Virginia Salles (estrato)
Roma
Visões de demónios, deuses, seres mitológicos. Experiências de outros períodos históricos e lugares distantes. Correntes de energia que correm pelo corpo acompanhadas de tremores e espasmos. Visões de luzes deslumbrantes de esplendor e beleza sobrenaturais, arco-íris, cometas… Perder-se no nada e unir-se num abraço com todo o universo. Pânico, medo de enlouquecer ou morrer.
Uma pessoa que experimenta fenómenos mentais e físicos de tal intensidade seria, na nossa cultura, imediatamente diagnosticada como psicótica. No entanto, de acordo com os estudos e pesquisas realizados por Stanislav Grof e outros expoentes da psicologia transpessoal, nas últimas décadas um número crescente de pessoas tem tido experiências tão fora do comum e, em vez de cair desesperadamente na loucura, emergem destes estados mentais extraordinários “renascidos” em comparação com antes: renascidos no sentido de terem adquirido maior consciência, maior bem-estar psicofísico, uma forma diferente de se relacionarem com o mundo e com os outros. Em alguns casos, este tipo de experiência marca o início de uma verdadeira viagem espiritual semelhante àquelas descritas pelas tradições religiosas em todo o mundo.
A psiquiatria tradicional não faz distinção entre a psicose e o misticismo, mesmo que nos últimos anos “perturbações psíquicas ligadas a uma crise espiritual” estão começando a ser oficialmente reconhecidas. No entanto, ainda é muito difícil fazer corresponder os sintomas dos pacientes com as categorias diagnósticas oficiais. Assim, os estados de consciência não comuns são ainda, na maioria dos casos, tratados como se fossem doenças mentais.
Quando uma pessoa passa por uma destas “crises evolutivas”, o uso de medidas repressivas como as tradicionais, o uso indiscriminado de psicofarmacos ou definições em termos de “patologia”, comprometem seriamente o potencial evolutivo deste processo autónomo de auto-cura psíquica. Em contraste com o que acontece em situações, infelizmente muito raras, em que a crise evolutiva é apoiada, compreendida e deixada livre para seguir o seu curso natural, permitindo assim àqueles que a vivem tirar proveito do potencial evolutivo intrínseco à natureza humana.
Grof chamou a estes estados de consciência “emergências espirituais”, sublinhando assim o duplo aspecto inerente à mesma palavra “crise”, que na língua chinesa significa “perigo” e “oportunidade”. Através da experiência derivada dos seus 40 anos de pesquisa e observação de estados de consciência não habituais induzidos por vários meios em si e nos outros, Grof acredita que o conhecimento atual da psique humana é superficial e inadequado para explicar estes fenómenos.
O primeiro psicólogo transpessoal foi Jung que, investigando as profundezas da alma humana, encontrou “algo” numa pessoa que vai além de si próprio, “algo” que não pertence ao indivíduo mas ao coletivo, ao transcendente, ao trans-pessoal. Em certo sentido, ele redefiniu numa chave psicológica a antiga ideia do Divino dentro de cada homem. Jung foi o primeiro psicólogo que lançou uma ponte entre a psicologia ocidental e os níveis de consciência propostos pelos grandes sistemas psicológicos orientais.
Mas foi o trabalho pioneiro de Grof que alargou a cartografia do inconsciente e forneceu elementos valiosos para a diagnóse diferencial da psicopatologia e para a colocação da experiência de estados não habituais de consciencia dentro de uma visão mais ampla e evolutiva da consciência.
Alguns estados que as categorias diagnósticas oficiais consideram como manifestações de doença mental são na realidade expressões de um processo autónomo de transformação e auto-cura da psique e do corpo e da tensão evolutiva para um estado de consciência mais elevado. A exploração do potencial terapêutico de tais estados e o consequente desafio teórico que esta nova visão propõe estão no cerne da psicologia transpessoal.
Em 1980 Grof, juntamente com a sua esposa Cristina, criou a Rede de Emergências Espirituais (S.E.N.) em resposta à crescente necessidade de reconhecimento, apoio e informação para aqueles que passam por uma emergência espiritual, como alternativa ao sistema psiquiátrico tradicional. Um dos principais serviços oferecidos pela S.E.N. é a formação de pessoal capaz de apoiar e compreender experiências emocionais de grande intensidade, de ouvir e apoiar aqueles que recorrem a esta estrutura e de recolher sempre novo material de estudo e histórias pessoais. Um elemento importante desta nova abordagem é a decisão sobre o tratamento indicado num determinado caso: a utilização de estratégias de psicologia transpessoal ou tratamento médico convencional…. É necessário um exame clínico minucioso.
Outra contribuição revolucionária para a compreensão da psicose é o trabalho de John Weir Perry, um pioneiro que se especializou na psicoterapia de pessoas psicóticas. Perry vê nesta desordem psicológica a luta do espírito humano para se libertar da prisão das estruturas mentais convencionais, um nascimento-morte do ponto de vista psicológico, que ele considera uma etapa importante no desenvolvimento da consciência humana tanto individual como coletivo. O núcleo desta ativação e energia é o arquétipo do Centro, definido “Self” por Jung e representado pela quadratura do círculo e da mandala.
Perry também deu grandes passos na abordagem terapêutica aos pacientes durante os primeiros episódios psicóticos agudos. Estes são encorajados a processar as suas experiências emocionais sem o efeito atenuante dos psicofarmacos num contexto em que qualquer forma de “rótulo” ou definição em termos de psicopatologia é abolido. Um contexto emocionalmente acolhedor no âmbito de relações interpessoais intensas, o que favorece o processo de cura psicológica.
Hoje em dia, um número crescente de pessoas é capaz de dar conta da experiência da “loucura” que atraversaram. A “loucura” não significa necessariamente uma queda no vazio e na escuridão, mas pode representar um momento de viragem existencial, de libertação e de renovação. Mas pode também transformar-se no início da exclusão do mundo, da escravidão e da morte existencial.