HORIZONTES POSSIVEIS (Para além da Pandemia)

 

“Não pode haver renascimento sem uma noite escura da alma, uma aniquilação total de tudo aquilo que voçe sempre pensou e acreditou ser”.

                                                                        Hazrat Inayat Khan

 

“É preciso ter o caos dentro de si mesmo para dar à luz uma estrela dançante”.

      Friedrich Nietzsche

                                                                                       

        O rasgão

        The Trauma of Painting é o título da exposição das obras de Alberto Burri (1915-1995) em 2015 no Museu Guggenheim de New York.

Burri, um dos pintores mais complexos do século XX, foi a inspirador da ideia de arte como um “processo em ação”, uma ideia que influenciou uma geração de jovens artistas desde a década de 1960.

Os famosos “Sacos” do início dos anos 50, com telas de juta rasgadas e remendadas (entre elas o famoso “Lo strappo” (O rasgão) de 1952, uma tela atraversada por um rasgão vertical pertencem às fases mais conhecidas de Burri. Aos olhos do observador estas obras, em vez de sugerirem destruição, paradoxalmente sugerem uma abertura para outra dimensão, para além do espaço limitado da superfície bidimensional. Um enigma ainda por decifrar, a cissura parece interromper a trama habitual da existência, catalisando a nossa imaginação e arrastando-nos por caminhos inexplorados.

 

Os Cortes

Tambèm os “Cortes” de Lucio Fontana (1889-1968), intitulado pelo autor “Espera” (ou “Esperas” no caso de vários cortes), parecem querer dar vida à monotonia dos monocromos, que se tornam assim simples fundos para os cortes, verdadeiros protagonistas da obra. Uma ferida talvez, através da qual espiar o “outro lado d vida”, uma metáfora visual de mudança e abertura para um além transbordante de infinitas possibilidades. “Espera” talvez porque desses cortes pode surgir a esperança, uma saída da planura da tela para outro lugar de onde nao se volta: o ponto de não retorno, a passagem obrigatória para um novo horizonte.

 

O ponto de não retorno

O ponto de não retorno é aquele momento ou situação a partir do qual já não é possível interromper uma ação ou um processo em curso e regressar, como quando um avião muda de rota, já não tem autonomia de voo e torna-se impossível regressar ao ponto de partida: uma condição em que a mudança de rota é imperativa e irreversível.

Do ponto de vista da ecologia, por exemplo, o ponto de não retorno é o espaço temporal estabelecido pelos cientistas, para além do qual a Terra estaria tão esgotada pela poluição, desflorestação, aquecimento, etc… que não seria mais capaz de sustentar a vida. Se pensarmos na vida humana, tanto individual como colectiva, o ponto de não retorno é aquele momento em que, tendo alcançado uma certa consciência, não podemos “desaprender” ou mesmo esquecer a experiência que vivemos e os conhecimentos que adquirimos; por conseguinte, já não podemos continuar a viver como antes, como se não soubéssemos.

Neste período pandémico estamos atravessando uma situação imprevista da qual provavelmente nunca mais voltaremos como antes. Podemos até sentir em que direção estamos indo, mas nos sentimo paralisados e ainda não conseguimos ver o horizonte. A escuridão parece tomar conta e é inevitável, em momentos como estes, o confronto com o que ainda não sabemos, com o desconhecido que nos habita. Temos medo do desconhecido com os seus fantasmas, mas sobretudo da solidão e da perda dos nossos pontos de referência habituais. 

Existem algumas semelhanças entre o momento que estamos vivendo e as várias fases do caminho de transformação psico-espiritual descrito pelas nossas antigas tradições. Para encontrar a sua alma, os nossos antepassados iam literalmente para o deserto; como se só lá, em extrema solidão, pudessem vislumbrar a luz. Solidão que hoje, em tempos de pandemia, é a nossa condição habitual.  A emergência de novos conteúdos, novos padrões de pensamento e uma forma diferente de sentir exige esta peregrinação no deserto: tensão e medo, desorientação, o confronto solitário com o abismo e a terrível sensação de ter tocado o fundo e de não conseguir vir à tona. Afrontar a Morte, tanto no sentido físico como espiritual, poderia transformar-se em renascimento, não só individual mas sobretudo coletivo.

