Candomblé

 

África, Brasil, Cristianismo e Pagelismo (a religião dos índios nativos do Brasil) produziram um sincretismo único, o Candomblè, cujo elemento central é a possessão do crente pelas divindades. O mundo celestial não é distante nem inacessível e o crente pode falar directamente com os deuses, sendo “montado” pelo seu Deus, possuído. A vida após a morte e o mundo terreno são confundidos no Candomblè, os deuses e os mortos misturam-se com os vivos numa atmosfera rarefeita com muitas faces.

No Candomblè da Bahia o transe é considerado sagrado e tem um carácter de perfeita autenticidade mesmo que seja difícil para o observador externo aceitar a definição com que é apresentado: a de um “Orixà” ancestral que regressa à terra para reencarnar por um momento no corpo de um dos seus descendentes.

A prática do transe de possessão não é orientada com base em critérios “bons” ou “maus”, mas na capacidade e técnica de utilização e transformação das forças psico-espirituais.

O crente que será então iniciado no culto da possessão será aquele que por um sinal de nascimento, um acontecimento extraordinário ou a descoberta de um objeto significativo, um sonho ou uma “doença” é reconhecido como aquele que foi chamado a servir como “cavalo” ao seu Deus.

Candomblé, umbanda, santeria

por Virginia Salles, Roma

 

 

Abram alas dottores da ciência! Pois voçês nos roubaram a chave da sabedoria: vocês próprios não entram, e dificultam a entrada de quem està querendo entrar.

 

 

(Vozes do povo da Umbanda)

 

 

As religiões dos povos africanos transportados pelos escravos para a América do Sul e Central sincretizaram-se com o catolicismo, com a religião dos nativos, os índios (pagelismo) e mais tarde com o espiritualismo de Allan Kardec. Esta convergência de diferentes ritos teve um desenvolvimento fecundo, dando origem ao que hoje é o Candomblé na Bahia, Umbanda principalmente no Rio, Santeria em Cuba e outras denominações diferentes em outros lugares.

A principal característica, comum aos diferentes tipos de culto, é a possessão por parte da divindade. O

Deus toma posse do crente, usando-o como instrumento de comunicação com os mortais: o crente é “montado”, possuído pelo seu

Deus(orixá), comunica diretamente com os poderes celestiais, recebe conselhos e graças. Nas casas de culto da Bahia, Rio ou Havana, o mundo divino não está nem longe nem no alto: os deuses e os mortos misturam-se com os vivos, os dois mundos se confundem no ritual numa atmosfera rarefeita com múltiplas faces.

Tudo o que emerge durante o transe da possessão é imagem e símbolo, e è tão carregado daquele “algo mais” que permeia cada gesto ritual e ressoa profundamente na alma do espectador. No interior dos terreiros[1], numa atmosfera solene, figuras fantásticas movem-se e dançam ao som dos tambores: Oxossi, deus vivo e impetuoso da caça move-se orgulhosamente carregando um arco e flecha; Ogun, deus de ferro, com um ar altivo segura uma espada e parece desafiar alguém para um duelo; Omolu, o deus das doenças, com um capuz de palha que o cobre quase por completo, caminha curvo como um homem velho e sofre de dores; Oxumaré, o arco-íris, transporta uma serpente de ferro forjada e aponta com a mão   para o céu e a terra; Xangô, deus fálico vigoroso e devastador, controla relâmpagos e tempestades. Ossain, mestre das folhas, conhece todos os segredos e propriedades medicinais das plantas. As Orixás femininas desfilam uma após outra com gestos graciosos: Iemanjá, senhora e rainha das águas; Iansã, de sensualidade desenfreada, é ela que domina os mortos; Oxum, deusa infantil, divindade dos rios e riachos e Nanã Buruku, rainha dos pântanos, calma e benevolente. 

 

 

O candomblé[2], ao contrário do que parece, não é uma religião politeísta: existe apenas um

Deus supremo, criador do mundo e senhor do céu, Olorum. Ele é um

Deus “ocioso”: depois de ter criado o céu e a terra, êle  não mais interferiu na sua criação. O seu filho Oxalá, uma divindade andrógina, a mais venerada entre os Orixás, criou os seres humanos, moldou-os com barro e colocou-os no forno: de acordo com o tempo em que foram cozinhados, surgiram cores diferentes e, por conseguinte, raças diferentes. Intermediários entre  Olorun e os seres humanos, os orixás representam todas as forças arquetípicas que governam o mundo: fazem cair a chuva, desencadeiam tempestades e relâmpagos, reinam sobre a água doce ou salgada, bem como sobre os assuntos humanos. Cada orixá está ligado a uma determinada cor, planta, alimento, eventos significativos, fenómenos meteorológicos, tempo e espaço. No famoso mito africano da Deusa Mãe, os 16 orixás principais nascem do ventre de Iemanjá, a deusa do mar, que cai e morre ao escapar do amor incestuoso do seu filho Orungan, o Édipo africano.

