Os subterraneos da alma

             Os subterraneos da alma

                               Aldo Carotenuto

                                    Resenha de Virgínia Salles

O que hoje entendemos por “sinceridade” é algo bastante recente na vida ética da cultura europeia e é colocado pelos historiadores no período entre a sociedade medieval e o mundo moderno, o período em que Shakespeare viveu, durante o qual é descrita uma grande transformação na vida interior do homem: o impulso para a introspeção e a procura da sua verdadeira identidade para além da “máscara” social. É significativa uma passagem de Hamlet em que Polónio aconselha o seu filho Laertes: “seja sempre, e permanece fiel a ti mesmo; seguir-se-á, como a noite ao dia, que não serásm nunca falso”.

Ouvir a nossa voz interior, essa voz ténue que é geralmente abafada pelo barulho do mundo e nunca é levada em conta, é um fio condutor comum a todos os escritos de Aldo Carotenuto e, afinal, é o que mais desejamos e a verdadeira fonte de alegria e felicidade. Felicidade muiitas vezes poluída pelos papéis sociais que somos chamados, por vezes mesmo obrigados, a desempenhar.

Desde os primórdios da ideia de “sinceridade” em Shakespeare até à consciência aguda dos papéis sociais em autores mais modernos como Pirandello, Jean-Paul Sartre, Guy de Maupassant, James Joyce e muitos outros, a tensão entre o eu autêntico e as máscaras sociais marcou a história do mundo moderno e adquiriu cada vez mais centralidade até à sua celebração no conceito junguiano de “processo de individuação” ou na “traição como fidelidade a si mesmo” de Aldo Carotenuto.

O maior pecado, argumenta Carotenuto no seu livro I sotterranei dell’anima (O Submundo da Alma) – que é agora reeditado pela Bompiani num novo formato – é exatamente o que sempre reconhecemos como o valor mais elevado para um ser humano: possuir autoconsciência. A autoconsciência como culpa, lembra-nos Carotenuto, é um conceito que encontramos ao longo do percurso cultural de todas as civilizações, desde a mitologia grega e judaica até ao Romantismo e ao pensamento filosófico moderno. Este conceito é frequentemente sublinhado pelo autor e é especialmente destacado nas várias etapas que marcam o percurso existencial de dois personagens marcantes: Fedor Dostoevskji e Joë Bousquet, dois grandes intérpretes da alma e do sofrimento humano. Seguindo os seus passos, Carotenuto nos acompanha através de labirintos, cavernas e túneis escuros, os caminhos sinuosos do nosso mundo interior. Não é por acaso que Le memorie del sottosuolo abre com esta afirmação: “Sou um homem doente” e o próprio Freud já afirmava que quando um homem se interroga sobre o sentido da vida “já está doente”. Que doença? A consciência de si. Quando o homem é chamado àquilo a que Baudelaire chamava “o terrível casamento consigo próprio”, já está, de fato, condenado à incapacidade radical de aceitar mentiras e compromissos e à impossibilidade de abandonar, mesmo que por um momento, a escuta de si próprio e do seu próprio caminho.

Mas não é só isso: uma vida interior profunda é muitas vezes causa de dor e de marginalização. A diversidade tem sempre um custo muito elevado em termos de sofrimento, implica a passagem obrigatória pela solidão e reações coletivas e efeitos em cadeia que nem sempre são fáceis de gerir: a solidão, a incompreensão e a marginalização são, portanto, o preço a pagar para permanecer fiel a si próprio e não é por acaso que a vida de tantos “espíritos livres” como Dostoevskji e Bousquet foi passada sob a sombra amarga do exílio e do isolamento: “o desconforto de se desviar” descrito pela poeta Marina Cvetaeva.

O caminho para si próprio está repleto de perigos e exige uma força e uma coragem que não podemos subestimar. A diversidade e a libertação de uma existência determinada pelo “destino”, pela herança genética, pelos papéis que nos são atribuídos na família ou pela sociedade, não por acaso, continuam a ser  privilégio de algumas pessoas. Para Platão, “demónio” é aquele que ajuda outro ser humano a cumprir este destino de diversidade e Carotenuto, seguindo as pegadas do grande filósofo grego, também considera a diversidade algo “demoníaco”, porque o demoníaco é a força que nos permite libertarmo-nos do medo e mostrarmo-nos ao mundo como realmente somos.

Através de Dostoiévski e Bousquet, dois indivíduos fortes que foram capazes de enfrentar a solidão e toda a dor desta aventura humana e de envolver profundamente o leitor na sua busca atormentada de um sentido perdido, Carotenuto convida-nos a refletir sobre nós mesmos e sobre a nossa posição neste mundo contemporâneo bizarro e muitas vezes incompreensível. Tal como Pier Paolo Pasolini nos advertiu um dia contra a homologação, Carotenuto, como um demóne grego, neste livro denso e profundo, incita-nos – como sempre fez, alguém se lembra das suas aulas na universidade? – em busca de um sentido que transcende tudo o que nos foi transmitido como única forma de viver. “Uma noite terrível cairá sobre ele como um segundo deserto sobre o deserto, e o seu coração ficará cansado de vaguear”, é assim que Nietzsche define poeticamente a maldição sagrada de todo o “viandante” nesta passagem dolorosa pela dor e pelo desespero daqueles que ousaram tomar a vida nas suas próprias mãos: “a noite escura da alma”, bem conhecida pelos místicos e iluminados, o caminho negro para aceder a essa fonte luminosa chamada autoconsciência.