“… estar sozinho com o proprio “Sé”, ou qualquer outro nome que se queira dar à objectividade da alma. Devem estar sozinhos, não há fuga possível, para experimentarem o que os sustenta quando já não são capazes de se sustentarem a si próprios. Só esta experiência lhes pode proporcionar uma base indestrutível”, escreve Jung.

               Durante o nosso nascimento, a experiência mais dramática e solitária que um ser humano é chamado a vivenciar, morremos como criaturas amnióticas ilimitadas para renascer como seres humanos limitados e “separados” e ingressar neste mundo. Experiência traumática e dolorosa descrita por Stanislav Grof que permanece impressa em nós como o protótipo de qualquer outra transformação: o abandono do paraíso amniótico (a zona de conforto), a luta no canal do parto (o conflito), a asfixia (que lembra os sintomas do covida19 e as máscaras), a travessia do túnel escuro e finalmente a passagem triunfante para a luz (a transformação).

Quando durante a nossa vida atravessamos um período de profunda transformação, a memória adormecida desta experiência arquetípica, individual e colectiva, é ativada dentro de nós, com todas as suas “provas” e fases dramáticas a superar. É um momento revolucionário em que podemos contactar toda a força e coragem de que somos capazes para sair da nossa zona de conforto (o útero) e abrir-nos a novas possibilidades. É um momento em que símbolos até agora desconhecidos, novas expressões criativas e modalidades relacionais podem surgir porque não estamos em possesso de um “livreto de instruções”, de modelos anteriores a imitar.

 

O medo de cair

 Estamos habituados a uma violação tácita mas implacável da nossa natureza mais íntima, aceitamos situações insuportáveis de cegueira emocional e compromisso para evitar o confronto com a nossa alma: uma verdadeira auto traição que nos faz perder a bússola e afastar-nos cada vez mais do nosso autêntico caminho existencial. Em certos momentos da vida, quando nos confrontados com situações imprevisíveis e não conseguimos ver uma saída, damo-nos conta de que estamos perdidos e só então começamos a procurar, com dor e desespero, o fio sutil que nos liga de volta à nossa fonte e nos perguntamos incessantemente: em que momento é que nos afastamos de nós próprios?

Somos então chamados a olhar para além dos véus das nossas ilusões e esta não é uma tarefa agradável, diria mesmo, bastante dolorosa. As nossas projecções e ilusões mais resistentes defendem-nos do perigo de cair naquele mundo sombrio  de tudo aquilo que ainda desconhecemos sobre nós mesmos, em toda a sua dor e as suas infinitas possibilidades. O confronto com o infinito (dentro e fora de nós) é considerado na esfera espiritual o primeiro e mais difícil encontro que precede a iniciação. Há lugares angustiados na nossa alma onde, no fundo, esperamos que a luz nunca penetre, mas só olhando para o abismo e iluminando a nossa escuridão interior é que podemos encontrar o caminho.

Quando sentimos todas as nossas certezas vacilantes e todo o nosso conhecimento se revela fútil e os nossos modos habituais de pensar e de agir simplesmente perdem a sua eficácia, só então podemos questionar a imagem fictícia de nós próprios e, se tivermos coragem e suficiente sede de vida, podemos finalmente correr um risco: deixarmo-nos cair no abismo e, finalmente nos por a pergunta fundamental: quem sou eu? Então, e só então, seremos verdadeiramente transformados.

 

A noite escura da alma

 

Tristeza, perplexidade, solidão desoladora são passos inevitáveis para prosseguir a viagem interior, na qual o velho morre para dar lugar ao novo, tal como descrito na alquimia.   “A noite escura da alma” faz-nos pensar na Nigredo alquímica, a morte inicial, descrita pelos místicos como “a noite escura”. Para evoluirmos como seres humanos, devemos atraversar conscientemente pelas nossas “noites escuras”: o mesmo caminho que nos traz luz pode paradoxalmente nos levar a uma escuridão espessa, ameaçadora e angustiante. E é precisamente no momento de escuridão total que, dizem as nossas tradiçoes espirituais, a luz reaparece de forma deslumbrante, como na natureza. O principal objectivo deste caminho de auto-conhecimento é permitir a libertação do espírito, o fluxo da Alma e a interacção entre ela e o “eu”, a nossa personalidade.

