoal, ao “eu profundo”. Estamos habituados a nos identificar com o nosso corpo que é limitado e existe dentro de uma realidade entendida como limitada. Quando capitulamos e “entregamos os pontos”, abandonamos as nossas defesas e tudo o mais com o que nos identificávamos até então: os nossos papéis e pensamentos; até mesmo a tranquilizadora sensação de estarmos confinados dentro de um limite bem claro, a nossa pele, é abandonada. Portanto, distanciarmo-nos do ego para nos aventurarmos no desconhecido significa dar um salto no escuro; por mais terrível que seja a sensação, o eu deve abdicar: abandonar-se ao desconhecido é assim como morrer; tal vivência de morte será mais dramática quanto mais patente tiver sido, no estágio anterior, a separação entre o eu e o não eu. O que permanece é a essência do que somos; habitamos no mesmo corpo, mas somos “inexplicavelmente novos”.

Para a filosofia oriental não há fé sem rendição, sem a plena entrega de si mesmo. A palavra budista “nirvana” quer dizer “expirar”; o significado de expirar é “se soltar”. Na tradição oriental “expirar”, “render-se” é a postura fundamental da fé.

             Somente quando adquirimos consciência de estarmos finalmente mortos para nós mesmos, o milagre acontece: encontramos-nos face a face com o infinito. Esta percepção de nós mesmos muito mais ampla conduz a uma total revisão do nosso “estar no mundo”, da relação com a vida, conosco e com os outros. Para o poeta Thomas Traherne “poderemos aproveitar a vida de forma justa… somente quando  nos tornarmos íntimos daquele nada sombrio do qual foi criado o mundo… quando o mar fluir em nossas veias, quando nos vestirmos de céus e nos coroarmos de estrelas…”

          No programa dos doze passos utilizado pelos Alcoólicos Anônimos os primeiros tres “passos” ou fases da terapia dizem respeito à perda de controle efetuado pelo eu e a aceitação da ajuda de um Poder Superior.

O terceiro passo é: “decidimos colocar a nossa vontade e a nossa vida nas mãos de Deus, em sintonia com a concepção que temos Dele.”

Segundo Aurobindo colocar-se nas mãos de Deus consiste “… numa submissão progressiva do ego e de tudo o mais que é dominado por ele, com os devidos encadeamentos pertinentes àquilo que transcende o ego, com suas imensas e incalculáveis operações regidas por uma cósmica necessidade.”

Outra definição possível desse tipo de rendição é “a morte do ego”: conceito muito usado na literatura espiritual, verdadeiro divisor de águas entre a psicologia tradicional e a transpessoal; é fácil falar da morte do ego, mas sendo este um dos estados mais perigosos, e, ao mesmo tempo mais transformativos da experiência subjetiva, experimentar tal morte é realmente assustador, pois o significado deste morrer é tanto a destruição quanto a metamorfose de tudo aquilo que acreditávamos ser. Tal evento, se assim o podemos definir, abre as portasao Eu mais profundo, ao “Poder Superior”, a “Deus, assim como nós O definimos.” Esta expressão, utilizada no programa dos Doze Passos, enfatiza a importância da experiência que cada ser humano tem com o Eu mais profundo.

O Maestro sufista Hosein Mansûr âlHallaj, na sua Qasida, assim exprime o êxtase por excelência, o grito do coração:

“É o recolhimento, sucessivamente o silêncio, em seguida é a afasia e o conhecimento, posteriormente a descoberta, depois o despojamento…

É a argila, sucessivamente o fogo, em seguida o aclaramento e o frio, posteriormente a sombra e depois o sol…

É a embriaguez, e, em seguida o desencanto, posteriormente o desejo e a aproximação, depois a união e a alegria…” 

Muitas tradições orientais consideram a mente um dos nossos maiores recursos,  mas também o nosso pior inimigo. Tais tradições descrevem a mente de forma bastante parecida com as definições ocidentais de “ego” ou “eu pequeno”. Na experiência da rendição o que morre é a parte de nós mesmos que age como se fosse o centro do universo, o protagonista absoluto no teatro da vida. Aquilo que morre é a nossa pequena, exígua identidade, o “falso eu”, deixando espaço para que se expresse e floresça tudo aquilo que, até então, estava alienado de nós mesmos. Uma nova consciência pode surgir somente se deixarmos para trás o ego com as suas seguranças, identificações, papéis etc; somente assim seremos capazes de entrar em contato com a “vida” em toda a sua força dinâmica e criadora. Esta experiência é o estado primário do processo de morte e renascimento descrito por Grof.

