A viagem do Herói perigos, armadilhas e a reconquista do Tesouro

Virginia Salles, Roma

“A mulher, na linguagem pitórica da mitologia, representa a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é aquele que vem a conhecê-lo”.

Joseph Campbell

Uma fórmula vencedora

Foi uma grande fonte de inspiração para Christopher Vogler, consultor de guião da Disney nos anos 80, ler o livro do historiador americano de religiões, Joseph Campbell O Herói dos mil rostos (1949). Partindo do livro de Campbell e com um olhar atento ao “Esquema” do antropólogo russo Vladimir Propp, baseado em narrativas mágicas, em contos de fadas e na teoria dos arquétipos junguianos, Vogler construiu um modelo narrativo que, nos anos noventa, se tornou um ponto de referência para artistas e escritores, incluindo Stanley Kubrick, George Lucas, Bob Dylan, Jim Morrison, etc.

“A Viagem do Herói”, como è definido o modelo de Vogler, é uma fórmula narrativa arquetípica tão poderosa que se torna uma garantia de sucesso cada vez que é reproposta na literatura ou no cinema. Matriz, O Senhor dos Anéis, Guerra das Estrelas, Harry Potter etc. são alguns exemplos desta antiga e ao mesmo tempo muito moderna trama: um caminho tomado milhares de vezes por Heróis ou Heroínas, míticas ou reais, que causaram impacto na nossa história. Muito mais do que uma fórmula narrativa de sucesso, a viagem do herói é algo que pertence à dimensão misteriosa da vida, àquela escuridão profunda impregnada de beleza e crueldade que carregamos dentro de nós e que nos forma e nos informa a partir de dentro. Jung chama-lhe “inconsciente colectivo”.

O que inspirou Campbell nos seus estudos sobre mitos de todo o mundo, desde o rico simbolismo oriental ao xamanismo, à mitologia grega ou asteca, etc… foi a intuição deste “código secreto da vida” constantemente reproposta no folclore, nos contos de fadas, nas religiões, através de uma longa série de modelos arcaicos: “qual é o nome do seu segredo? A que nome respondem as suas ansiedades, os seus desejos, as suas maiores aspirações? Que modelo heróico vive em voçê?” Campbell provavelmente nos faria essa pergunta que, no fundo,  sempre nos pertenceu. Em todos os mitos de Heróis e Heroínas que nos foram transmitidos ao longo dos milénios, existe realmente apenas um “segredo”, o convite para viver esta ùnica “aventura”.

De acordo com as muitas “histórias” que nos foram transmitidas desde tempos imemoriais, os heròis têm muitas faces, mas o seu objectivo final é sempre o mesmo: superar as provas difíceis, “matar o dragão”, libertar a donzela presioneira, “morder” a Vida e acordar do sono da inconsciência; e finalmente regressar à sua comunidade trazendo consigo “um presente”, uma bagagem de sabedoria para partilhar e transmitir.

Campbell escreveu em 1953: “A viagem do Herói é fundamentalmente interior, é uma viagem a profundidades onde resistências obscuras são superadas e poderes há muito esquecidos são ressuscitados para serem colocados à disposição do transfiguração do mundo… essa perigosa viagem não tem como objetivo a conquista mas a reconquista, não a descoberta mas a redescoberta. O Herói é o símbolo daquela imagem divina e redentora que está escondida dentro de cada um de nós e que está apenas esperando de ser encontrada e trazida de volta à vida”[1].

A viagem do Herói em terras distantes e desconhecidas, como Campbell descreve, começa com uma chamada para um mundo fora do tempo e do espaço, um mundo que sentimos existir para além dos nossos sentidos, para além das aparências e das convenções sociais. Embora muitas vezes finjamos não ter ouvido este apelo, as qualidades que definem um Herói são sempre impressas em nós, como se fossem partes de um DNA antigo e emergem nos momentos mais difíceis como imagem ideal, como tensão para a mudança, como esperança e vontade.

