O Homem e a Natureza. Nutrição, Respiração e Amor

 

O homem é a espécie mais louca: ele adora um Deus invisível e destrói uma Natureza visível. Sem perceber que a Natureza que ele está a destruindo é o Deus que ele está a adorando.

(Hubert Reeves)

A modernidade falhou. Um novo humanismo deve ser construído, caso contrário o planeta não será salvo.

(Albert Einstein) 

No colo da Natureza

 

Na América das planícies sem limites, dos grandes espaços deserticos, das fronteiras mexicanas ao Alasca, um rapaz não conformista renuncia ao conforto de uma vida de classe média para se imergir na natureza selvagem. O livro de Jon Krakauer, que se tornou um clássico da contracultura metropolitana, conta a verdadeira história de Christopher McCandless, trazido para o grande ecrã em 2007 sob a direcção de Sean Penn, com o título inglês

Uma autêntica celebração dessa exasperante ânsia de liberdade que no fundo da alma pertence a todos nós, o filme de Penn dá-nos momentos de inquietação, mas também de pura maravilha que recordam algumas passagens escritas por Ralph Waldo Emerson (1836) no seu famoso livro Nature: “A natureza nunca usa uma aparência medíocre. Nem pode o homem mais sábio arrancar-lhe os seus segredos”.

 

Para Emerson, o homem é semelhante a Deus, mas um “deus caído” cujo único objectivo é encontrar-se a si próprio novamente, através da recuperação de uma relação correta com a natureza e da consciência da sua própria posição no universo: um verdadeiro ato de fé cujo significado último escapa a qualquer retórica religiosa para aceder a uma outra dimensão, autenticamente humana, na qual inserir a sua própria experiência mais íntima e pessoal.

“As gerações passadas contemplaram Deus e a natureza face a face; nós contemplámo-los através dos seus olhos. Porque não deveríamos também experimentar uma relação original com o universo? Porque não deveríamos também ter uma poesia e uma filosofia que vai diretamente às coisas e não através da tradição, e uma religião revelada a nós, em vez da sua história”? 

O filme de Penn expressa com os seus fortes contrastes a alternância contínua entre uma Natureza sublime e ao mesmo tempo impiedosa e o vazio interior do personagem em busca do sentido perdido. Arrasta-nos por bosques e pradarias, florestas; entre o espanto, a maravilha e aquele medo reverencial de algo indefinivel perante o qual sentimos um murro no estômago. 

“A natureza nem sempre está vestida com o traje de festa, e a cena que ontem emanava perfumes e brilhava como se fosse a dança alegre da ninfa, hoje é sufocada pela melancolia” . 


 

Para Emerson como para os Kabbalistas a Natureza é espírito encarnado. A maior felicidade e o verdadeiro presente oferecido pela sua contemplação é a consciência de uma relação oculta entre o homem e a vegetação, entre o homem e os animais, entre o homem e a Natureza como um todo. No entanto, Emerson tem a certeza de que o poder de produzir esta imensa alegria não pertence à Natureza, mas ao próprio homem, ou seja, à harmonia entre um e outro. 

“De pé sobre a terra nua – com a minha cabeça imersa no ar alegre e elevada ao espaço infinito – todo o egoísmo mesquinho desaparece. Torno-me uma pupila transparente, não sou nada, vejo tudo; as correntes do Ser Universal fluem através de mim; sou uma parte ou partícula de Deus” . 

Para Emerson, o equilíbrio só pode ser alcançado quando voltamos a olhar “Deus e a natureza face a face”: no reconhecimento mútuo, na “correspondência”, na fraternidade. E é precisamente neste espaço aberto pelo diálogo entre o homem e a natureza que, recorda o escritor americano, se coloca a Arte.

“Mas se um homem quer realmente estar sozinho, deixe-o olhar para as estrelas […] Poder-se-ia pensar que a atmosfera foi criada transparente justamente com o propósito de dar ao homem, através dos corpos celestes, a presença perpétua do sublime” . 

