Pecados e virtudes na era da globalização

 

Virginia Salles, Roma

 

Todos os deuses estão mortos. 

                                                                                                              (Nietzsche)

 

                                                                                        

                                                                                            Chamado ou não, Deus estará presente. 

                                                                                                (Epígrafe na porta da casa de Jung)

 Do Céu à Terra

Nos tempos modernos o foco do nosso deslumbramento e da nossa busca cognitiva foi deslocado radicalmente; trata-se de uma verdadeira queda do Céu à Terra che trouxe luz ao mundo escuro da matéria e obscuridadeonde, no passado, havia luz espiritual. Os antigos deuses não puderam escapar das lentes do telescópio e dos raios “x”; é compreensível, portanto, que também eles, juntamente com um vasto e precioso patrimônio de símbolos, tenham sofrido uma queda vertiginosa. 

Não mais o além-mundo com o fascínio de suas altas montanhas ou com os milagres das esferas celestiais a nos indicar o caminho, nem o mundo mineral com os seus mistérios alquímicos ou, tão pouco, os espíritos dos animais. Num certo sentido, iluminados pela ciência e pela psicanálise nos libertamos da grossarede que nos mantinha presos às tradições religiosas. Contudo, acredito que da mesma forma como nos libertamos de tal enredamento, seja também importante, hoje mais do que nunca, que nos libertemos do desejo de cancelar tais tradições de forma absoluta. O problema atualmente mais significativo não é saber se Deus está morto; bem mais relevante é, ao contrário, saber se o homem ainda está vivo e é passível de evolução. Hoje, cada autêntica busca da verdade e de conhecimento não pode renunciar ao mergulho nos sombrios abismos interiores – que representam para nós a própria fonte da vida e que chamamos de “o inconsciente”. A última esperança parece agora ser confiada aos recantos mais profundos e interiores do homem, tendo se tornado, ele próprio, nos dias de hoje, o verdadeiro objeto da nossa busca cognitiva. O último mistério. O homem é, atualmente, o mistério crucial do nosso tempo. 

De forma conjunta, tanto a mudança de foco na nossa busca – que se move agora na direção das profundezas do ser humano – quanto a atração cada vez maior que o homem moderno tem pelo seu próprio lado obscuro pretendem de nós “alguma coisa” que não pode ser ignorada. Não sabemos exatamente qual seja a sua natureza, assim como não sabemos em qual direção se mova e menos ainda através de quais forças o faça. O próprio Significado da busca também é algo absolutamente inconsciente.

Neste percurso de conhecimento não é a sociedade que deve guiar e salvar o indivíduo, mas, como defende Erich Neumann, deve ocorrer exatamente o contrário: o indivíduo que se perdeu em meio às leis, pode e deve renascer na busca da própria identidade e do Significado da sua presença no mundo. 

As grandes religiões, como entendidas atualmente, não correspondem mais às necessidades de conhecimento, de significado e de valores profundamente indispensáveis ao ser humano, mas se limitam a defender os próprios interesses de natureza secular e material. No atual cenário coletivo a unidade social já não possui qualquer conteúdo religioso, reinam incontestavelmente a ética dos negócios e os “patriotismos” com bandeiras que inflamam o nosso ego separatista. 

Em tempos de globalização é infundável falar de estirpes, povos ou nações, pois a única e efetiva comunidade existente é, de fato, o planeta onde cada um de nós é chamado à suprema prova: carregar nos ombros a cruz da paixão. Carregá-la não nos momentos gloriosos das grandes conquistas da nossa civilização, mas sim em meio às mais densas trevas e no silêncio, nos lugares de desespero e solidão. É somente no fundo da dor que, segundo o poeta, se encontra a música sutil que pode nos indicar o caminho. 