O que o caminho arquetípico do Herói nos repropõe é, ampliado, a antiga fórmula dos ritos de iniciação, protótipo de cada transformação profunda. Van Gennep[1], antropólogo francês, no seu livro Ritos de Passagem expõe uma análise estrutural aguda deste caminho de autoconhecimento e descreve três fases diferentes: separação, marginalidade, agregação ou consumação. Um caminho solitário e insidioso, cheio de perigos, provações, armadilhas, tentações, mas ao mesmo tempo uma grande oportunidade: a possibilidade de contatar a parte mais profunda e autêntica de nós próprios e de assumir o nossa objetivo existencial. A separação e a marginalidade são fases de extrema solidão, onde o aspirante a Herói deve procurar dentro de si o significado perdido e as suas próprias, unicas respostas às perguntas da vida. A agregação ou consumação é o momento de integração da personalidade comum/heróica e de partilha dos conhecimentos adquiridos, de uma nova forma de perceber e sentir. 

O Herói é na sua essência um homem livre, que sabe reconhecer o que é descrito na Cabala como “o seu próprio nome secreto”: um homem livre de  não estar mais preso numa identidade. Isto torna-o humanamente propulsivo, catalisador e agente de transformação (desconstrução e reconstrução cultural).

Prometeu subiu ao céu, roubou fogo aos deuses e regressou à terra. Jason reuniu à sua volta um grupo de heróis, os Argonautas, e quando chegou a Colchis, adormentou o dragão, guardião do Velo de Ouro, e se empossessou do cobiçado troféu. No seu regresso à sua pátria, conseguiu detronizar Pelias, o pai usurpador. Psyche, na sua busca do Amor, é sujeita a terríveis provações, mas emerge dessa esperiencia transformada, consciente de si própria e da sua nova feminilidade. Enéas desceu no Avernus, atravessou o assustador rio dos mortos e, após domar o temível tricéfalo Cerberus, conseguiu finalmente dialogar com a sombra do seu pai. Regressou ao mundo pela porta de marfim, trazendo consigo novas revelações. O jovem príncipe Gautama deixou o palácio do seu pai e, depois de viajar pelo mundo vivendo como um mendigo, passou atravèz das oito etapas da meditação. Um dia, sentado debaixo da árvore Bò, ele encontrou Kama-Mara, o deus do amor e da morte, alcançou a iluminação e tornou-se o Buda. Os feitos destes míticos Heróis ressoam profundamente dentro de nós, despertam o nosso Herói adormecido e fazem-nos sonhar com um novo mundo.

Coberto de lama

 

Uma história Zen narra de uma grande estátua de Buda, feita de lama, que era considerada sagrada pelo povo local durante gerações. Um dia, enquanto um monge a movia, a estátua caiu e partiu-se em várias partes. O monge notou então algo debaixo da lama, pegou um martelo e começou a partir a “cobertura”, descobrindo uma estátua de ouro maciço que tinha sido, de fato, coberta de lama para ser protegida dos saqueadores. Passou tanto tempo que os habitantes do lugar tinham se esquecido de qual era a sua verdadeira substância.

O mesmo acontece conosco que, por medo do desconhecido e para nos defendermos do mundo exterior que nos parece ameaçador, nos cobrimos de “lama” (os nossos medos, as nossas defesas, as dores que não queremos sentir). Esta “cobertura” acaba por se tornar para nós quase uma segunda pele que impede a nossa expressão ao ponto de nos fazer esquecer a nossa verdadeira essência.

Num certo momento da nossa existência pode acontecer algo que, como a estátua que se partiu, arranha a armadura e faz emergir a Vida que flui em nós. Surge então a oportunidade de partir para uma viagem de exploração do nosso mundo interior e de descer até o inferno para enfrentar os nossos Dragões/Demónios pessoais: é alì que se encontra o tesouro. Somente libertando-nos do medo é que podemos trazer à tona o que brilha dentro de nós.