Roberto Assagioli é um psiquiatra que integrou no seu trabalho psicologia e espiritualidade numa visão muito ampla e original. Esta fase escura, segundo Assagioli, é uma parte fundamental do desenvolvimento do ser humano, a fase final do caminho de transformação interior: “quando o processo de transformação psico-espiritual atinge a sua fase final e decisiva, produz por vezes um sofrimento intenso e uma escuridão interior que foi chamada pelos místicos cristãos “a noite escura da alma…” um estado emocional de depressão intensa, que pode levar ao desespero”. 

É um momento de passagem, vivido tragicamente enquanto sentimos e sofremos intensamente a tristeza e o luto de termos abandonado definitivamente tudo o que pensávamos de ser até esse momento. O prémio final tão cobiçado é o  encontro com nòs mesmos.

Trazemos dentro de nós a intuição profunda de quem realmente somos, a nostalgia desoladora da experiência da Unicidade e o desejo ardente de a viver. Na linguagem cabalística, é uma espécie de “promessa” que fazemos a nós próprios antes de entrarmos neste mundo: a promessa de procurar com toda a nossa força e determinação a nossa verdade mais profunda.  Esta intuição emerge frequentemente nos sonhos dos pacientes como um “projecto” sob a forma de imagens brilhantes.

O sonho de Angelica (62 anos de idade), escrito com a sua própria letra, intitulado “Cartagem” expressa esta intuição/projecto com sentimentos extasiantes e imagens simbólicas cheias de noumenon:

Começa uma espécie de distribuição de alimentos. Penso que era uma época de fome. Havia um quadro negro no qual uma senhora escrevia coisas do passado, cada vez mais longe até Cartagem. Vejo então uma imensa cidade afundada, bela, diziam eles no sonho que estava sob Veneza. Havia ruínas, mas também ruas intactas. Estávamos debaixo de água, havia um profundo silêncio, mas caminhávamos normalmente, olhando para estas maravilhas do passado….

…viemos de longe e conseguimos encontrar-nos aqui. No início senti uma certa angústia, porque o caminho era difícil, complicado. Aproximávamos de barco, juntamente com outras pessoas, para outro barco. Oprah[1] diz: “Este é o ponto central do mundo onde estas três pessoas marcam o tempo. É por isso que tudo funciona de forma correcta e precisa. Se eles não estivessem aqui neste lugar, acompanhando o tempo, não seria possível conhecer o tempo, os meridianos. É algo muito necessário. A Oprah diz-me: Vou mostrar-vos algo muito belo… a coisa mais bela do mundo. Então vamos para o barco e ela mostra-me uma águia imperial, mas talvez seja uma fênix porque tinha uma cauda e, voando baixo sobre mim, toca no meu ombro e voa para longe. Oprah diz: “Que sorte! Que sorte!” E eu incredulamente repeti: “Ela tocou-me! Ela tocou-me!” enquanto o pássaro voou para o céu, linda! À nossa frente vejo muitas cachoeiras, paredes infinitas de água cristalina e borbulhante com a água que sobe. O pássaro faz círculos no céu e eu pergunto-me para onde irá? Vejo muitas outras cachoeiras de água cristalina que desce de cima. Sinto uma felicidade indescritível e ouço música, uma música agradável. Num dos barcos vejo Gilberto Gil (um músico brasileiro) que cantou estas palavras: “que os seus olhos sejam sempre assim, tão grandes como uma maçã, mas tão brilhantes como um diamante ou uma gota de água”.

Este sonho trouxe para a sonhadora uma intensificação do contacto com o seu mundo interior e uma maior confiança em si mesma e no futuro.

Aquilo a que chamamos “despertar” é tanto mais difícil e doloroso quanto mais estamos imersos no nosso “sonho”, tanto mais nos identificamos com a imagem construída de nós próprios. Quando espreitamos para fora do nosso ego, sentimos a forte sensação de estar diante de um mundo desconhecido e perigoso. Sentimos incertezas, dúvidas e muita ambiguidade em relação ao nosso próprio caminho de consciência e as vezes, até um forte desejo de voltar ao ponto de partida, de voltar ao nosso recinto seguro do qual nunca deveríamos ter saído. Este é um momento delicado no qual nos arriscamos de nos submeter passivamente a estruturas convencionais, estereótipos ou a formas dogmáticas de autoridade. Arriscamos nos resignar a acreditar que a transformação pessoal não pode ser mais do que uma utopia: arriscamos a estagnação.

