Atravessar o pôr-do-sol

È uma coisa misera um velho, um manto esfarrapado num pau, a menos que a alma bata palmas e cante, e cante mais alto por cada pedaço do seu traje mortal.

William B. Yeats

 

 

 

 

 

Os Boomers

 

O termo baby boomer (pertencente ao boom do bebê) refere-se àqueles que nasceram nos Estados Unidos ou na Europa entre 1946 e 1964, um período de grande aumento demográfico e desenvolvimento económico. Crescidos numa era de prosperidade material, os boomers são identificados em círculos jornalísticos e meios de comunicação com certas características, valores, costumes e hábitos do  ponto de vista sociológico e considerados como uma categoria antropológica. São descritos como muito nostálgicos do estilo de vida dos anos oitenta e noventa, uma época em que, de acordo com a sua narrativa, a relação entre os seres humanos era mais autêntica e profunda. De fato, segundo alguns estudiosos, parece que a geração dos “boomers” se revelou uma geração muito mais narcisista do que os seus filhos e netos: “nunca ninguém será tão jovem e revolucionário como nós”. Uma geração que ainda reivindica uma espécie de exclusividade sobre a rebelião e a criatividade, mas, uma vez terminada a rebelião, se não tiver havido uma autêntica revolução interior – a única capaz de produzir efeitos duradouros e deixar a sua marca – a chama da insurreição acaba por se extinguir, deixando para trás apenas arrependimentos e nostalgias.

 “Toda a nostalgia é uma espécie de velhice”, escreve João Guimarães Rosa. É isso mesmo… a velhice. Os baby boomers de hoje têm de enfrentar um dos momentos mais difíceis desta grande travessia que é a vida: um pouco como estar num longo corredor sem portas, onde a única porta possível, difícil de alcançar e que muitos não conseguem ver, é a porta da percepção. Só através de uma inversão de perspectiva, que implica distanciar-se dos papéis tranquilizadores, das identificações e de tudo o que se acreditava ser até esse momento, é que o nosso rebelde envelhecido poderá finalmente experimentar a liberdade de ser e estar no mundo com um “coração aberto”, sem segundas intenções.  Um momento fatal de ruptura com o passado, no qual poderá dar um novo olhar sobre o mundo, expor-se à incerteza e ao desconhecido e iniciar uma viagem de auto-descoberta e transformação da qual poderá emergir uma nova forma de sentir, mais descentralizada e verdadeira.

 

 

Tornar-se transparente

Quando somos jovens, percebemos as estações da vida como entidades abstractas e avançamos para um horizonte infinito e indefinido, à nossa frente vemos um leque de possibilidades, mas o tempo passa implacavelmente e chama-nos a fazer as nossas escolhas. Escolhas que reduzem cada vez mais o alcance e as nuances do possível e marcam claramente os limites da vida. De repente, quando menos esperamos, o homem ou mulher que éramos perde a consistência, já não nos sentimos “vistos”, tornámo-nos transparentes. O horizonte encurta: o novo carro pode ser o último, a última mudança na casa, as últimas férias… e encontramo-nos na linha frontal, defronte do abismo. O tempo está se esgotando, o jogo está a chegando ao fim, muitos jogadores já deixaram o campo e não sabemos quem é o vencedor… mas como foi possivel esta inversão de perspectiva?

Assim, começamos a fazer-nos perguntas, antes de mais nada sobre nós próprios, na procura de novas respostas ao aparente disparate do que está acontecendo, porque as respostas do passado já não proporcionam qualquer alívio ou tranquilidade. Tentamos, numa espécie de viagem interior, recompor as fraturas, desatar os nós impertinentes que ali tinham ficado. O velho é um ruminante, tal como aqueles animais que trazem comida para a boca para a mastigar novamente, engoli-la e digeri-la de vez.