O tema da fuga do conforto e da civilização, a coragem de fazer uma escolha radical como o abandono da nossa vida quotidiana alienante, mas sobretudo a busca de algo que nos traga de volta a nós próprios é o leitmotiv dos escritos de Henry David Thoreau (1817-1862), o ecologista ante litteram e ícone do pensamento ambientalista, que, juntamente com o seu amigo Ralph Waldo Emerson, é considerado o maior expoente da corrente literária definida como o “Renascimento americano”. 

No seu famoso livro Walden or Life in the Woods (1854), Thoreau – que fez da solidão e do contato com a natureza o seu caminho pessoal de auto-descoberta – descreve em pormenor a sua aventura de reconciliação com o mundo natural, um verdadeiro desafio à sobrevivência e, ao mesmo tempo, um convite à contemplação. O livro foi escrito em 1845, aos vinte e oito anos de idade, durante o tempo em que viveu numa cabana que construiu nas margens do Lago Walden (perto da cidade de Concord, nos Estados Unidos), onde permaneceu durante dois anos e dois meses.

Livro de culto da consciência ambiental e pedra angular da contracultura americana, Walden é um manifesto contra a inércia ético-moral da sociedade americana da época, que era exasperantemente materialista, e ao mesmo tempo uma descrição detalhada do regresso do autor na Natureza incontaminada. Thoreau, chamado a “marchar ao som de um tambor diferente”, como Christopher McCandless, o protagonista do livro de Krakauer trazido para o grande ecrã por Penn, faz uma escolha radicalmente oposta aos valores e ideais de uma sociedade em relação à qual se sentia “alienado entre os seus pares”.

Através desta imersão total na natureza, o jovem autor americano procurou, no mundo submerso, um contacto profundo consigo mesmo, com as suas sensações e emoções. Esta busca assume uma dimensão universal, pois faz dele o autor do seu próprio destino e consciente da sua posição dentro da Natureza. 

“É uma daquelas noites encantadoras quando todo o corpo é um só sentido e inspira felicidade por todos os poros. Eu vou e venho na Natureza com uma estranha liberdade e faço parte dela. Enquanto ando ao longo da costa pedregosa do lago, em mangas de camisa, embora haja um vento fresco, o céu esteja encoberto e não vejo nada em particular para atrair a minha atenção, todos os elementos estranhamente fazem parte de mim”. 

Na solidão mais profunda, com um olhar privo de propósito e preconceito, atento a tudo sem exclusão, “o vagabundo de Walden” abre o seu coração à Natureza, em busca daquele alfabeto secreto escondido nas dobras dos elementos mais fora do comum e ao mesmo tempo tão familiares: olhando para o lago, sente a paz das suas águas tranquilas; envolto no nevoeiro, parece olhar para a Luz que ilumina tudo. Na repetição infinita da forma hexagonal dos flocos de neve, ele reconhece o desenho cósmico e num instante a “terrível majestade” da Natureza. 

Jung também, como Thoreau, procurou na essência de cada coisa aquela dimensão ética, estética e metafísica, muito além da simples percepção sensorial: “Desisti da eletricidade: eu próprio acendo a lareira e o fogão, e à noite acendo as velhas lâmpadas. Não há água corrente, eu a bombeio de um poço; racho madeira e cozinho comida. Estes atos simples tornam um homem simples e como é difícil ser simples. Em Bollingen estou na minha natureza mais verdadeira, naquilo que me exprime profundamente. Eu sou, por assim dizer, “o filho muito antigo da mãe'”. Assim diz o teórico do inconsciente arquétipico/coletivo na sua autobiografia.

Thoreau escreve: “a menos que o zumbido de um mosquito seja como a música das esferas, e a música das esferas como o zumbido de um mosquito, eu não sou nada para mim”.