 

 Os desfios

O Herói (ou a Heroína) está em todo o lado, dentro e fora de nós, ele é o arquétipo principal, o protagonista absoluto da nossa vida interior, bem como da cena do mundo. Sem o Herói, a história humana e a nossa própria experiência de vida não fariam sentido. Ele aparece em todos os contos, fábulas ou mitos que nos envolvem profundamente. Cristo é um Herói assim como Siddartha, Parsifal, Joana D’Arc, Hypatia, o Homem-Aranha ou o Pequeno Polegar. O Herói nasce frequentemente em circunstâncias não comuns, modestas ou reais que sejam, uma vez recebido  o “chamado”, deixa a sua casa, os seus afetos e parte para uma Viagem para o desconhecido.

A figura do Herói tem conotações altamente positivas, as suas qualidades são a nobreza de espírito, a bondade, a procura da verdade, a consciência do seu próprio valor e o reconhecimento do valor dos outros. Símbolo de uma pessoa elevada e de grande profundidade humana, o Herói é capaz de enfrentar corajosamente as provações e tribulações mais difíceis da vida, insuportáveis para uma personalidade não-heróica. Entre as provas mais difíceis, deve libertar-se do arquétipo paterno e depois novamente do materno, a luta contra os Demónios pela posse do Tesouro (do Elixir ou da Sabedoria). Cada acção tem como objetivo a vitória sobre um “inimigo” que tem um valor coletivo, a solução de um problema que pertence a todos, a união do que aparece como divisão e caos. A recompensa pelas provações enfrentadas (e vencidas), será o sentido de comunhão e a visão do todo, a compaixão e a capacidade de amar.

passagem crucial, é marcada pela ativação de certos arquétipos: Nascimento, Infância, Velhice, Morte, Ressurreição. Nos seus escritos Neumann destacou, através da análise dos grandes arquétipos, a relação entre ontogenia e filogenia e a relação entre natureza e cultura. Cada ser humano é portador de uma herança coletiva extremamente complexa e estratificada, depositada nas profundezas da psique, que requer ser integrada na evolução individual. A figura do Herói é fundamental neste processo de integração: uma figura exemplar que no seu caminho e no seu comportamento, no seu trabalho existencial profundo, interpreta o que cada indivíduo deve viver: ele é o futuro, presente no presente.

Neumann distingue o Herói extrovertido que atua no mundo, transformando-o, do introvertido que exerce uma influência menos visível, mas igualmente decisiva, como catalisador cultural. Ambos estes Heróis tendem para o Novo que pode ser expresso quando o Herói atinge o ápice da sua viagem e integra o seu lado feminino (a princesa libertada). Um terceiro tipo de Herói não pretende mudar o mundo, mas é projetado para a sua própria evolução pessoal: a mudança de si próprio. Também este tipo de Herói, ao transformar-se e emergir como um Homo Novus, realiza algo fundamental para a evolução da humanidade.

Nas palavras de Gustav Meyrink: “…mas poucos sabem que a mudança de um só é suficiente. O trabalho do homem radicalmente mudado é eterno, quer conhecido ou desconhecido pelo mundo. Abre uma brecha na existência que nunca se pode fechar, que outros verão, se não imediatamente, mais tarde, mesmo um milhão de anos depois. Pois aquilo que uma vez realmente é, pode deixar de ser apenas na aparência. O que me proponho fazer é  abrir uma destas brechas, ou melhor, um buraco na rede em que a humanidade està presa, mas não com sermões e propaganda, não; simplesmente libertando-me dessas malhas”[1].

 

 

O “assassinato” do Pai

 

No seu “caminho de individualização”, como Jung chama à viagem do Herói, êle terá de enfrentar um poderoso inimigo: o Pai, a sua Autoridade, ou seja, a Ordem estabelecida. O “assassinato” do pai torna-o consciente da sua própria natureza dupla (material e espiritual) e permite-lhe fazer contato com as suas próprias forças criativas. Esta etapa representa, particularmente no mundo patriarcal, o acesso a uma nova consciência e a possibilidade de substituir a velha Lei por uma nova Lei intrinsecamente ligada à descoberta do próprio mundo interior: a única possibilidade de verdadeira mudança e de emergência de novos valores. Este confronto com o pai é uma experiência arquetípica[2] que representa para o Herói uma assunção de responsabilidade e abre a porta para o encontro com as forças transpessoais.