Se penetrarmos cada vez mais intimamente no mundo dos mitos e lendas que deram origem aos ritos afro-latino-americanos, podemos compreender a essência profunda e a génese do drama cósmico, “o drama da ruptura”, a partir do qual o ritual toma forma: para subir cada vez mais alto, o céu se separou da terra e o ser humano perdeu assim a sua integridade e completude. Através do impulso místico, que é o fundamento dos ritos de possessão, o ser humano tende para a “conjunção de opostos”, a redescoberta da união perdida entre céu e terra, os princípios masculino e feminino.

O mito original da criação dos iorubás[3] diz que o casal primordial divino é formado pelo céu (Obatala) e pela terra (Odudua). Da união destas duas divindades nasceram a abóbada celeste e a terra fertilizada. Esta união é simbolicamente representada por duas meias cabaças fechadas uma em cima da outra. 

O Templo é a imagem refletida do cosmos e a pau/coluna central representa o elemento fecundante da união sexual entre o céu e a terra. Quando os orixás dançam, encarnados nos corpos das filhas em torno do pau/coluna central do terreiro, o mundo terreno reúne-se com o mundo sobrenatural, o lar dos deuses. O lugar de culto torna-se então a imagem do próprio mundo: o chão é a terra, o telhado é o céu e no meio os orixás mímam com a dança a vida pulsante dos elementos da natureza: a correnteza (Oxum), a força das tempestades (Iansã), os relâmpagos (Xangô), as ondas do mar (Iemanjá), as doenças (Omolú), os ofícios humanos: os caçadores (Oxossi) e os ferreiros (Ogun). Através do ritual, o mundo inteiro na sua verdadeira essência é reconstruído dentro do terreiro: a sua realidade mística é assim eternamente recriada através de uma união sexual que não tem fim, simbolizada pelo pau/coluna central. O casamento do céu com a terra sustenta então o mundo inteiro, encerrado nas duas meias cabaças e tornado eterno através da harmonia redescoberta de todas as forças da natureza. 

No Candomblé, muitas coisas diferentes estão unidas pelo fato de serem repositórios da “força sagrada”, com tambèm os objetos usados durante os rituais, a comida oferecida aos deuses, as ervas usadas no

pégi[4], nos banhos dos iniciados ou para fins medicinais. Esta força sagrada, chamada axé, é a força invisível, mágica de cada divindade, de cada ser animado e de todas as coisas; é a correspondente da “mana” polinésiano ou daquilo que na língua árabe é chamado “baraka”. O sangue é considerado o axè de tudo o que vive e é através de sacrifícios e banhos de sangue que se estabelecem, no mundo africano, todas as trocas de forças, as “participações místicas”, as relações entre objetos, seres humanos e orixás. O axé é o fundamento místico do candomblé.

 

Antes da descida dos orixás entre os mortais, cada lugar de culto deve ser sacralizado através da cerimónia do “enterro do axé”: numa cavidade escavada sob o pau/coluna central, um líquido contendo um pouco do sangue de todos os animais sacrificados (cada divindade tem os seus animais preferidos) e um pouco de todas as ervas pertencentes aos diferentes orixás é ali derramado e enterrado. Só então o terreiro estará pronto para acolher a presença divina. 

Caminhando pelas ruas da Bahia, encontramos frequentemente aves mortas, geralmente de cor preta, em cruzamentos ou em locais isolados, juntamente com alguns tipos de cereais, moedas, charutos ou folhas de tabaco, garrafas de aguardente[5]. Estes são os restos de sacrifícios feitos a Exú (ebó), ou de um padé[6] jogados para fora do terreiro. 

Algumas pessoas afastam-se destes “despachos”[7], temendo que a sua força mística (axé) ainda possa pulsar naqueles corpos sem vida ou de serem atingidos por alguma vingança ou castigo divino.

Exú, o mensageiro celestial, juntamente com Ifá, o oráculo, são duas entidades inseparáveis em todos os cultos de origem africana. Seres intermediários entre as divindades e os homens,

Ifà, que traz a palavra das divindades aos homens, está numa posição mais prestigiosa do que

Exú, que transmite os desejos dos homens às divindades. A palavra de Ifá é interpretada a partir da posição de oito ou dezasseis conchas lançadas pelo Obaluaê (adivinho) cuja principal qualidade é a intuição: ser capaz de perceber para além da máscara e das armadilhas sociais, a verdadeira personalidade profunda, daqueles que o consultam.

Exú– que foi erroneamente comparado ao diabo pelos missionários devido à sua astúcia e erotismo – é o “governador do caos”, o elemento dialético do Cosmos: abre a porta aos acontecimentos, traça os caminhos individuais, indica o destino dos homens, decide os sacrifícios necessários para remover os obstáculos. É a êle que se deve dirigir para comunicar com qualquer divindade e é sempre a êle que se deve pedir permissão antes de iniciar qualquer cerimónia. Ambigüidades, brincadeiras, desonestidade e indecências caracterizam-no, mas estas ambiguidades e incoerências acabam por ser, após observação mais atenta, precisamente o elemento dinâmico e propulsivo do contexto ritual.