Um dos paradoxos da experiência de “iluminação” (ou da experiência de individuação) é que, enquanto estamos imersos na experiência, não sabemos mais quem somos; não temos identidade… somos simplesmente um “fenômeno”, um “processo”. Assim que nos definimos – o eu lentamente vai se definindo através dos confins e da repetição, por meio da ação reincidente de ser “sempre o mesmo” – nos confinamos e nos limitamos, e quando nos limitamos perdemos o estado de iluminação. Quando nos experimentamos como definição, repetição, limite, portanto como “eu”, paramos de fluir. Não somos mais um “fenômeno”, um “processo”, mas nos tornamos estrutura, “coisa”. Na linguagem da física moderna pode-se dizer que deixamos de ser  “onda” para nos transformarmos em “partícula”.

Para além do limiar

Grof considera as várias formas de dependência: álcool, substâncias, comida, sexo etc como um tipo específico de “emergência espiritual” e isso no duplo significado que a palavra emergência comporta, isto é, “perigo” e “oportunidade”, uma crise psicológica da qual se pode emergir completamente transformado. A literatura espiritual e mística do mundo todo é rica em descrições de percursos existenciais cujas etapas se assemelham bastante às experiências citadas, cuja definição se deve a Grof. Quando se compara o modelo tradicional da psique com a psicologia de Grof, nota-se que esta última, no que concerne à psique, aporta num verdadeiro progredimento; Grof afirma que, conforme aprofundamos o conhecimento que temos do inconsciente, uma vez que “adentramos”naquilo que é inaceitável em nós, seremos cada vez mais capazes de desenvolver plenamente as nossas potencialidades cujas qualidades são tipicamente humanas: o amor, a alegria, a harmonia… a compaixão. 

O confronto com “a sombra” ou, num sentido mais amplo, com tudo aquilo que foi removido da nossa existência, favorece o rompimento do dique que nos separa da nossa “nascente”. Esta represa é composta de experiências traumáticas jamais elaboradas, emoções e energia “congeladas” sem acesso à consciência. Muitas destas experiências dizem respeito a uma fase do desenvolvimento onde ainda não existia a linguagem verbal o que, por isso mesmo, as torna inacessíveis a uma forma de terapia cujo meio de expressão é a palavra.

Tanto os traumas psíquicos quanto os físicos  são mantidos na memória do corpo, codificados nos músculos, nos tecidos, nas células. Durante as experiências holotrópicas ocorre a ativação do inconsciente o que leva ao despertar da memória corporal e de experiências muito profundas não acessíveis à linguagem verbal. A reativação de experiências removidas – que são, portanto, experiências incompletas – permite a elaboração e diluição de emoções “congeladas”dandolugar, assim, à liberação da energia psíquica empregada na remoção. Assim sendo, tal processo conduz a uma maior liberdade de expressão física e psicológica, favorecendo o contato com a  dimensão mais profunda de cada um de nós. 

André, 40 anos, economista, dependente de “relacionamentos afetivos”, descreve a sua quinta experiência holotrópica da seguinte forma:

 

Os dias que antecederam à respiração

Nos dias imediatamente precedentes à sessão de “respiração”, como eu costumo dizer, a minha situação era de alguém que não achava mais a “noz dentro da casca”, ou seja, eu perdera o meu ponto de referência interna, situação que é bem descrita no hexagrama número 23 do I Ching. O Libro das Mutações, isto é,  “PO – A Desintegração, O Partir-se ao Meio.”