Neumann atribui grande importância aos fatores transpessoais e aos valores coletivos e filogenéticos no desenvolvimento da individualidade e, embora reconheça a importância das dinâmicas familiares e dos traumas psíquicos vividos na infância, considera indispensavel na evolução humana os elementos que transcendem a psique pessoal e que estão enraizados no inconsciente coletivo.

“O Herói é portanto o precursor arquétipico do homem em geral, o seu destino é um exemplo ao qual a humanidade deve conformar-se, e de fato sempre se conformou: um ideal inalcançável e nunca realizado, a tal ponto que as fases do mito do Herói fazem parte dos elementos constituintes do desenvolvimento  da personalidade de cada indivíduo”[1].

O “assassinato” da Mãe

 

A luta com o Dragão e a morte simbólica da Mãe devoradora são fases de profunda transformação interior no caminho do Herói: o eu heróico encontra a força para enfrentar o poder esmagador do inconsciente e luta contra as forças regressivas que tentam impedir o seu nascimento como indivíduo. O Dragão atua na Sombra e representa um dos obstáculos mais insidiosos para o Herói no seu caminho para a auto-realização. Dragões podem ser a dependencia psicológica ou materiais da família de origem ou os condicionamentos sociais, mas o maior desafio, o Dragão mais poderoso a derrotar é a Grande Mãe Devoradora:  o Útero que chama de volta o seu filho por nascer. O objectivo último desta luta é a libertação da própria Alma (ou da donzela emprisionada) do poder do Dragão, ou seja, a retirada da energia psíquica aprisionada dentro do núcleo familiar: a separação da imagem da  Mulher/Homem amada/o do casal parental; é poder experimentar dentro de si o princípio arquetípico daquela Mãe e daquele Pai que vivem dentro de si, ainda antes da mãe e do pai pessoais. É o encontro entre o Masculino e o Feminino interior

Nos sonhos de Elena[2], 41 anos, o momento mais difícil em que a nossa sonhadora/Eroine está presa na dimensão aquática/materna e da qual  ela ainda não consegue se libertar, é representado pelas seguintes imagens:

A sonhadora está dentro de um lago, presa até ao pescoço sem poder se libertar…. está imersa na banheira e não consegue fazer descer a água… ela deve comer uma romã para ganhar o prémio que a espera.

A romã, composta de numerosas sementes, é ao mesmo tempo um símbolo de fertilidade e morte e está associada na mitologia a Kore/Persefone, que, antes de abandonar o reino do Hades, foi convencida por ele a comer os frutos da romã (o fruto da morte) e assim condenada a descer periodicamente para o submundo; mas a romã que nos faz morrer é também a romã que nos faz renascer, porque só através da morte é que podemos renascer a uma nova vida, como bem sabiam os iniciados dos cultos mistericos Eleusianos, nascidos sob o signo de Demeter, mãe de Kore.

Durante esta descida a Kore/Persephone junta-se a Hades, gerando novamente o Cosmos no ciclo eterno da vida-morte-vida. É este o significado profundo dos mistérios Eleusianos, na medida em que a iniciaçao assigurava a vida para além da morte. O antigo costume grego de plantar romãzeiras nos túmulos dos heróis è muito significativo.  

Elena, nestes sonhos, ainda está presa no mundo materno, representado oniricamente através de imagens de água.

No caminho de José, um secerdote de 34 anos, “em carreira” contra a sua vontade, o Dragão é identificado com a sua Igreja, experimentado como uma Grande Mãe que o detém e o impede de nascer como um indivíduo.

Entrei numa casa na minha cidade natal para ir buscar a minha batina de padre. Uma mulher entrega-me uma batina suja e esfarrapada.

Está num carro, no banco de trás, e não vê o condutor. Està indo para um lugar onde não sente de querer ir. Ao seu lado está um amigo, também um sacerdote. Dirigem-se para um lugar importante, onde será conferida ao amigo uma posição elevada e prestigiosa dentro da hierarquia da sua Igreja. Quando chegam o amigo sai do carro e vai em direcão ao local da sua importante “promoção” e êle vê que o seu amigo está triste e algemado. A porta fecha-se atrás dele.