Viver numa floresta sustentado apenas pelo trabalho dos próprios braços foi uma grande experiência de decrescimento e, ao mesmo tempo, um testemunho para a humanidade. A experiência de imersão de Thoreau na Natureza, a sua insatisfação com os valores partilhados, o seu sentido de rejeição e “asfixia” é o mesma que caracteriza muitas pessoas de hoje que procuram formas alternativas e são levadas a fazer propria a cultura do decrescimento: viver sob a bandeira da auto-suficiência e da resiliência, do “trabalho dos seus próprios braços”, a renúncia ao consumo frívolo e ao lucro a qualquer custo, valorizando a relação com os outros e a harmonia com a natureza. Muitos movimentos ecológicos têm sido inspirados pela experiência e pensamento de Thoreau

 

A Torre de Babel

“O vento planta a semente”, escreve Emerson; “o sol evapora o mar; o vento sopra sobre o campo; o gelo, do outro lado do planeta, condensa a chuva; a chuva alimenta as plantas; as plantas alimentam os animais; e desta forma a circulação interminável da caridade divina alimenta o homem” .

Da mesma forma… quando se perfura petróleo na Arábia Saudita, o ar no Brasil fica poluído. A niña (corrente fria) na costa do Peru aumenta a incidência de furacões no sul dos Estados Unidos e provoca secas e incêndios no Texas. Quando colocamos novos modelos de automóveis no mercado italiano, causamos mais poluição e os glaciares no Pólo Norte derretem; e quando o gelo no Pólo Norte derrete, o mar sobe e N.Y. está em perigo de ser inundada. Todas estas ações estão ligadas e afetam umas às outras sem fim, salientando a estreita ligação entre o homem e toda a natureza, as interconexões e as forças que aí habitam.

Algumas doutrinas esotéricas consideram o nosso planeta como um planeta “não sagrado”, o que significa, um planeta, ou melhor, o seu estado de consciência, separado da Harmonia universal: um lugar de sofrimento porque é dominado por reivindicações egoístas, separação e não-reconhecimento, pelo homem, da sua própria posição dentro da Natureza. Para Platão “sabedoria” significa o conhecimento dos “segredos” da Natureza e em tempos antigos aqueles que possuíam este tipo de conhecimento eram chamados “homens sábios”. 

Os princípios básicos destas antigas sabedorias baseiam-se na consciência não só da estreita relação entre o homem e a natureza, mas especialmente da comunicação contínua entre o mundo exterior e o interior, ou no conceito de “consciência planetária” – a consciência do nosso destino, não só como seres humanos, mas como partes de algo muito maior que podemos definir como “um Plano Geral”. A fonte de todo o sofrimento no mundo seria, portanto, a consequência da nossa visão parcial, longe da “sabedoria” como uma visão total, um projecto integral: uma consequência do nosso estado de não-integração com o resto da Natureza. 

A humanidade de hoje volta a sua atenção para o mundo antigo em busca de novas fontes de inspiração e de novas soluções para a emergência global. O que agora chamamos “consciência planetária”, de acordo com as nossas tradições sapienciais, não é uma característica do ser humano evoluído, mas é na realidade – como o descrevem académicos modernos como Gregory Bateson ou Arne Naess – a essência pura da Natureza. Estamos habituados a pensar na consciência humana atual, que é o que percebemos com os nossos cinco sentidos, como “normal”; tudo o resto pertence ao reino da “imaginação”. A nossa percepção chega onde a nossa pele termina e as ideias da nossa pertença a algo muito maior, no qual todos somos Um, parecem-nos completamente excepcionais. Contudo, se aprofundarmos a nossa investigação e analisarmos a história das civilizações e das ideias de outros tempos, podemos observar que é exatamente o contrário: o nosso pensamento fragmentário e mecanicista desenvolvido nos últimos séculos com a sua visão redutora do mundo, uma visão que hoje mostra os seus defeitos, não é a regra, mas a excepção!