De forma suscinta o hexagrama diz o seguinte: acima, o Monte, o Sustar, a quietude; abaixo, a Terra, o Receptivo, a ternura e a dedicação. As forças inferiores sobrepujam  o que é nobre e forte (o meu “interno da noz”); nestas circunstâncias não é propício para o nobre (o interno da noz) dar início a qualquer tipo de realização ou projeto. Não devemos oferecer resistência diante de tais condições, mas, pelo contrário, é necessário que nos adaptemos aos tempos ruins e nos acalmemos. É estúpido se opor e é sábio submeter-se, renunciando à ação. No final, o nobre recupera a sua influência (o interno da noz refloresce mais estável do que era antes) enquanto o homem inferior se submete voluntariamente ao superior e obtém a felicidade: o mal não pode existir somente por meio da sua própria força, pois, caso contrário, não só destruiria o bem como também destruiria a si próprio.

Substancialmente, quando alguém espera e tem confiança, o tempo pleno avança, substituindo o tempo vazio.

Disposto, portanto, a aguardar, dei início à minha respiração:

Durante os exercícios preparatórios para a sessão “de respiração” me foi dito para imaginar, para sentir que eu era “alguma coisa”, uma planta, uma flor, um pássaro etc; em seguida, eu devia representá-lo com o corpo. Visualizei imediatamente uma cruz, e me representei fisicamente desta forma (ainda não sabia o significado daquela cruz, mas agora sei que a cruz foi um prelúdio do que aconteceria depois, durante a respiração.)

A respiração  começou e prosseguiu sem especial enrijecimento articulatório, e, diferentemente das respirações anteriores (quatro), não senti dores no estômago. A única dor física foi um travamento na panturrilha esquerda (de fato, é a panturrilha que nos permite caminhar: de qual situação estou querendo sair, e aonde quero ir? O que me impede de fazê-lo? Há efetivamente na minha vida uma situação da qual eu desejo sair, pois não me agrada).

Inicialmente, como me havia sido sugerido, mantive o ritmo respiratório mais forte e veloz do que o normal. Sucessivamente, porém, percebi que diminuindo o ritmo quase ao ponto de pegar no sono, eu conseguia sentir mais profundamente o meu interior; desse modo, podia me conectar melhor com aquela coisa à qual, inconscientemente, eu desejava chegar.

Alguns minutos depois do início da respiração, visualizei diante de mim um grande buraco negro, o qual, porém, eu sabia, devia esconder algo muito mais luminoso e atraente, e uma vez lá dentro, poderia sair facilmente. Eu queria muito entrar naquele aparente buraco negro!

 A música foi particularmente importante para mim nesta sessão, realmente um grande auxílio; da mesma forma que, nas ocasiões anteriores, me ajudara bastante o fato de ter sentido dor física. Desta forma, ninado pela música, meus movimentos foram se transformando numa dança tribal; sentindo que eu era um selvagem nu, chefe de uma tribo, eu danço na floresta virgem junto a outros membros da tribo. A dança era propiciatória de alguma coisa maior, de divino, de sobrenatural.

Quando a dança terminou, senti necessidade de um contato direto com a terra, e então, me deitei diretamente no chão (de madeira, por sorte!), de barriga para baixo, com o rosto voltado para o chão e com os braços totalmente abertos fazendo com que o meu corpo tomasse a forma de uma cruz – como fazem os sacerdotes quando recebem os votos, e, deitando-se diante do altar, formam uma cruz com o próprio corpo. “Eu confio. Tenho muita confiança como jamais tive durante toda a minha vida; o sentimento de me abandonar, de me entregar, é muito bom, realmente ótimo.” (quem me dera, na minha vida diária, eu pudesse contar com tamanha confiança em mim mesmo!)

De repente desatei a chorar; era um choro doído, de laceração interior. Eu sentia que havia algo confinado no buraco negro, uma entidade que não queria me deixar entrar; e assim eu repetia com voz arrasada: Por quê? Por que não quer me deixar entrar?Por que não quer que eu entre? Por quê? Por quê? Por quêêêêê?