Come diria Aldo Carotenuto, o moderno pesquisador da verdade é um pesquisador dos subterrâneos da alma, um investigador dos obscuros abismos internos, com todos os riscos possíveis que uma busca de tal gênero possa comportar. Ao invés de continuar procurando o fogo ou as partículas elementares, ele deve agora, como nos mitos da Antiguidade, trazer à tona todo um continente perdido. A Atlântida da alma ou o enigmático Santo Graal. Tal processo exigirá que se caminhe para muito “além” do convencional, que se avance “para além do bem e do mal”, como única possibilidade de salvação e premissa indivisível para uma vida autêntica. Como foi ressaltado por Jung, as linhas de comunicação entre as áreas conscientes e incoscientes na psique do homem moderno foram interrompidas o que torna mais densa a profunda escuridão e mais árdua a própria busca.

 Todo psicólogo sabe que quanto mais amplo for o espaço interior ocupado pelos conteúdos inconscientes e quanto mais limitado for o campo da consciência, maiores serão a instabilidade e os conflitos interiores não somente do indivíduo, mas da coletividade como um todo.

Segundo Neumann, o risco de catástrofe para o Ocidente reside justamente neste espaço carente de luz. Contudo, embora, num primeiro momento, como bem ressalta Neumann, o aspecto mais evidente dessa área escura seja uma potencialidade catastrófica para desastres e transtornos, este espaço obscuro é também, simultaneamente, o local que dá guarida à capacidade de transformação e evolução. 

———————————————–

A consciência e a ética

Quando falamos de “pecados” e, portanto, de comportamento ético, é necessário fazer uma distinção entre uma consciência ou ética autoritária e uma consciência ou ética interior (humanística).  A consciência autoritária é a voz do coletivo, definida por J. A. Gaiarsa “a voz do coro” que corresponde à autoridade interiorizada dos pais, do Estado, da religião (consciência heterônima ou supereu freudiano). Tal consciência esta sempre ligada à idolatria, e é, pela sua própria natureza, uma ética alienada. Ela é filha do antigo Deus, definido por Einstein como “o Deus do terror” e proclamado morto por Nietzsche. 

De natureza muito diferente é a consciência definida por Erich Fromm como a “consciência humanística” (autônoma), filha de um Deus interior, o Deus de Jung. É a consciência-voz da nossa personalidade total que exprime as exigências da vida e da evolução. Ela é a consciência que exterioriza as intenções da “semente”, da força vital que habita em nós. Para a consciência humanística é Belo e Bom tudo aquilo que encoraja a Vida; o Mal é, ao contrário, tudo aquilo que a bloqueia e a sufoca. A consciência humanística é a voz do nosso profundo ‘Ser’, o chamado “Si-mesmo”, aquele que nos reconduz a nós mesmos, para que nos tornemos aquilo que potencialmente somos. Não se submetendo a uma autoridade externa, mesmo que seja interiorizada, ela é uma consciência “responsável”, pois age “respondendo” ao mundo ao qual pertence; responde como um ser vivente que se relaciona com outros seres viventes, isto é, como um ser humano interiormente ativo. Por sua vez, a ética autoritária, diferentemente da ética humanística, é estranha ao elemento vital e, sob muitos aspectos, se contrapõe à ética da pessoa autenticamente religiosa. 

No entanto, qual é a definição que se tem em mente quando se emprega o termo “pessoa religiosa”? Qual é o elemento que a define como tal?

A definição comum de pessoa religiosa a vê como aquele tipo de pessoa que crê em Deus enquanto Ser supremo e sobrenatural e que, como consequência da própria fé, é também uma pessoa dotada de consciência ética. Negligente, porém, tal definição deixa de lado a qualidade intrínseca da conduta religiosa, ou seja, tal conduta não se baseia num conceito (pensado) de Deus. 

Um dos dogmas basilares do Zen Budismo assevera que as palavras (conceitos) e a verdade são incompatíveis, ou pelo menos inexistem palavras capazes de capturar a verdade. Seja qual for o espaço verbal dentro do qual se tentará encerrar a Essência, ela resistirá, se debaterá … desvencilhando-se. Segundo o Zen Budismo, o uso das palavras é intrinsecamente dualístico sendo, portanto, contrário à Essência Divina. Na verdade, embora o Zen se mostre iluminante, venerável e muito sedutor, às vezes é também provocatório e irritante por causa da sua grande anarquia e obscuridade. 