Neste caso, a crise religiosa de José responde a um seu desejo de sair para o mundo afora… sair de uma situação que ele sente que já não tem mais sentido para êle, que  não lhe pertence mais: “nascer”, sair do ventre protetor da sua Igreja.

O rirtual religioso, na rua, estava prestes a começar, mas não havia água. O sonhador tem de a ir busca-la, mas a água está num lugar muito distante. Havia ao redor dêle muitos cães e ele, mortificado, pede desculpa aos cães.

Encontra-se num lugar deserto. Todos eram subjugados e viviam com medo. Alguém faz algo que não devia, enquanto o sonhador dorme. Há muitas pessoas zangadas na rua. Quando o culpado sai de casa, é apedrejado e cortado em pedaços.

Nestes sonhos emerge todo o medo de José de deixar um ambiente que ele sente que è autoritário, mas ainda não encontra a força para desafiar a Ordem estabelecida da sua Igreja que, internalizada, exerce o seu poder a partir de dentro. Neste momento é o espectro do Pai arquetípico, muito para além do pai pessoal, que o desafia e o chama à obediência.

O Dragão, a Princesa, o Tesouro

 

Cada Herói digno desse nome, tem o seu dragão para lutar, a sua princesa para salvar, os guardiões do limiar, um tesouro para tomar posse, mas o resultado final da sua capacidade heróica resume-se no encontro com a Alma, a deusa que se encarna em cada mulher e na conquista do Amor: a vida plenamente vivida e desfrutada como um fragmento da eternidade.

No famoso mito de Eros e Psique, narrado por Apuleius, quando a Psique Heroína, movida pela curiosidade de descobrir o rosto do seu amante noturno, se aproxima de Eros com uma lâmpada, ela fica deslumbrada com a beleza do seu amante. Aos pés da cama estavam o arco, as setas e os raios, as armas do deus do Amor. Enquanto Psyche o contempla, deslumbrada pelo esplendor, ela fere-se com uma das suas setas. Ao mesmo tempo, uma gota de óleo fervente salpica da sua lâmpada e queima Eros, despertando-o. Assustado, Eros foge, desaparece, deixando a donzela em desespero. Assim começa para Psiche uma dolorosa viagem de sofrimento e sacrifício, no final da qual ela reconhece a sua verdadeira identidade.

Psique fere Eros e é tambem ferida. Paradoxalmente, é a dor das duas feridas que provoca a ruptura da condição original de união inconsciente e dá origem ao amor, cujo verdadeiro significado é voltar a unir o que foi separado: só graças à separação é que surge a possibilidade de um encontro, condição necessária para o amor entre duas individualidades.

 

A heroína Psiche, na sua busca do Amor, é submetida às terríveis provações que lhe são infligidas por Vénus, a mãe de Eros, e assim passa por todo o tormento e sofrimento típico do caminho heróico de individuação. Ela emerge transformada desta dolorosa viagem, consciente da sua nova feminilidade. O despertar de Psiche representa um momento fatal no qual, além da descoberta de si própria, há também o encontro com o Outro e, mais amplamente com o mundo.

No primeiro sonho que traz à terapia, Angela, 22 anos, está na Austrália (um lugar onde, segundo a sonhadora, a Natureza é poderosa) com a sua mãe e irmã. Ela sente mas não vê a presença do seu pai e do seu namorado. Há cobras venenosas. Uma cobra morde-lhe a mão. Ela não sente terror, mas sente um arrepio e vê que há uma cobra no seu cabelo e pede, para ser levada para o hospital. A ferida é superficial  é tratada, mas ela vê debaixo da pele uma larva em movimento.

A mordida da cobra é um sinal inicial significativo de um caminho de “contaminação”: o contato com a força perturbadora e ao mesmo tempo transformadora do inconsciente e marca o início de uma viagem que requer que a pessoa ative dentro de si todo o seu potencial heróico.