Jung, que atravessou a noite escura, escreve no Livro Vermelho:

 “Gritei com raiva: “E’ terrível, parece absurdo exigir isto de mim?

Tu distroi os nossos poderosos deuses, que para nós significam o que esiste de  mais alto. É este o teu caminho, minha alma?

Tu teces à minha volta a mais espessa escuridão, e eu sou como um louco aprisionado na tua rede. Mas eu gostaria que me ensinasses”.

Mas a alma falou comigo, dizendo: “O meu é um caminho de luz”.

“Chama à luz o que nós, homens, consideramos o pior das trevas? Chamas de dia à noite”?

A isto a alma respondeu com palavras que me levaram à raiva: “A minha luz não é deste mundo”.

Chorei: “Não sei nada do outro mundo”.

A alma respondeu: “E não deveria existir apenas porque não sabes nada sobre isso?”

Eu disse: “Mas e o nosso conhecimento? Será que o nosso conhecimento não tem valor para ti? Para onde foram as nossas certezas? Onde está a terra? Onde está a luz? A sua escuridão não é apenas mais negra do que a noite, é sem fundo. Se não há conhecimento, então talvez também não haja nem língua, nem palavras”…

E a alma: “Nem as palavras.  “

A Noite Negra, a obra mais famosa de São Juan da Cruz, considerada uma obra-prima da literatura mística, foi composta durante os nove meses passados na prisão do convento de Toledo. É aqui que João vive a imensa solidão e um sentimento doloroso de abandono e amadurece a experiência da noite. O conceito de “noite escura” não foi inventado por ele e não é exclusivamente cristão ou mesmo religioso; é um conceito que pertence à antiga tradição espiritual. Identificamos frequentemente a noite escura com sofrimento e nada mais, mas esta expressão refere-se a todas as várias fases desta experiência de auto-descoberta, incluindo o clímax em que a noite escura se transforma na “noite pacífica e profunda, repleta de inteligência divina”, nas palavras de João.

 O objetivo final desta viagem tão dificil é a transcendência do ego e o “acesso ao divino”: uma experiência de Unidade e Totalidade através da qual nos reavaliamos a nós próprios, os nossos valores e a nossa visão do mundo. Há muita afinidade entre o conceito da noite escura cristã descrita por João e a prática budista da crescente  desilusão/desidentificação em relação a objetos de desejo, mesmo o próprio satori. A prática de renunciar a si próprio, ou seja, às proprias necessidades egoístas parece ser o elemento central deste caminho, juntamente com a importância de viver intensamente no momento presente.

João refere-se ao estado de plenitude da experiência da “União com o Divino” como paz interior e intuição profunda, como è descrito pelas várias tradições meditativas orientais (yoga ou vipassana, por exemplo) e afirma que “Deus nunca dá sabedoria mística sem o amor do qual é infundido”. Assim, todo o conhecimento espiritual é acompanhado por um “coração impregnado de amor”, de um amor que é “infundido”, segundo o místico carmelitano, um amor que é recebido como um dom divino, no qual “a única coisa necessária é dar o próprio consentimento”.

 

 

Psicologia e a experiência do além

 

Entrei num território experiencial que para a psicologia tradicional é um território “minado”, uma zona fronteiriça envolta numa espécie de tabu: o território da ambiguidade e do perigo, um abismo ameaçador em que corremos o risco de cair. Mas é também o lugar da vida interior, da experiência do divino e do êxtase. Perigoso do ponto de vista do nosso “eu” separado e da nossa afirmação pessoal, e por isso mesmo foi removido no decurso da evolução do ser humano “civilizado”. Uma remoção necessária para a construção da nossa realidade.

Na psicanálise clássica, o conceito de ego (o eu separado) está associado à capacidade de se relacionar adequadamente com a realidade e de “funcionar” de forma satisfatória na vida quotidiana. Por conseguinte, deve ser reforçado e consolidado em contraste com o que afirmam as várias religiões orientais, segundo as quais o ego deve ser superado: é preciso ultrapassar a fronteira do ego, abandoná-lo, transcendê-lo. Dante, na Divina Comédia, cunhou o termo “transhumano” para indicar a superação dos limites humanos, a realização de um estado “semi-divino”. No Dizionario Enciclopedico Italiano, transhumano significa “mais do que humano, que transcende os limites da condição humana e ascende ao divino”. Atualmente, o termo “transhumano” é mais utilizado para indicar uma fase humana de transição, entendida no sentido da transição para uma nova forma humana bio/tecnológica como o ciborgue, por exemplo, mas originalmente era referido, como descrito por Dante, a uma transformação psico-espiritual.