Esperava um nutrimento que vinha do alto. Não sabia quando seria o momento oportuno e precisava aguardar. Esperava com paciência, sem me agitar, pelo contrário, procurava ficar o mais calmo possível. Sendo assim, diminui ao máximo a respiração e o ritmo (contrariamente às regras que recebera) quase ao ponto de dormir. Dentro de mim tinha certeza que chegaria ao final. “Perseverança!” _ eu dizia _ “perseverança!”

De repente, um dos assistentes me estende a mão, acho que talvez os meus gestos o levem a presumir que eu queira alguém ao meu lado. Mas isso não é verdade e eu o rechaço porque quero ficar SOZINHO no ENCONTRO!

Inesperadamente o buraco preto se tornou um grande círculo branco diante de mim. Eu me pus a repetir ininterruptamente, gritando com voz pungente e pranto desesperado: “Me deixe entrar, por favor, eu imploro, me deixe entrar!”

Repentinamente o anel branco, mesmo permanecendo inteiro, se abre em dois (como no episódio bíblico sobre Moisés e a passagem pelo Mar Vermelho); das suas margens, começa a jorrar água em abundância, água branca matizada de azul celeste, e na parte superior do centro, no cume interno do círculo, surge – como preanunciada pelas quedas d’água – uma luz branca, linda! Sinto que a luz me quer. “Sim! É a Luz aceitante, o Bem Absoluto, o Absoluto, o EU originário, o UM originário que me ama incondicionalmente. Finalmente, finalmente! Sou aceito pela Luz! A Luz aceitante me quer! Do jeito que eu sou! Me sinto totalmente amado por Ele! Sou como os outros! Também o meu corpo físico lhe agrada!” (e de fato começo, com alegria, a tocar o meu corpo comprazendo-me disso –  na vida, pelo contrário, não gosto nem um pouco de mim!)

Em agradecimento à Luz, começo a rezar com as mãos unidas. E enquanto eu rezo, choro, mas agora é um pranto de alegria e serenidade, porque a Luz me aceitou.

Suspendo a parte superior do meu corpo e abro totalmente os braços na lateral, formando mais uma vez a imagem da cruz, como para me unir até o fim com a Luz aceitante. Depois, como faz a criança que, sentada no chão, tende as mãos na direção de alguém maior diante de si, eu também estendi os braços na direção da Luz para permanecer no seu fluxo radiante! Solicitei a intervenção do meu assistente para que se colocasse fisicamente diante de mim, de pé, com as pernas levemente divaricadas, e, com os  braços estendidos, segurasse as minhas mãos. Sim, as “pernas divaricadas”, como a lembrar  uma vagina, porque eu sentia uma profunda necessidade, a exigência de reviver o nascimento, o momento da expulsão! Mas, talvez por acanhamento, não consegui, e hoje, à distância de algum tempo, sinto tremendamente ter traído a experiência (ou ao menos uma parte dela), ter traído a mim mesmo; perdi a ocasião!

Cai novamente no chão; de novo assumi a forma de cruz enquanto, lentamente, o círculo branco se retraia: porém, o desaparecimento do círculo não me assustava, porque agora o Bem Absoluto estava comigo, o EU originário estava dentro de mim. E eu conhecia a verdade!

No final da sessão havia um radioso sentimento de cordialidade, de comunhão com o mundo todo. E para concretizar tudo aquilo com que o Absoluto tinha me presenteado, eu quis um contato físico com o meu assistente (o qual, porém, naquele momento não se encontrava perto de mim: paciência! – eu disse).

 

Sonho do dia seguinte à respiração.

Tenho um par de sapatos novos, feitos à mão, muito cômodos que não me machucam os pés quando eu caminho.

 

Os dias seguintes à respiração…

Um sentimento de masculinidade, do qual na vida eu sinto absolutamente falta, me acompanhou por vários dias após a respiração. Depois desapareceu.