Sendo assim, mais do que religião – no sentido habitual de tal termo – seria melhor falar de “experiência religiosa” e o que conta não são as concepções racionais dali derivadas, mas sim o substrato de experiência humana que gera tais concepções. Desta forma, a questão central que se coloca é a seguinte: a experiência religiosa está necessariamente ligada a um conceito de Deus?

Nos idiomas ocidentais não existe um termo apropriado, que dê conta da definição exata deste substrato experiencial, base de toda “experiência religiosa”, detentora de um significado especifico e próprio. Tal experiência é caracterizada pelo sentimento de Unidade e Numinosidade, tendo sido muito bem descrito por filósofos e místicos. Assim sendo, o vocábulo “religioso” acaba por se tornar uma palavra deveras ambígua, como ambígua é também a palavra “espiritual”.

Palavras como “religião” ou “espiritualidade” podem ser interpretadas de formas diferentes. No presente trabalho, portanto, procurarei evitar as areias movediças intelectuais e toda a ambivalência frequentemente suscitada por tais palavras; para tanto, farei referência somente à experiência humana que conduz o homem à própria fonte interior, que o conduz àquele sentir as “verdades fundamentais”; essa “impressão íntima” que é o sentir, tanto do ponto de vista psicológico quanto daquele filosófico, está ancorada numa ética autêntica, sem que nos detenhamos a considerar se contenha ou não o conceito de Divindade.

A experiência humana aqui abordada é descrita na literatura mística cristã, hebraica, muçulmana e também no zen budismo. Fora do contexto religioso tal experiência foi descrita por estudiosos como C. G. Jung, Stanislav Grof, Ken Wilber, Roberto Assagioli, Rudolf Steiner, Benedetto Spinoza e Erich Fromm, os quais enfatizam o aspecto eminenentemente “humano” desta experiência, definindo-a: “esperiência x”.

Jung a descreve no seu “Livro Vermelho”, a sua obra de publicação mais recente nos Estados Unidos, no Brasil e em breve também na Itália; o Livro Vermelho foi escrito originariamente em alemão antigo e suas ilustrações são de autoria do próprio Jung: Minha linguagem é imperfeita. Não que eu queira brilhar com palavras, mas por incapacidade de encontrar aquelas palavras é que falo em imagens. Pois não posso pronunciar de outro modo as palavras da profundeza.

Embora não exista nas línguas ocidentais um termo que defina exauridamente este substrato experiencial, podemos considerar que a experiência x é uma experiência de transcendência. Diante de tal asserção nos deparamos novamente com a mesma dificuldade epistemológica, com o mesmo problema “religioso”. Transcendência é uma palavra convencionalmente usada no sentido de transposição, exceder em direção a Deus, como uma experiência de acesso ao além-mundo entendido como Mundo Divino. Como fenômeno humano, tal transcendência, traduzindo o termo numa linguagem psicológica, é a transcendência do eu, o fim da escravidão exercida pelo ego e pela identificação com o próprio corpo – aquele sentimento de se viver encapsulado na própria pele e o consequente isolamento que tal identificação comporta. Podemos também entender tal experiência como relativa a Deus. A diferença não se encontra no substrato experiencial, mas somente no contexto no qual é interpretada a experiência, a qual é essencialmente a mesma quer contenha ou não um conceito de Deus.

… se viu num lugar liminar, tão rico ao mesmo tempo de abundância criativa e  potencial ruína que julgou se tratar do mesmo território limítrofe desfrutado igualmente por lunáticos e grandes artistas…”, afirma um artigo do NY Times sobre o  “Santo Graal do Inconsciente, o livro secreto de Jung . 