Repensar a vida, fazer um balanço são atividades habituais daqueles que estão  atraversando o pôr-do-sol. É do medo de viver que nascem os arrependimentos, e quando a nostálgica e dolorosa memória das oportunidades perdidas supera de longe os sonhos que ainda são possíveis, a velhice tem um gosto amargo que transforma as muitas privações auto-infligidas e mesmo a covardia de viver em méritos. Disfarçados de moralistas, acabamos por nos tornar intransigentes detentores da Ordem e da Estabilidade.

Não podemos negar que esta é uma fase particularmente problemática da existência, em que temos de passar por um declínio e procurar um porto seguro para além do desconhecido existencial. É uma fase de negociação com os outros, com os nossos corpos, com o mundo em geral, tendo em vista a próxima transformação. Um momento de negociação do nosso novo papel na comunidade humana, um papel diferente do da vida adulta.

 

Que papel?

 

Sentimentos de inadequação, inutilidade, ressentimento e humilhação acompanham esta negociação. O importante é ouvirmo-nos a nós próprios e sermos capazes de olhar para além das dobras da vida quotidiana, para fazer da distância consciente do mundo que agora nos pertence uma força negociadora entre nós e o destino futuro que estamos a redesenhar.

No seu livro A idade do desejo. Adolescência e velhice na sociedade da juventude eterna, Francesco Stoppa compara a velhice à adolescência como um momento de transformação, fala da arte de envelhecer e do “toque humano” como da capacidade de deixar espaço para a evolução imprevisível das coisas. Stoppa condena a nossa sociedade, que “odeia mais a velhice do que a morte” e que, com o seu desprezo insuperavel pelos idosos, rebaixa os assuntos humanos e não encoraja a passagem de gerações.

 James Hillman em A força do carater (1999), afirma que “a consideração pelo velho depende da vitalidade das tradições que mantêm ligações com o mundo invisível, seja através da religião, costume, superstição ou folclore, ou através da popularidade da linguagem poética”. Para Hillman, a velhice não é uma desgraça ou uma condenação ou a abominação de um medicina dedicadao à longevidade, mas uma forma de arte e a condição natural e necessária para que o carácter se manifeste na sua plenitude.

 

Obstáculos a serem superados e possíveis metamorfoses apresentam-se inexoravelmente pelo caminho, mas podem ser considerados não só dificuldades mas também oportunidades de expressão criativa e inovadora, momentos de esclarecimento e abertura ao que antes era impensável. Prisioneiros da ação, quando somos jovens muitas vezes não nos damos conta de que “estamos no mundo”, enquanto o espaço de suspensão em que os idosos se encontram, um espaço de liberdade da lógica da utilidade e do consumo, permite uma percepção mais verdadeira de si próprios, da profundidade e da qualidade da propria presença. É uma oportunidade de aceder a um tipo diferente de prazer, que poderia ser definido como a alegria de deixar cair os véus e reconhecer-se, de poder espiar o desconhecido escondido entre as alegrias e as tristezas na equação da vida: tudo começa subitamente a vibrar e adquire um sabor diferente, talvez o mesmo de sempre, mas que o nosso paladar era incapaz de sentir. Já não temos de provar nada a ninguém, podemos finalmente entrar na realidade nus. “Qualquer destino, por muito longo e complicado que seja, consiste na realidade num único momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem ele é”, diz o grande velho Jorge Luis Borges.

Na transformação progressiva do corpo, da mente e do nosso papel na comunidade que acompanha a fase do pôr-do-sol, encontramo-nos descentralizados. Percebemos a abertura de um abismo, de uma fratura irremediável que nos afasta definitivamente da imagem de nós próprios que o mundo nos tinha enviado através de um espelho agora enferrujado. O nosso antigo conhecimento já não nos oferece apoio, temos de recorrer a um novo tipo de sabedoria. Paradoxalmente, a vida parece passar mais depressa, mas em câmara lenta. Agora podemos observar os detalhes, os fragmentos, o essencial que anteriormente nos escapava a atenção. Começamos a ‘perder as folhas’, mas na verdade há algo de agradável nesta estranha percepção outonal do tempo que parece recuar num fluxo contínuo, impulsionado por uma força invisível que continua a fluir… e a recuar para sempre, para fora de nós. A ferida narcisista infligida na carne daqueles que atravessam o pôr-do-sol é compensada por esta leveza, de saber atraversar o Inverno e “perder as folhas”.