Agora procuro deixar fluir a rejeição, sem me travar mais nela, e como faz um homem sentado na beira de um rio de montanha, espero.

Nos momentos de dificuldade extrema, quando parece que o sentimento de masculinidade me abandone, quando a aridez interna é máxima, quando a solidão e a dor se fazem insuportáveis, então procuro conectar-me com a minha nascente interior. Nos momentos de profunda solidão e dor eu me dirijo, como única âncora de salvação, àquele “ser sozinho no encontro.” 

 

Esta experiência conduziu André à solução de um conflito cuja temática emotiva dominante era definida por ele como “a rejeição com R maiúsculo”. Tais temáticas psíquicasde base, dotadas de forte carga emotiva, foram chamadas por Grof de “Coex” ou sistemas de experiência condensada; elas são consideradas os princípios ordinatórios gerais da psique humana, conceito que pode ser comparado aos “complexos” junguianos.

Para Stanislav e Christina Grof, as várias formas de dependência: álcool, substâncias, comida, sexo, poder etc são a manifestação irrefutável e exasperada da dor profunda, ínsita na natureza humana, ou seja, a “separação”. Esse mal-estar, descrito no famoso livro de Aldous Huxley intitulado “A Filosofia Perene” (uma síntese das nossas tradições espirituais), é particularmente exacerbado no atual momento transformativo-evolutivo da humanidade em geral. 

A técnica terapêutica proposta por Grof, bem como outros métodos empregados no âmbito transpessoal, é, em chave moderna, o ato de reelaborar antigos meios de autoexploração experiencial, sugeridos e indicados pelas nossas tradições espirituais; o escopo de tal técnica é sempre o mesmo: abrir uma passagem, ou melhor, construir uma ponte entre a nossa identidade pessoal e o eu mais profundo.

Na nossa cultura não existem estruturas oficiais que nos possibilitem vivenciar profundas experiências emotivas; caso houvesse, poderia satisfazer a nossa necessidade de transcendência e compensar o unilateralismo que é típico do mundo em que vivemos. O tema da espiritualidade normalmente suscita certa desconfiança, sendo considerado até mesmo um assunto embaraçante ou, em todo caso, não apropriado a certos contextos. No entanto, tal exigência se faz sentir de forma cada vez mais proeminente por meio de uma verdadeira e própria explosão de transcendência reprimida e uma série de  “sintomas” individuais e coletivos.

Ao se tratarem as várias formas de dependência, se não for dada a devida importância à necessidade de transcendência, todas as abordagens terapêuticas utilizadas resultarão redutivas e inadequadas. Não é possível obter a cura por meio do “spiritus contra spiritum” se a exigência espiritual não for satisfeita, o que não significa a aprendizagem ou a prática de uma crença religiosa. Faz-se necessário um encontro direto com o “Mistério”, com a força espiritual, uma imersão nas profundezas do nosso mundo interior.

De forma bastante frequente, poetas e pesquisadores espirituais lançam mão da metáfora da fome e da sede para expressar esta aspiração da alma a qual, uma vez satisfeita, conduz a um maior equilíbrio e bem-estar o que faz emergir as nossas potencialidades. Mesmo as práticas espirituais muito distantes da nossa cultura normalmente oferecem uma “via que nutre e exercita o coração”; uma porta de acesso à profundidade do ânimo humano. Já há algum tempo é possível observar uma retomada de interesse pelas antigas práticas espirituais; esse despertar de interesse resgata práticas que, por séculos, haviam sido relegadas à obscuridade como é o caso dos diferentes tipos de yoga, do xamanismo, do sufismo, da meditação taoísta etc.

O centauro

 

Depois de um longo período de cisão da nossa matéria corpórea – separação bastante típica na nossa cultura, onde o corpo é normalmente “demonizado” – há uma tendência global, coletiva, de retorno à natureza e à terra. No âmbito psicoterapêutico tal propensão se expressa pela necessidade de “encarnação”, de retorno à corporeidade. A terapia reichiana, a bioenérgetica, a “primal therapy”, a respiração holotrópica etc., são exemplos deste retorno ao mundo corpóreo no âmbito psicoterapêutico. 