Ilustrarei brevemente alguns dos principais aspectos do fenômeno da experiência x, com referência à descrição de Fromm:  

Existe uma característica peculiar do indivíduo que o torna disponível, isto é, “aberto” à experiência x; trata-se de um sentimento intuitivo que faz com que o indivíduo “sinta a vida como um problema”, como uma pergunta que exige urgentemente uma resposta. Pela mesma razão o leva também a sentir de modo intenso a dor da separação entre o homem e o espírito-natureza; um profundo desassossego diante das dicotomias existenciais e um impulso a sanar tal fratura alcançando, em seguida, a Unidade. Do ponto de vista “x” todas as realizações mundanas são encaradas como categorias secundárias e menores quando comparadas aos mais altos valores humanos (ou espirituais, ou “x”). Os valores humanos podem ser definidos a partir do valor mais alto que, para Fromm, é “o desenvolvimento exímio das próprias potencialidades humanas”, o desenvolvimento de qualidades como a dignidade, a coragem, a capacidade de sentir e vivenciar amor, compaixão, etc…

 

O espirito dessa época em mim queria muito conhecer a grandeza e a amplidão do sentido supremo, mas não sua pequenez. Mas o espírito da profundidade venceu este orgulho, e eu tive de engolir o pequeno como um remédio da imortalidade, escreve ainda Jung no seu livro mais polêmico.

 

Ulterior característica da hierarquia de valores x é o fato que ela desloque a natureza e direção dos objetivos (ou fins) a serem alcançados pelo Homem. Na nossa cultura materialista, a maioria das pessoas persegue objetivos que se encontram fora do próprio indivíduo: poder, dinheiro, fama etc. Assim sendo, nessa equivocada perseguição ou o indíviduo éexplorado pelos outros – cujo objetivo é satisfazer o interesse próprio – ou o indivíduo acaba por explorar a si mesmo em nome de seus interesses particulares; em qualquer um dos casos, o indivíduo é meio e não fim. A realidade é bem diferente quando se trata do indivíduo x para quem o homem é um fim em si mesmo e jamais meio. O sentido e a razão da presença humana no mundo são dados justamente pela sua constante transformação. Cada episódio da vida é avaliado segundo as suas intrínsecas possibilidades de auxiliar o indivíduo no processo de converção das potencialidades em realidade; quando o indivíduo se sentir fortalecido o bastante para colocar em prática as suas latentes potencialidades, elas o farão evoluir gradualmente na direção de uma humanidade sempre maior.

Nas palavras de Spinoza:

 

A alegria é o transpasse do homem que ascende da menor à maior perfeição.

 

A ideia de Deus para Fromm, assim como para Teilhard de Chardin e Spinoza, é o resultado de um processo evolutivo de purificação gradual. Assim, num certo sentido, o “pecado” é “desassociado” de conceitos obscuros como o Mal, a Crueldade ou a Maldade humana para ser associado à ideia mais compreensível e moderna de “mediocridade”.

O homem de Fromm não é um sujeito que se contrapõe ao mundo para transformá-lo: ele está no mundo enquanto “sujeito reagente”, capaz de criar a si mesmo num constante processo di autotransformação. O mundo (os seres humanos e a natureza) não é algo que o homem simplesmente tem diante de si, ele é o meio pelo qual o próprio homem poderá descobrir, de forma cada vez mais profunda, tanto a sua própria realidade quanto a realidade do mundo no qual vive.

A experiência x, teísta ou não, se caracteriza pela redução e, no melhor dos casos, pelo fim do narcisismo. Para a psicologia humanista de Fromm a atitude x pode ser definida, de forma mais específica, nos seguintes termos: é a renúncia ao próprio “eu”, à própria avidez e, abandonando-a, nos libertamos também dos nossos medos. “Esvaziar-se”, portanto, longe de significar passividade representa abertura, ânimo e vontade para poder “acrescer-se de mundo”, “unir-se” a ele e amá-lo.

A experiência “x”, da teologia à psicologia

O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden para lavrar a terra, de que fora tomado.  E havendo lançado fora o homem, pôs ao oriente do jardim do Éden os querubins, e uma espada flamejante que se volvia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida. (Gn. 3: 23-24)

 O maior anélito do homem é voltar ao local de origem, retornar à condição originária de completo absoluto, onde habitava antes de “desobedecer”. Almeja ardentemente sanar a fratura, renunciar à razão, ao conhecimento, à responsabilidade e retornar à beatitude originária, ao ventre da Mãe Terra, lá onde a centelha luminosa e crepitante da consciência não se acendera ainda.