Quando a “separação” está completa e entramos numa esfera de ilusão e “loucura”, mais cedo ou mais tarde somos confrontados com o terrível medo e toda a dor que acompanham esta ilusão. Só então, inesperadamente, começamos a ter uma certa intuição da liberdade e a percepção de algo imenso que parece estar mesmo ao virar da esquina: a terceira forma de consciência, chamada consciência cósmica ou universal. Quando esta consciência/experiência emerge – porque é uma “experiência”, definida pela psicologia profunda como “a experiência do Eu” – a sensação é a de nos dissolvermos e sermos subitamente inundados por tudo aquilo  que antes parecia estar “separado”, como se fôssemos finalmente Um: uma reconciliação que põe fim ao longo processo de diferenciação e deixa espaço para a integração: o observador, o conhecimento e a coisa conhecida são de novo Um. Jung escreve: “Eu distingo portanto entre o ego e o Eu, uma vez que o ego é apenas o sujeito da minha consciência, enquanto o Eu é o sujeito da minha psique total, portanto também do inconsciente. Neste sentido, o Eu seria uma entidade (ideal) que inclui o ego”. Marie Louise Von Franz diz: “Só através do Eu, então, o homem pode estar em contato com os outros sem segundas intenções, porque o Eu emocional é quase sempre obscurecido por todo o tipo de motivações egocêntricas, conscientes ou inconscientes. 

Através desta experiência, de acordo com as descrições daqueles que a vivem, acede-se ao verdadeiro e único “conhecimento real”. Esta experiência tem sido descrita há séculos em todas as partes do mundo e em todas as épocas históricas. O verdadeiro conhecimento é, portanto, aquele em que sujeito e objeto são conhecidos como uma e a mesma coisa e é naturalmente uma forma diferente de conhecimento daquela primeira fase primitiva da primeira infancia em que sujeito e objeto eram, mesmo nesse caso, uma e a mesma coisa, mas como nunca tinham sido diferenciados, nunca poderiam ser conhecidos como uma unidade. Este terceiro tipo de consciência, traz consigo uma forma especial de iluminação: o objeto e o eu são percebidos conjuntamente não só através do ato especial de conhecimento que os une, mas profundamente, na sua essência. 

É como se o círculo fosse “enquadrado”: o aspecto externo do conhecimento (árvore, sol, pedra, outros…) já não è mais meramente externo, mas é percebido juntamente com as suas “qualidades intrínsecas, ocultas”, como um símbolo dotado de uma vida própria. Tudo o que nos rodeia já não é simplesmente visto com os olhos e tocado com as mãos, mas é essencialmente sentido como uma parte de si mesmo. Este ver, tocar e sentir suscita uma resposta profunda, um eco que ressoa sem fim. O conhecimento neste ponto, argumenta Jacob Boehme, torna-se iluminado e enriquecido com novas possibilidades, abandona a sua forma ilusória de pensamento e adquire uma dimensão cósmica/universal.

 

A Psique e a Natureza

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A natureza, portanto, na sua relação com o homem não é apenas o que podemos perceber com os nossos sentidos, ou seja, o aspecto material, mas é também o processo e o resultado, é ela própria a autora da sua própria evolução: todas as partes interagem continuamente umas com as outras para favorecer “o projeto evolutivo”. Gregory Bateson, psicólogo eclético, no seu livro Towards an Ecology of Mind tenta definir um conceito revolucionário: “a mente ecológica”. Expondo a sua visão holística do substrato material subjacente aos processos mentais e que os mantem vivos, o psicólogo britânico oferece-nos uma visão mais completa e ecológica do ser humano e do seu funcionamento mental, delineando um ponto de contato entre o nosso comportamento e a Natureza.