 

Subjugados pela Matriz

No início da sua história o Herói, aparece quase sempre representado por uma personagem anónima, incolor, a viver no seu mundo comum. Em Matrix, um filme dos irmãos Wachowski, o personagem principal, Neo (Keanu Reeves), é no início da história um simples empregado de uma empresa multinacional, mas dentro de si sente que a vida que está vivendo não lhe pertence e sente que deve haver algo mais lá fora… No final do filme será ele a libertar os homens subjugados pelo Matrix.

Matrix é considerada um filme cult, um fenómeno coletivo, que resume através de imagens de profundidade angustiante, as questões  fundamentais que percorrem as histórias de Heróis e pessoas comuns, do pensamento humano e da filosofia.

Num momento dramático do filme, Morpheus apresenta Neo à sua nova, deserta realidade.

Neo: “Esta cadeira não é real?”

Morpheus: “O que queres dizer com real? Dê-me uma definição de real! Se se refere ao que percebemos, ao que podemos cheirar, tocar ou ver, esse real é simplesmente um sinal eléctrico interpretado pelo cérebro. Este é o mundo que voçê conhece…tem vivido num mundo fictício Neo”.

Também Platão, no famoso mito da caverna, diz algo muito semelhante ao conceito expresso pelas palavras de Morfeu: dentro da caverna, imóvel, forçado a olhar apenas à sua frente, os homens acorrentados só conseguem ver sombras, sombras que refletem na parede da caverna a silhueta dos objectos que estão atrás das suas costas e que são iluminados por um fogo ainda mais distante. Estes homens, acorrentados dentro da caverna, acreditam que as sombras representam toda a realidade.

De uma forma ou de outra, em Matriz ou na caverna de Platão, o que se impede é a possibilidade de acesso a algo essencial, através do qual o homem exprime a si mesmo, a sua própria Alma, algo através do qual o homem vive.

O Herói é, portanto, aquele que se propõe a descobrir a verdade, que aceita a aventura e o risco e que consegue encontrar uma resposta: o Elixir que vitaliza e traz uma nova consciência à comunidade.

Tudo começa com um “acontecimento traumático” ou simplesmente inesperado, que desencadeia uma crise profunda que perturba a vida do Herói: o encontro com uma pessoa especial, “apaixonar-se”, um desafio, uma doença, uma desilusão, algo sério a reparar. Este acontecimento obrigará o Herói a abandonar o seu modo de vida habitual, a acordar do seu sono inconsciente e a sair pelo mundo em busca de “algo” que possa dar sentido à sua vida.

“Mas…” argumenta Campbell, nos seus oitenta anos, numa entrevista a Michael Toms[1], “…para aqueles que receberam a chamada e sentem que há uma aventura, mas não a seguem e em vez disso permanecem na situação em que sempre viveram, porque é segura, a vida seca”. E continua: “este sentimento nasce frequentemente para além da meia-idade, quando se sabe que se atingiu o topo da escada, mas percebe-se, agora tarde na vida, que a escada sempre esteve encostada à parede errada”. O convite de Campbell permanece o mesmo: “se voçê tem coragem de correr riscos, a vida de alguma forma, se abre e vem ao seu encontro. Como Bob Walter nos lembra em Finding Joe, o documentário de Isaac Sprintis: “a coisa mais importante que o mito do Herói nos ensina é ir além do que percebemos como sendo os limites das nossas possibilidades”. E, posso acrescentar, também das nossas percepções.

Para cumprir a sua tarefa, o Herói precisa de ajuda, de um mentor para o acompanhar e apoiar (os famosos arquétipos do Feiticeiro ou do Velho Sábio, o Virgílio de Dante). A relação entre o Herói e o seu mentor é rica de significados simbólicos que recordam a relação entre pai e filho, entre Deus e o homem; nos tempos modernos, a relação entre o esportivo e o seu treinador, entre o paciente e o analista.