As primeiras teorias da psicanálise defendem a idéia que quanto mais nos envederedamos pela “selva escura”, quanto mais profundamente indagamos sobre aquilo que o homem vela dentro de si, tanto mais prepotentemente emergem “coisas negativas”, instintos primitivos e destrutivos: “elementos pouco saudáveis, perigosos, impiedosos”. Em contraste com as afirmações dos primórdios da psicanálise, as experiências de autoexploração profunda – servindo-se dos vários meios oferecidos pelas tradições orientais e pela psicologia transpessoal – levaram teóricos e estudiosos a acrescentar um posterior “território” no “mapa” tradicional da psique. O que emerge de tais vivências confirma a hipótese segundo a qual quanto mais nos empenharmos na descoberta do inconsciente, mais seremos capazes de nos revelarmos por completo. Uma vez que teremos nos aventurado pelas entranhas do nosso Mal – não somente encarando, mas “aceitando” e integrando o indesejável e o ínfimo que habita dentro de nós (“a pequenez”, como era chamada por Jung, ou a nossa imensa Sombra) – teremos condições de alcançar a nossa outra “metade saudável”; entramos em contato, assim, com o que a natureza humana tem de mais vital e elevado em potencial, acessando qualidades como a alegria, o amor, a harmonia, a “espiritualidade”, num longo e fatigante percurso passando pela angústia, pela baixeza, pela culpa até chegar ao êxtase e ao cume da nossa “humanidade”. 

A “Natureza” em nós – na linguagem de Goethe, o espírito-natureza– é vista ainda hoje como madrasta, enganadora, “perigosa sedutora” sendo ainda temida como um abismo escuro que a tudo devora: cega, anárquica, ameaçadora, o furacão que devasta as nossas praias ou o pântano que invade o nosso plácido jardim; um dragão adormecido contra o qual o ser humano deve se defender através do perpétuo controle e vigilância. O elemento que demanda maior vigilância é justamente o “eu”, a nossa personalidade consciente que precisa dos seus vários pontos de apoio para não ser levada pelo tsunami do inconsciente, com suas correntes de puro instinto e terrores arcaicos.

Mas o “espírito-natureza” é também – e, sobretudo, – elemento propulsivo de um processo de redenção. Até mesmo nos seus aspectos mais obscuros e destrutivos manifesta-se com “a autorização e o controle da vontade de Deus”, isto é, com o consenso de uma “Ordem Superior”, ou melhor, de uma “ordem implicada ou subentendida”, na linguagem de David Bohm.

Toda vez que o homem se desvia deste desenho divino a natureza “desventurada” dá vasão à sua fúria arrasadora, tornando-se “demoníaca”, um instrumento da ira de Deus.

Para o homem primitivo a identificação com o eu corporal, e a perda de contato com a dimensão transcendente da existência, equivale à “perda da alma” o que, para o homem das origens, é como morrer. Também para Jung “quem vendeu a própria alma será amaldiçoado.” Para ele, descobridor do inconsciente arquetípico, a análise é um longo diálogo com o homem originário o qual Jung chama de “O Grande Homem”. Segundo Jung, “o Grande Homem, o homem de dois milhões de anos, talvez fale…”, somente quando encontrarmos obstáculos no nosso caminho e pareça não haver mais nenhum tipo de saída. Somente então (talvez) se farão ouvir a sua voz e músculos. Dialogando com o Grande Homem podemos entrar em contato com a nossa força e com a exclusiva inteligência do nosso mundo subterrâneo, conhecer, enfim, quem realmente somos. A ética, para Jung, é algo diferente da “moralidade”, não é convenção nem idolatria; para ele a ética está ligada à experiência, é uma relação entre nós e o Grande Homem.

 

         Se o homem não está interessado no seu próprio destino, o inconsciente está

 

A experiência x transita da teologia para a psicologia. A psicologia analítica, como também a humanística e a transpessoal, é uma impostação teórica que acolhe a experiência x dentro do seu próprio embasamento teórico. É importante diferenciar a falsa experiência x daquela experiência evolutiva, não patológica, de amor, de união e verdadeira independência. Como bem defende Jung, o problema fundamental do homem transcende as exigências da libido “freudiana” e alude principalmente às dicotomias inerentes à existência humana: medo da liberdade, alienação, potencial destrutivo e, sobretudo, o mortificante e desesperado anseio humano por amor e unidade.