Nos seus últimos anos de vida, Bateson expôs num livro intitulado Mente e Natureza, publicado em 1979, alguns meses antes da sua morte, não só a sua visão da relação Mente/Natureza, mas sobretudo o fio que o levou a concebê-la. Através de ligações originais, exemplos e pensamento ousado, Bateson conseguiu definir e circunscrever algumas características da mente “ecológica” e demonstrar a trama sutil e inexorável entre a Mente e a Natureza, entre o pensamento e a evolução. Esta é a sua mais recente e ousada ideia, ao mesmo tempo gravida de outros desenvolvimentos: “Que estrutura liga o caranguejo à lagosta, a orquíde à à prímula, e os quatro comigo? E eu contigo? E todos os seis com a ameba de um lado e o esquizofrénico do outro”?

A crença original de Bateson é que o que entendemos por conhecimento, o conhecimento de cada um de nós, é “uma pequena parte de um conhecimento integrado maior que mantém unida toda a biosfera ou “criação'”. Para Bateson, na história humana “natural”, a ontologia e a epistemologia não podem ser separadas, no sentido em que as nossas crenças (geralmente inconscientes) sobre o mundo à nossa volta determinarão a nossa forma de o perceber e, consequentemente, também de agir no próprio mundo; e “a resposta do mundo” a esta forma de perceber e agir determinará, por sua vez, de forma circular, as nossas crenças sobre a natureza do próprio mundo.

Bateson escreve: “Considere um indivíduo que está cortando uma árvore com um machado, sendo cada golpe do machado modificado ou corrigido de acordo com a forma do entalhe deixado na árvore pelo golpe anterior. Este procedimento de auto-correcção (isto é, mental) é realizado por um sistema total, árvore-olho-cérebro-músculos-golpe-arvore; e é este sistema total que tem as características de mente imanente”.

Com estas palavras Bateson parece afirmar que os processos mentais não pertencem apenas ao sujeito humano: mesmo que a consciência continue a ser uma característica única da nossa espécie, para o psicólogo anglo-saxónico o cenário natural em que questiona a sua própria identidade já não é o mesmo: já não o de um “arquitecto” imaginário, sendo o pensamento protagonista da cena, como estamos habituados a acreditar, mas o do “ecossistema” da “estrutura que liga”.

 

“Pensar como uma montanha”: o eu ecológico

A Terra está atravessando uma grave crise ecológica, destinada a agravar-se: catástrofes climáticas, secas, inundações, furacões são cada vez mais frequentes numa escalada de emergências ambientais. Perante tudo isto, um número crescente de pessoas está recorrendo à ciência para obter as respostas que esta tinha prometido. Naomi Oreskes, professora de história da ciência na Universidade de Harvard, com uma investigação aprofundada, mostrou em 2011 que, apesar da propagação de opiniões “negacionistas”, o clima estava realmente esquentando e que a responsabilidade recaía sobre o homem. A académica americano tentou identificar as razões pelas quais nós, ocidentais, apesar de toda a informação científica disponível, não lidamos adequadamente com a iminente catástrofe ambiental, uma espécie de desastre anunciado.

No seu romance distópico The Collapse of Western Civilization , escrito em conjunto com Erik Conway e ambientado em 2393, um jovem estudioso chinês tenta analisar, trezentos anos depois, os acontecimentos catastróficos que levaram a nossa civilização ao colapso. Com um estilo original entre ficção e ensaio, o livro consegue mostrar ao leitor a direção atualmente tomada pela nossa civilização e o cataclismo ambiental que se está se formando se não interviermos prontamente para parar este caminho auto-destrutivo. 

Segundo Arne Naess, filósofo norueguês e fundador da ecologia profunda, precisamos “pensar como uma montanha”, mergulhar no mundo, nos identificarmos com ele e não o olharmos com distancia. Este sentido de nos mesmo profundamente enraizado na relação com a natureza é chamado por Naess de “eu ecológico”. O pensamento de Naess foi influenciado pelo filósofo Benedict Spinoza, pelas ideias de Gandhi e, em particular, pela visão budista da realidade. Como princípio ideológico e como comportamento respeitoso da Natureza em sentido amplo, a “ecologia profunda” já pertencia a muitas culturas nativas americanas e sul-americanas, ao xamanismo e às filosofias orientais, mas foi Naess que a definiu pela primeira vez no Ocidente com os termos científicos e filosóficos apropriados.