O caminho “iniciático”, através do qual chegamos a uma autêntica transformação, é um processo autónomo e arquetípico decretado pela própria natureza que deve evoluir, renovar-se através de ciclos periódicos de morte e renascimento. Temos de atravessar a noite escura, descrita por São João da Cruz, antes de emergir do lado da luz. É, portanto, uma espécie de “purificação”, uma transformação progressiva do ser humano, de grande interesse psicológico. Um caminho conturbado em que os objectos de desejo perdem progressivamente de importancia, revelando a sua substancial inconsistência (no budismo chama-se “primeira nobre verdade” ou dukkha, o sofrimento universal) e que gera naqueles que por ele passam a convicção de que a única realidade “verdadeira” é o momento presente tal como ele é, na sua espontaneidade e simplicidade.

Esta dimensão espiritual/estética da existência humana na nossa civilização emerge normalmente nas experiências “do além” que attualmente são sistematicamente negadas ou patologizadas, mas é precisamente esta dimensão da experiência humana que nos falta hoje e que é extremamente necessária à nossa atual evolução e visão do mundo.

Quem corajosamente conseguir entrar nestes territórios insidiosos deve atravessar a solidão, o isolamento, o medo, a incerteza, a descentralização do ego: “a noite escura da alma”. Tudo isso hoje mais do que nunca, em tempos de pandemia, somos, voluntária ou involuntariamente, forçados a enfrentar.

O nosso antigo paradigma cultural baseado na separação cartesiana deveria reconsiderar este preconceito e a negação geral das experiências espirituais/estéticas, reconhecendo nelas não só as experiências descritas pelos místicos, que continuam a ser uma das manifestações possíveis, mas todas aquelas experiências evolutivas e criativas a que o ser humano pode aceder. Este ápice da psique humana descrita por Abraham Maslow é simultaneamente o seu centro propulsor e a fonte original de tudo de Novo que os seres humanos ainda podem conceber. Estas são experiências legítimas e profundamente humanas que podem emergir do terreno fértil de uma crise existencial, tanto individual como colectiva. Experiencias que hoje em dia exigem um reconhecimento urgente e já não podem ser evitados, negados ou removidos.

Em filosofia, a coruja, que só voa ao anoitecer, quando o sol já se pôs, é o símbolo da sabedoria que emerge “depois do fato”, quando o processo de amadurecimento da civilização já está concluído. Mas juntamente com a coruja, dizem os filósofos, entra em jogo outro animal simbólico, a toupeira: um pequeno animal cego que se esconde no subsolo e vive cavando sem saber para onde vai. Este “escavador invisível” que abre caminhos e passagens nas entranhas da natureza representa a atuaçao do espírito no “subsolo” e a sua capacidade de “sacudir” a “crosta da terra”.

Segundo Hegel, quando o solo afunda, é porque a toupeira trabalhou nele durante muito tempo, tal como acontece com as nossas mudanças repentinas: já tinham amadurecido nas nossas “entranhas”.

As grandes transformações, aquelas que aparecem, devem ser precedidas por uma revolução íntima e silenciosa dentro de nós mesmos que não é visível a “olho nu”. O que torna o resultado surpreendente é apenas a ignorância destes acontecimentos interiores e do “Espírito do Tempo” que paira sobre as nossas cabeças.

Neste momento, como toupeiras cegas e trabalhadoras estamos cavando o terreno, abrindo brechas das quais ainda não vemos a luz e só quando abrirmos as portas das nossas casas e das nossas almas, poderemos finalmente ver com os grandes olhos da coruja todas as adversidades e contradições que têm caracterizado este momento que estamos vivendo. Com o olhar agudo da coruja talvez consigamos interpretar de forma vigilante e consciente as mudanças produzidas pela crise epocal, mas apenas seguindo o caminho da toupeira que escava e transforma as fundações, conseguiremos abri uma brecha na planura da tela monocromática das nossas existências e reconciliar as nossas contradições: o rasgão luminoso que nos abre ao mistério da vida e a uma possível metamorfose.

[1] Oprah Winfrey, jornalista televisiva americana da qual a la sonhadora è uma grande admiradora.