O grande desafio

 

A tarefa do mentor é preparar o Herói para enfrentar os seus desafios e os seus maiores medos e mostra-lo as ferramentas à sua disposição, mas ele mesmo nunca poderá enfrentar os desafios destinados ao Herói, que deve percorrer sòzinho o seu próprio caminho. Jung argumenta que a experiência do inconsciente isola-nos e muitos não podem suportar, embora estar sozinho com nòs mesmo seja a experiência humana mais elevada e decisiva e nos adverte que temos de estar sozinhos para experimentar o que nos vai sustentar quando já não formos capazes de nos sustentar. Só esta experiência nos pode dar uma base indestrutível. Marie Louise von Franz considera o potencial interno de crescimento algo perigoso, porque se não o aceitarmos e não o desenvolvemos, pode nos destruir. Para Von Franz não temos saìda… é um destino inelutável.

Quando o Herói decide partir e deixa o seu mundo comum, todo o conhecimento a que pode aceder com todo o poder que o acompanha, são-lhe apresentados sob a forma de “provas” a serem superadas. Para entrar no Mundo Extraordinário, o Herói deve superar o mais temìvel Guardião do Limiar, um monstro ou um obstáculo que deve ser contornado, vencido, ou enganado. É uma grande prova que requer o contato com o outro “nòs mesmo” que vive na Sombra, na Escuridão, com o “aparentemente incompreensível”, o próprio Mau. Este momento representa uma espécie de ponto de viragem na história, um ponto de não retorno na viagem do Herói. Na saga do Senhor dos Anéis, através desta prova Frodo e Sam ganham acesso às terras dominadas por Sauron, o Senhor das Trevas 

Este encontro com a Sombra, uma verdadeira prova de coragem, abre as portas a provas cada vez mais difíceis e a perigos cada vez maiores até o limiar da Caverna mais profunda. No caso da Matrix, este é o momento em que Neo, o nosso Herói, toma a pílula vermelha e escolhe o caminho da verdade, aceita enfrentar novos desafios, novas descobertas, novos aliados e novos inimigos.

Morpheus: “A Matrix está em todo o lado, é o mundo que foi posto diante dos seus olhos para te esconder a verdade”.

Neo: “Que verdade?”

Morpheus: “Que és um escravo, Neo, como todos os outros  nasceste acorrentado, nasceste numa prisão que não tem grades, que não tem paredes, que não tem cheiro, uma prisão para a tua mente! Esta é a sua última oportunidade, se desistir, não terá outra. Pílula azul: fim da história, amanhã acordará no seu quarto e acreditará no que quiser; pílula vermelha: fique no País das Maravilhas e veja até onde vai a toca do coelho“.

Continuando através da caverna mais profunda, o nosso Herói chega a  enfrentar a prova mais difícil e mais importante de todas: o confronto com a Morte e, desta vez, não há conhecimento ou poder que o possa tranquilizar. A metáfora do que acontece é um salto no vazio, sem uma rede de ptoteção: morrer, renunciar a si próprio, como ele pensava que era até aquele momento, e depois perceber que ainda está vivo. A  aposta nesse jogo è imensa: se ele aceitar morrer, entrará num novo mundo, numa nova dimensão existencial, consciente da sua imortalidade. Como nos dizem os mitos, o Herói arrisca-se muitas vezes e chega mesmo a morrer, uma morte que é pura transformação,  para renascer mais sábio e mais vivo do que nunca. É a morte do ego, descrita da seguinte forma por Ken Wilber: “É como se ele acordasse de um longo sono confuso para descobrir o que sempre soube: ele, o eu separado, não existe e o seu verdadeiro eu, o Todo, nunca nasceu e nunca morrerá”[2].

 

 

O Tesouro

 

 

Tendo passado esta prova central, o Herói é finalmente digno de ser chamado com esse nome e pode se apropriar da sua justa recompensa, que nos mitos/religiões/folclore é representada pelo Tesouro, a Princesa, a Espada, símbolos de algo intangível e de inestimável valor: uma maior consciência, o conhecimento de si próprio, a sua maturação. Podemos chamar de Alma, que segundo Hillman é de certa forma um livro secreto, a própria fonte da vida interior: o tesouro que abre as portas do próprio .