A experiência x, teísta ou não, é caracterizada, antes de tudo pela libertação dos laços primários – abandonar a prisão das ligações incestuosas que oferecem segurança ao homem, mas ao mesmo tempo o paralisam é, segundo Fromm, condição indispensável para a evolução humana – e pela redução, ou na melhor das hipóteses, a extinção do narcisismo. 

 

Uma perspectiva integral, a interconexão entre todas as coisas

A autoconsciência e o conhecimento do bem e do mal são irreversíveis. O homem não pode voltar atrás mesmo quando deseja ardentemente fugir desta liberdade conquistada a caro preço, renunciando à própria consciência que o torna humano.

Segundo Alan Watts o homem deve sofrer a “separação”, experimentar até o fundo a dor da laceração interior, a fratura entre si (sujeito) e o mundo (objeto). Padecer tal separação é a única condição propícia para “saltar o abismo”, superar a própria fratura: “somente através do processo de alienação o homem pode superá-la e chegar a uma nova harmonia.”

O homem, segundo Watts, deve tirar uma lição da sua própria vivência, chegar a um novo patamar de consciência a partir da sua condição de viajante estrangeiro no mundo; assim sendo, como sujeito estranhado de si mesmo e da natureza, será capaz de se tornar novamente Um consigo mesmo, com o próximo e com a natureza, num grau de elevação mais alto.

Escreve Watts: “é importante lembrar que o estado mental do qual pode surgir a experiência de unidade é inicialmente o estado mental de total alienação.”  O homem deve, portanto, sofrer a dor da separação, sangrar, até a lividez e exaustão; é a única possibilidade para quem deseja alcançar a liberdade. É justamente dessa condição cada vez mais angustiante e intolerável – onde é impossível achar uma saída para o impasse existencial – que nasce a consciência da absoluta impotência do eu reduzido a um peso inútil. Então, de repente, como se fosse um milagre, nos damos conta que os rígidos confins existentes entre nós e o mundo desaparecem como que por encanto e que a vida começa a brotar em nós… pela primeira vez parece que  fluímos livres, que pertencemos a algo muito maior e participamos de um vasto projeto existencial.

A nova Unidade de Homem-Natureza, Unidade redescoberta num nível mais alto de consciência, é descrita na Bíblia e retratada na literatura profética-espiritual como “o tempo messiânico” ou “o retorno de Deus à Terra”. Do ponto de vista “humanístico” de Fromm, o tempo messiânico não é casual na existência do homem, devendo ser encarado como a única resposta possível a tal existência, a alternativa à sua autodestruição. Ao homem cabe a escolha: aniquilar-se ou progredir na direção de uma nova harmonia. Um estado mais harmônico não é, porém, predeterminado pelas estrelas ou pelo Pai Eterno; o autor desse novo estado, o seu verdadeiro artífice, é o próprio homem que, chamado a promover a nova harmonia, poderá instaurá-la somente através do seu pessoal esforço e determinação. 

O status de homo sapiens que carregamos comporta uma grande responsabilidade, pois temos ciência das nossas ações e sabemos que somos parte da grande comunidade da Vida, tanto do ponto de vista biológico quanto do ponto vista “espiritual”. Como afirma Ervin Laszlo, podemos continuar a dissipar os recursos do planeta ou, então, sair dessa verdadeira ‘corrida de ratos’; quando abandonarmos esse traço tão pernicioso da sociedade contemporânea, nos abriremos mais facilmente a uma visão “integrada” do mundo. A nossa abertura e as consequentes decisões que tal gesto acarretará podem criar no mundo em que vivemos uma realidade completamente diferente.

