O mundo perdido de Pan

Virginia Salles, Roma

Pan, o grande Pan, era um deus poderoso, ligado à floresta selvagem, era o deus da Natureza: exterior e interior ao homem, e, como tal, tinha a função de ligar e proteger a vitalidade e unidade de tudo o que existe.

O advento da revolução científica, com a sua visão mecanicista do mundo e as suas “certezas absolutas”, decretou a morte de Pan e marcou o final trágico da nossa percepção de uma natureza animada: pedras tornaram-se pedras, flores tornaram-se flores, chuva… chuva, sob a lente implacável da ciência. O deus Pan afundou-se então nas camadas mais subterrâneas do nosso mundo interior para finalmente adquirir características demoníacas.

Este estado de “queda”, num certo sentido, determinou o destino do Ocidente e produziu o mundo assim como o vemos hoje e o ser humano que conhecemos.

Para Jean-Jacques Rousseau somos reféns de uma sociedade que nos afasta de nós próprios, cobertos por superestruturas artificiais geradas por uma educação que oprime e destrói a nossa natureza original que não é a razão mas a espontaneidade, o instinto e o sentimento. O motivo dominante do trabalho de Rousseau foi de fato o contraste entre o homem natural e o homem artificial e o reconhecimento deste último como a “causa” da nossa infelicidade. A nossa tarefa de seres humanos seria então reconectar o elo perdido com a terra, que é fundamental para o desenvolvimento físico e espiritual do homem. 

Apesar desta “evolução” implacável descrita por Rousseau, dentro do mesmo processo histórico, estão surgindo percepções opostas, mitos e símbolos antigos esquecidos estão despertando. Um dos mais emblemáticos é o mito da Anima mundi: a ideia de que o mundo é uma realidade animada e unitária em estreita ligação com a alma individual de cada um de nós. A anima mundi na descrição de Plotino provem da alma superior, está ao mesmo tempo em contacto com o mundo material e a esfera divina e representa o princípio unificador e vitalizante da totalidade do cosmos. Este recipiente psíquico universal, comum a todos os seres humanos, está em estreita relação com o inconsciente coletivo, descrito por Jung como povoado por arquétipos: potencialidades existenciais/experienciais representadas por figuras primordiais que desempenham a função que outrora pertenceram aos deuses, aos daimones, aos anjos. É por isso que somos capazes de recordar e esta nossa “memória” do mundo superior, as antigas divindades, pedem desesperadamente para serem reconhecidas, expressas, representadas.

Agora parece que está renascendo uma nova sensibilidade que se move nesta direção e o sofrimento causado pela perda do contacto profundo entre o homem e a sua própria natureza está abrindo o caminho para mitos subterrâneos que, das profundezas da alma, ativam os sonhos e a imaginação do homem contemporâneo.

Para sair da atual crise epocal, a humanidade está voltando a sua atenção não só para a ciência, mas também para esse mundo esquecido, em busca de novas fontes de inspiração e de novas soluções para a emergência global. Os princípios fundamentais das nossas antigas tradições sapienciais baseiam-se na consciência não só da estreita relação entre o homem e a natureza, mas sobretudo da comunicação contínua entre o mundo externo e o mundo interno, ou no conceito de “consciência planetária” – a consciência do nosso destino, não só como seres humanos, mas como partes de algo muito maior que podemos definir como uma espécie de “plano mestre”.

No seu livro In the Extreme Lands, trazido para o grande ecrã em 2007 com a direção de Sean Penn, intitulado Into The Wild, Jon Krakauer conta a verdadeira história de Christopher McCandless, um rapaz anticonformista que renuncia ao conforto de uma vida burguesa para se imergir na natureza selvagem. Uma autêntica celebração dessa busca exasperada pela natureza perdida que no fundo da almas pertence a todos nòs, o filme de Penn perturba-nos e entristece-nos, mas também nos dá momentos de pura maravilha que recordam algumas passagens escritas por Ralph Waldo Emerson (1836), no seu famoso livro Nature: “A natureza nunca usa uma aparência medíocre. Nem pode o homem mais sábio arrancar-lhe os seus segredos”.

O tema da fuga do conforto e da civilização, a coragem de fazer uma escolha radical como o abandono da vida quotidiana, mas sobretudo a busca de algo que nos traga de volta a nós próprios é o leitmotiv dos escritos de Henry David Thoreau (1817-1862), ecologista ante litteram e, juntamente com Emerson, ícone do pensamento ambientalista.

O seu famoso livro Walden or Life in the Woods (1854), livro cult da consciência ambientalista, é um manifesto contra a inércia ético-moral da sociedade americana da época, que era exasperantemente materialista, e ao mesmo tempo uma descrição detalhada do regresso do autor ao ventre da Natureza. Thoreau, chamado a “marchar ao som de um tambor diferente”, como Christopher McCandless, o protagonista do livro de Krakauer, faz uma escolha radicalmente oposta aos valores e ideais de uma sociedade em relação à qual se sentia “alienado entre os seus pares”.

Jung lembra-nos que cada alma deve passar por um processo de “individuação”, ou seja, tornar-se aquilo que é, sob a orientação do seu próprio daimon, a fim de cumprir plenamente o seu destino como ser humano. Somos artificiais na medida em que estamos “separados” e a fonte de todo o nosso sofrimento seria a consequência desta separação e da nossa visão parcial, longe da sabedoria como visão total, projeto integral: uma consequência do nosso estado de não-integração entre nós e com a Natureza.

O que hoje chamamos “consciência planetária”, de acordo com as nossas tradições sapienciais, não é uma característica do ser humano evoluído, mas é na verdade – como os estudiosos modernos como Gregory Bateson ou Arne Naess descrevem – a essência pura da Natureza.

Estamos habituados a considerar a atual consciência humana, que é o que percebemos com os nossos cinco sentidos, como “normal”; tudo o resto parece vir do reino da “imaginação”. A nossa percepção chega onde a nossa pele termina e a ideia de pertencer a algo muito maior, em que todos somos Um, parecem-nos coisas extraordinárias. Contudo, se aprofundarmos a nossa investigação e analisarmos a história das civilizações e das ideias de outros tempos, podemos observar que é exatamente o contrário: o nosso pensamento fragmentário e mecanicista desenvolvido nos últimos séculos com a sua visão redutora do mundo, uma visão que hoje mostra os seus defeitos, não é a regra, mas a excepção!

O problema atual mais urgente, que preocupa a humanidade, é a restauração da integridade do ecossistema agora disfuncional. Devemos recordar que esta integração é antes de mais nada intrapsíquica, é o equilíbrio entre essas partes de nós que definimos como “ego e inconsciente” ou “corpo e alma”, que tiveram um desenvolvimento unilateral nos últimos séculos. A nossa predilecção exasperada pelos aspectos racionais/egoicos oprime e destrói a nossa natureza original que não é a razão mas, como argumenta Rousseau, é a espontaneidade, o instinto e o sentimento. Parafraseando Paracelsus, “como dentro, assim fora”. O verdadeiro presente oferecido pela imersão na Natureza é a consciência do Todo: daquela relação sutil entre o homem e a vegetação, entre o homem e os animais, entre o homem e a Natureza como um todo. E no entanto, este sentimento de pertença que é pura alegria e esta consciência, não pertence à Natureza, mas ao próprio homem como parte dela, na verdade à harmonia entre o homem e o mundo em que ele vive.