Naess distingue entre “ecologia superficial”, que considera a “salvação” da Natureza, vista nesse caso, sempre em termos da sua “utilidade” e, portanto, como um “recurso ao serviço do homem”, e “ecologia profunda”, que oferece uma visão muito mais ampla e sustenta o valor intrínseco e a dignidade do mundo natural, independentemente do seu benefício para o homem. Para o fundador da ecologia profunda, o ser humano interfere excessivamente com o mundo não humano e esta situação está  degenerando cada vez mais. Tudo o que existe está interligado e o ser humano é visto por Naess como parte do todo e não como “separado” do mundo natural. O movimento ecológico superficial é visto deste ponto de vista como uma batalha contra a poluição e o esgotamento dos recursos necessários aos seres humanos, o que apenas “moverá os seres humanos para as chamadas nações desenvolvidas”. Esta frase parece-me particularmente profética neste momento. A abordagem superficial não questiona a fé na tecnologia e na sociedade industrial atual, no crescimento económico contínuo, na exploração dos recursos naturais. Para o filósofo norueguês, a ecologia de superfície nunca poderá modificar a relação do homem com a Natureza, permanecendo dentro da estrutura da sociedade e do modelo económico atual.

 O elemento decisivo mas negligenciado, realçado pelo movimento ecologista profundo, é a empatia, identificação e solidariedade com a Vida, vista como um “todo”: organismos individuais, fauna, flora, o mar, a própria Terra. Tudo isto é “sentido”, subjetivamente, como “uma intuição” – que reconhece o direito de todo o ser vivo a uma vida livre, autónoma e digna – e não como um raciocínio puramente lógico ou filosófico. 

Outro elemento característico e decisivo da ecologia profunda é “a mudança da consciência de estar centrada no ser humano para estar centrada no planeta em que vivemos” e o reconhecimento do valor intrínseco e indiscutível dos seres vivos. Um pré-requisito deste novo equilíbrio é a renúncia a qualquer forma de antropocentrismo: um pensamento revolucionário que afirma o direito absoluto à vida que não depende da maior ou menor semelhança ou “proximidade” com a nossa espécie. A implementação destes princípios implicaria mudanças, consideradas demasiado radicais para a sociedade e a economia, nas estruturas tecnológicas e nos princípios ideológicos.

 

O ponto no coração

De acordo com as grandes tradições espirituais e a ecologia profunda, a vida nada mais é do que um intercâmbio ininterrupto entre o homem – a pequena parte que cada um de nós representa no Todo – os outros seres vivos e o universo. Esta troca contínua entre o homem e o universo chama-se nutrição, respiração, mas acima de tudo Amor. 

O Zohar, o Livro do Esplendor, a obra-chave da Cabala, foi escrito há cerca de dois mil anos pelo rabino Shimon Bar Yochai e jà naquela epoca o autor afirmou que, no final do século XX, o “egoísmo” (o nosso narcisismo moderno) da humanidade atingiria os seus níveis mais elevados. A Cabala ensina-nos que a Natureza, sinónimo do “Criador”, é unitária e altruísta, e acima de tudo baseia-se na troca. 

De acordo com o Zohar, o antídoto contra o egoísmo e a solução para alcançar a harmonia é fundir-se com a Natureza e consequentemente compreender o “pensamento profundo” por detrás dela. A natureza mantém-nos constantemente sob pressão e num certo sentido empurra-nos para uma escolha de evolução (de “doação”, na linguagem cabalística); aquele que permanece impermeável a esta chamada e não participa em nenhuma troca enfrenta a morte, seja física ou psíquica.