Exú poderia ser comparado ao mercúrio na alquimia, ao Hermes na tradição grega, à serpente bíblica.

Em todo o Brasil acredita-se que cada pessoa é filha de um orixá, mas apenas algumas pessoas têm o privilégio de serem “montadas” (possuídas, incorporadas) por estas divindades. Na maioria dos casos, os “escolhidos” são do sexo feminino e são chamados “filhas de Santo” ou “élégun” e necessitam de um longo período de iniciação. Outros crentes prestam homenagem de diferentes maneiras à sua divindade. O crente que será então iniciado no culto de possessão é aquele que por um acontecimento extraordinário na sua vida, um sinal de nascimento, um sonho particularmente significativo, ou mesmo certos tipos de “doenças”, é reconhecido como aquele que foi “chamado” à iniciação, chamado a servir como um “cavalo” ao seu Deus.

Tristeza sem motivação, medos irracionais, visões, alucinações, ou “possessão selvagem”, sintomas que na nossa cultura são diagnosticados como neurose, psicose, ou esquizofrenia, estão entre as “doenças” que marcam a chamada. Na “possessão selvagem” perde-se a identidade “profana” (colapso do “eu”) e o crente assume, fora de um contexto ritual, a identidade de um

Deus e o comportamento correspondente (irrupção do inconsciente).

 Uma vez preparadas as vestes sacerdotais, o iniciado, que nos contexto do Candomblé é chamado iaô, deve atravessar “a floresta da morte”, um período de isolamento que dura 17 dias. É um período de suspensão, envolvido no mais profundo silêncio, que simboliza um momento de transição entre a antiga existência profana e o além, a passagem para uma nova vida consagrada a Deus: “banhos de folhas” ao ar livre, uma dieta feita de infusões (também com as folhas preferidas pelo Deus), aprendizado dos cantos do Orixá, reconhecimento os sons do tambor particular do seu Deus e a depilação total dos pêlos do corpo – um sinal de submissão e entrada na nova vida dedicada a Deus – são alguns momentos significativos da viagem iniciática.

O momento cardinal do rito de iniciação é o batismo de sangue. Para cada iniciado os animais preferidos do Orixá são sacrificados (galos, cordeiros, pombas, cães, tartarugas, etc…) e o sangue é derramado na cabeça do iaô e na pedra do Orixá, estabelecendo assim a ligação entre o iniciado e o seu Deus. O tema do sacrifício e da morte como transformação foi amplamente estudado pela psicologia de Jung: é através do sangue, símbolo da vida e de morte, através de uma morte simbólica, que se abre o caminho de acesso à divindade e o próprio sangue representa o alimento da nova e mais profunda personalidade.

Os diferentes rituais que têm lugar durante a iniciação, “alimentar a cabeça”, lavar o colar, tomar banho ao ar livre, etc., favorecem uma participação cada vez mais profunda dos fiéis na natureza e força dos orixás e, consequentemente, a aquisição de uma capacidade cada vez maior de “existir”. Este aumento do próprio Ser manifesta-se na vida como boa sorte, saúde, prosperidade. A boa ou má sorte no mundo africano é a consequência da maior ou menor intensidade da participação do homem no Ser da divindade. O mal, de acordo com este conceito, é uma diminuição do

Ser, uma “perda de força”, dessa força primordial que só pode ser adquirida através da participação íntima na essência dos orixás.

Uma das mudanças mais profundas que tiveram lugar nos ritos de possessão nas últimas décadas foi a sua universalização: a abertura a pessoas de origem não africana e a passagem de uma religião étnica para uma religião para todos. A versão cubana do sincretismo afro-sul-americano chama-se “Santeria”, um termo depreciativo utilizado pelos espanhóis para escarnecer dos adoradores do orixás che, aos olhos dos seus colonizadores, apareciam excessivamente dedicado aos santos, sem compreender o papel do Deus principal: o Deus católico. Mais uma vez, uma expressão de etnocentrismo particularmente evidente nesses tempos e lugares e ainda hoje em vigor em alguns contextos culturais.

Na variação do sincretismo, principalmente do Rio de Janeiro, chamado Umbanda, a influência do pensamento de Allan Kardec é sentida dentro do culto através de uma atenção particular à sobrevivência do espírito após a morte: é dada muita importância ao aspecto mediúnico do rito e à reencarnação, bem como à existência de diferentes níveis de consciência espiritual: a vida é entendida como uma oportunidade de evolução para atingir uma perfeição cada vez maior.

 

Virginia Salles

 

 


 

 

 


[1] Luogo di culto delle religioni afrobrasiliane

[2] In questo scritto faccio particolare riferimento al candomblè  in quanto, per esperienza personale, è la religione a me più vicina.

[3] Originaria popolazione africana.

[4] Santuario del candomblé.

[5] Un bevanda alcolica molto forte.

[6] Il padé di Exú è un rito propiziatorio che dà inizio ai rituali del candomblé.

[7] Un altro nome per il padé di Exú.