Mas cada transgressão implica um castigo, e agora o nosso Herói, depois de ter superado a prova central, deve enfrentar as consequências de ter desafiado as forças das trevas e ultrapassado um limite. O caminho de regresso ao coletivo e à vida comum está repleto de perigos, armadilhas, tentações… e novos desafios.

Um exemplo clássico de uma cena do mundo da ficção científica de Star Wars é a fuga de Luke Skywalker, o lendário Jedi, e da Princesa Leia da  Morte Negra com planos para derrotar Darth Vader.

O apelo do Herói, hoje, poderia ser considerado a nossa única possibilidade real de salvação, um antídoto para a homologação e um convite à procura de valores autênticos, a não ser condicionado por uma visão do mundo pré-confeccionada. Algo como um bilhete de viagem individual que também pode tornar-se uma viagem colectiva, cujo objetivo é capturar a nossa parte mais humana, para que possa desenvolver a sua tarefa existencial.

Agora o nosso Herói pode devolver aos outros o que lhe foi dado pela Vida, pode partilhar experiências, sabedoria ou acompanhar, quando necessário, um aspirante a Herói no seu caminho evolutivo.

 

Neo: “Estou morto, não estou?”

Morpheus: “Muito pelo contrário”.

Neo: “Os meus olhos estão doendo”.

Morpheus: “Porque nunca os usou”.

 

O Herói, renascido, regressa finalmente à sua vida normal, mas nada será como antes. Renascer significa aceitar que uma parte de si próprio está morta para sempre e expressar no mundo aquele “outro eu”, renascido das cinzas, mais forte e mais consciente, mas ao mesmo tempo menos tranquilizador, desconfortável, exposto a mal-entendidos e incompreencões.

 Escreve Roberto Saviano: “Infelizmente, é assim que as coisas são. Dizer herói hoje é dizer: infame. É cono dizer: quer destacar-se dos outros, quem pensa que é?”[3] “…tanto que a citação de Brecht da Vida de Galileu se tornou um cliché insuportável: Miserável é aquele país que precisa de heróis, citado como álibi para evitar qualquer gesto único, importante e raro”.

O Herói é culpado porque aponta o dedo na direcção das nossas falhas, da nossa covardia e mediocridade. O mundo precisa sim, como afirma Saviano, de Heróis. É apenas através deles que podemos explorar algo novo, uma nova condição existencial e entrar em contato com a nossa dimensão criativa. Sair do Deserto e elevar-nos acima da lógica dominante do lucro e da materialidade.

 

                              

 

 

[1]  Campbell, J., Sulla via del mito. Conversazione con Michael Toms, Edizioni Lindau, Milano, 2017, pag 97

[2] Wilber, K., Oltre i confini, Cittadella editrice, Assisi, 1995, p. 134.

[3] Saviano R., La Repubblica, 8 luglio 2018, pag. 17

 

[1] E, Neumann, Storia delle origini della coscienza, Casa Editrice Astrolabio, Roma, 1978, pag 329

[2] Il nome è naturalmente fittizio, l’età è quella reale.

[1] Van Gennep, A., I riti di passaggio, Bollati Boringhieri, Torino.

[1] Campbell, J. L’eroe dei mille volti, Ugo Guanda Editore, Parma, 2000, pag. 153

[1] Meyrink, G., Il volto verde, Adelphi Edizioni, Milano, 2000, pag. 77.

[2] L’archetipo in quanto struttura basilare dell’inconscio collettivo, carica di energia, agisce sulla psiche trasformandola. Si fa riconoscere attraverso le sue manifestazioni nell’esperienza individuale e presiede all’evoluzione della personalità esattamente come le strutture biologiche ed ormonali sottostanno ed influenzano la nostra struttura fisica. In questo modo, l’evoluzione della coscienza individuale avviene per tappe di sempre maggiore differenziazione dalla matrice originaria (l’inconscio) dalla quale proveniamo verso una coscienza sempre più ampia e  stabile, senza perdere il contatto con la fonte originaria.

[1] E, Neumann, Storia delle origini della coscienza, Casa Editrice Astrolabio, Roma, 1978, pag 329

[1] Il nome è naturalmente fittizio, l’età è quella reale.