Segundo a perspectiva transpessoal da evolução humana, o corpo, a pessoa, a sombra, o ego, todos, enfim, podem ser absorvidos numa integração de ordem superior. Tal fase é definida por Ken Wilber como “O centauro”; o eu integrado – onde mente e corpo formam uma harmoniosa unidade. Na psicologia ocidental ortodoxa, a figura mitológica do Centauro representa a perfeita integração mente-corpo correspondendo à fase “mais  alta” que se possa almejar.

Na visão evolutiva de Wilber sobre a psique, uma vez superada esta etapa (a etapa do centauro), pode ocorrer elevação da consciência até dimensões mais etéreas e espirituais; a elevação segue na direção das esferas transpessoais da psique, definidas como diáfana e causal, que são uma natural extensão da sua função transcendente. O “super self”  “incorpora a transcendência de todas as formas mentais e revela, no seu ponto mais alto, a intuição Daquele que está acima e antes da mente, do eu, do mundo e do corpo: algo que, como diria São Tomás de Aquino, todos os homens sempre chamaram de Deus. O qual, porém, não é Deus como um outro ontológico, separado do cosmo, dos homens e em geral da criação. É mais um Deus como o vértice arquetípico da própria consciência.

Para Wilber e Aurobindo “super self”ou “super mente” são os aspectos da dimensão diáfana e causal da consciência que se diferenciaram da mente e do eu comum. Da mesma forma que o ego seria um super instinto ou super corpo porque transcende e supera as simples sensações perceptivas.

A experiência do divino, ou melhor, “do vértice arquetípico da própria consciência” ou “Eu profundo”, não faz parte somente da literatura  mística espiritual pertencente a obscuras tradições e tempos distantes. Hoje, este tipo de experiência subjetiva é objeto de estudo no campo psicológico e não sofre dos preconceitos e tabus conferidos normalmente aos temas ligados à espiritualidade.

Graças à contribuição da física moderna e das novas pesquisas sobre a consciência, a psicologia transpessoal livrou-se do véu que cobria tal experiência e inseriu a espiritualidade na psicologia; o contrário também poderia ser dito: introduziu a psicologia na espiritualidade. Nas últimas décadas, através do aprofundamento e do embasamento teórico dos seus máximos expoentes, Grof, Maslow, Assagioli, Wilber etc… psicologia e espiritualidade se integraram de forma mais ampla;  hoje, é grande o número de pessoas que pode descrever a experiência de um encontro com o “mysterium tremendum”, descrito por Rudolf Otto, ou com o “spiritus” junguiano. Não se trata somente do “Spiritus contra Spiritum”, sugerido por Jung nos casos de dependência do álcool, mas sim do spiritus contra o mal de viver, o vazio, a perda de sentido e valores, a sede de poder e o desespero, um antídoto curativo neste momento específico da nossa aventura humana. 

O retorno

 

Nos percursos iniciáticos das várias culturas – descritos, entre outros, por Campbell e Eliade – assim como na viagem do herói que se aventura por territórios insidiosos e desconhecidos, há sempre um momento crucial: o retorno que se faz daquela “outra” dimensão à vida de todos os dias, à vida mundana e comum. Mas, a verdadeira descoberta, o tesouro resgatado, ocorre quando o herói se dá conta que, “na verdade, os dois reinos são um só”. O mundo dos deuses era somente uma dimensão ocultada do mundo em que vivemos.

Uma vez defrontado o inimigo dentro de si, o desconhecido, abre-se para o herói uma nova modalidade existencial que C. Grof define como “a experiência divina de viver como seres humanos” e que lhe garante o direito de cidadania no mundo interior. O tesouro do herói é esta descoberta e este direito: viver no reino de Deus aqui e agora. Normalmente as nossas superestruturas e couraças nos encarceram numa falsa identidade e não nos permitem perceber que o “além” ou o infinito podem estar contidos neste mundo e em cada momento da existência.