 A atual crise global considerada deste ponto de vista é de fato uma grande crise de desejos: com cada geração os desejos tornam-se cada vez maiores, mais e mais urgentes, mais e mais absolutos e, mais cedo ou mais tarde, obrigar-nos-ão a aceitar os limites do que a Mãe Natureza nos pode oferecer. Como o Tantalus em frente da comida, nós humanos permanecemos eternamente insatisfeitos, a este respeito lembra-nos Schopenhauer: “contra um desejo que é satisfeito há pelo menos dez insatisfeitos, também o desejo esistem sempre, as necessidades sao infinitas e a satisfação é curta e medida com miserabilismo”.

Para nos protegermos da consciência e da correção do nosso crescente egoísmo, construímos troféus e escudos narcisistas de todo o tipo, tecnológicos e psicológicos. A evolução dos nossos desejos, de acordo com a Cabala, define e delineia toda a história da humanidade, desejos que são geralmente divididos em três grupos. O primeiro corresponde a desejos animais: alimentar-se, reproduzir-se, ter um lar. O segundo corresponde aos desejos humanos: dinheiro, respeito, conhecimento. O terceiro grupo de desejos diz respeito ao chamado “ponto no coração”: são os desejos da Alma, entendidos como o elemento que une e harmoniza o todo, e sempre da Alma vem o último e maior de todos os desejos: aquele anseio de União, Totalidade, cuja satisfação é descrita como um fluxo infinito de prazer, alegria e felicidade.

Segundo Daniel Goleman, autor de Inteligência Emocional , o elemento determinante para o desenvolvimento de uma atitude cultural que respeite o ambiente é a dignidade e o respeito do mundo emocional. Para o autor americano, cuidar do ambiente vai muito além de qualquer ideologia: é o nosso próximo passo evolutivo. Goleman fala de “inteligência ecológica”, a ser desenvolvida como espécie, não mais como indivíduo: uma consciência a ser alcançada “em conjunto”, indispensável para enfrentar este momento particular da história humana. Um verdadeiro desafio no qual, mais do que nunca, a vitoria só pode ser o contato com as nossas emoções e a consciência da nossa profunda e irredutível interligação. 

A enorme quantidade de informação que podemos obter diariamente na web ou nos jornais não é suficiente para nos tornarmos pessoas/cidadãos/consumidores conscientes e “eco-sustentáveis”. Para além da visão do todo, precisamos de uma mudança radical emocional/cognitiva a nível coletivo; uma mudança que nos permita reagir à poluição do ar, dos alimentos ou da informação com a mesma resposta instintiva ao perigo que durante milénios pusemos em prática na abordagem de um predador feroz.

 


[1] Emerson, R.W., Natura, Donzelli Editori, Roma, p. 22.

[2] Ibidem, p. 19.

[3] Ibidem, p. 24.

[4] Ibidem, p. 23.

[5] Ibidem, p. 21.

[6] Thoreau, H.D., Walden, BUR grandi classici bur, Milano, 2015, p. 201.

[7] Ibidem, p. 156.

[8] Emerson, R.W., Natura, Donzelli Editori, Roma, p. 132.

[9] Jung, C.G. Opere 6, Bollati Boringhieri, Torino, p. 468.

[10]Von Franz, M.L., Il mito di JungBollati Boringhieri, Torino, p. 245.

[11] Bateson, G., Mente e Natura, Adelphi Edizioni, Milano, 1984, p. 21.

[12] Bateson, G., Verso un’ecologia della mente, Adelphi Edizioni, Milano, 1977, parte 5, p. 4 [Tratto dalla conferenza per il diciannovesimo Annual Korzybski Memorial, tenuta il 9 gennaio 1970 sotto gli auspici dell’Institute of General Semantics].

[13] Bateson, G., Mente e Natura, Adelphi Edizioni, Milano, 1984, p. 23.

[14] Oreskes N., Conway E., Il crollo della civiltà occidentale, Piano B Edizioni, Prato, 2015.

[15] Naess, A., EcosofiaEcologia, società e stili di vita, RED edizioni, Milano, 1994.

[17] Goleman, D., Intelligenza Emotiva, Rizzoli, Milano,1996.