Através da descoberta dos territórios ilimitados do nosso mundo interior podemos finalmente abrir os olhos, encarar o mundo de uma perspectiva mais ampla, uma perspectiva “sagrada”, reavaliando a nossa posição na Natureza e no Cosmo. Hoje e sempre, amar é a principal tarefa do ser humano; isso significa colocar de lado o ego, nos abrir para outras culturas e formas de vida – nos olharmos e nos relacionarmos de alma a alma, cada um de nós na sua totalidade e unicidade. 

Nas palavras de Dom Hélder Câmara:

 

               Partir é, antes de tudo, sair de si. 

Romper a crosta de egoísmo que tende a 

aprisionar-nos no próprio eu.

 

Partir é não rodar, permanentemente, 

em torno de si, numa atitude de quem,

na prática, se constitui centro do Mundo

e da vida.

 

Partir é não rodar apenas em volta

dos problemas das instituições

a que pertence. 

 

Por mais importantes que elas sejam,

maior é a humanidade…

No significado original da palavra grega hamartàno, que deriva da Arte do tiro ao alvo com arco e flecha, pecar significa errar o golpe, não conseguir acertar o alvo. Qual é o alvo que deve ser acertado hoje? Em tempos de globalização e de risco de catástrofes ecológicas a meta justa de tal alvo é a obtenção de maior nível de união e cognição – “o tempo messiânico.”

Para Wilhelm Reich pecado quer dizer rigidez, fixações neuróticas que impedem o livre fluir da energia vital – do amor de Deus em nós – inflexibilidades que impedem a mudança e a evolução na direção do Amor total. Quanto mais abraçarmos profundamente a nossa natureza interior mais intensamente nos uniremos a tudo que nos rodeia; a nossa integridade e a nossa “cura” interior caminham juntas com a integridade e a “cura” do planeta em que vivemos. Assim sendo, “pecado” significa divisão, separação, dentro e fora de nós. Pecado é a divisão dentro de nós mesmos, entre nós e o mundo, entre nós e os outros. O fundamento da unidade da espécie humana não reside no fato que todos os homens acreditem num mesmo Deus, mas sim na possibilidade que cada homem entre em contato com as capacidades humanas sepultadas nas profundezas da alma e, assim fazendo, aja naturalmente com Justiça e Amor.  

A experiência x, experiência interior de dignidade e força, pode ser vivida somente quando saímos do estado que Reich definiu “a armadilha”; quando deixarmosde lado o estado ardiloso que nos limita e nos impede de viver e formos capazes de nos posicionar do lado de fora. Somente então estaremos diante da exaltante profundeza do nosso eu mais profundo, o “Si-mesmo” e poderemos ascender até a nossa paixão mais ardente, à transparência do ser e à força de viver. Será possível, assim, chegar ao único e verdadeiro nós mesmos. A tradição chamou de “alma” o ponto de intersecção no qual o homem e o Desconhecido se tocam; esse átimo de convergência foi representado magistralmente por Michelangelo no teto da Capela Sistina. Tal ponto de contato é o espaço onde impera a possibilidade de União e onde se restitui à palavra “religião” o originário significado de “aliança”; a essência desse elo de união não se traduz em palavras, dogmas ou regras de comportamento, mas sim em autêntica experiência do Encontro.


Note

1 Con la parola “evoluzione” non mi riferisco al concetto darwiniano di evoluzione della specie, ma “all’evoluzione della coscienza” così come descritto da Ken Wilber o da Teilhard de Chardin.

2 Neumann, E., Psicologia del profondo e nuova etica, Moretti & Vitali Editori, Bergamo, 2003.

3 Jung, C. G., O Livro Vermelho, Editora Vozes Ltda, Petropolis, 2010, p. 230, T. d. A.

4 Noga Bloga: a cronica cotidiana de Noga Sklar, T. d. A.

5 Fromm, E., Voi sarete come Dei, Astrolabio, Roma, 1970

6 Jung, C. G., Il libro vermelho, Editora Vozes Ltda, Petropolis, 2010, p. 230, T. d. A.

7 Spinoza, B., Etica, Libritalia, Perugia, 1997, p. 238.

8 McGuire, W., Hull, R. F. C., a cura di, Jung parla. Interviste e incontri, Adelphi, Milano, 2002, p. 446.

9 Ibidem, p. 446.