 

 

 

Salvação

 

Na sua fascinante autobiografia Confesso che ho vissuto (Confesso que vivi), Pablo Neruda envolve o leitor na sua vida ao ponto de se sentir parte dela. É assim que Neruda expressa o seu insaciável desejo/prazer de viver.  “Sou omnívoro de sentimentos, de ser, de livros, de acontecimentos e de batalhas. Eu comeria toda a terra. Eu beberia todo o mar”.

 Em 2017, foram publicadas as 377 cartas que Giuseppe Ungaretti (1888-1970) escreveu à sua amada Bruna Bianco, uma densa troca de cartas que revela a relação tardia do grande poeta entre  paixão e amor carnal. O encontro fatal teve lugar no Verão de 1966, no Brasil, onde Ungaretti estava hospedado para uma série de conferências. Tinha 78 anos de idade quando foi arrastado pelo fogo da paixão por Bruna (26), do qual surgiu uma nova estação criativa.

“Eu cubro o meu rosto com as duas mãos e acaricio-o, e no meu rosto o Teu renasce, nas minhas mãos, a coisa mais querida, a única que amo acima de tudo, a alma da minha alma, tu és a alma da minha alma, a última força que me resta, a minha última poesia, a verdadeira, a única verdadeira”.

 Muito frequentemente, ao fazer o balanço das suas vidas, as mulheres perguntam a si próprias o quanto elas amaram ou foram amadas, enquanto os homens são mais inclinados a avaliar a propria existência em termos das “realizações”, no sentido da auto-afirmação no mundo social e de trabalho. Hoje em dia, mais homens do que no passado vêem a sua própria essência nas dobras contraditórias das relações e sentem arrependimento pelos amores não vividos. Curiosidade, ‘diferenciação’, juntamente com a coragem de seguir os movimentos da alma e uma boa dose de anticonformismo caracterizam aquelas pessoas que vivem uma velhice plena e satisfatória sob a bandeira dos sentimentos, memórias, projetos e da plenitude dos amores experimentados. Mas talvez isso não seja suficiente.

Philip Roth, o romancista mais famoso da América, abalou uma geração inteira aos 36 anos de idade com o seu grito de liberdade: O lamento de Portnoy. Estávamos em 1969. Anos mais tarde, nos seus últimos romances O Animal Moribundo (2001) e Everyman (2006), associou o avanço da idade com “tornar-se cada vez menos”,  “não esperar por nada”: com as doenças, o declínio físico, a solidão. O protagonista de Everyman é flagelado por uma série de doenças, vive entre hospitais, análises, operações e convalescença e apercebe-se que “a velhice não é uma batalha, a velhice é um massacre”.

Em Ginger e Fred (1986), um filme amargo de Federico Fellini, estrelado por Giulietta Masina e Marcello Mastroianni, os rostos perdidos dos protagonistas no meio do grotesco comboio da televisão, exprimem, no estilo inconfundível de Fellini, toda a perplexidade e melancolia pelo tempo que avança. Mastroianni, o nosso lindo Mastroianni, entristece-nos quando, percebendo que é velho, se sente envergonhado por se despir à frente de uma mulher.

 

 

Transcendência

Em paz na parte mais interior da propria casa, iluminada por uma nova luz que revela o essencial e com o ouvido atento para ouvir o que paira no intervalo entre as palavras à medida que o inimigo invisível se aproxima da porta, a idade do pôr-do-sol se revela como a fase da vida em que podemos completar a narrativa. Não mais das nossas vidas pessoais, mas das contradições, dos desafios e daquele “algo” de misterioso que anima o nosso desejo de continuar a existir. Apesar do absurdo da condição humana, a velhice é um momento crucial através do qual podemos explorar o núcleo mais íntimo de nós mesmos, transformar e dar forma compartilhável à dor e à paixão de estar no mundo. O desejo mais profundo que habita dentro de cada um de nós é na realidade uma queda: a perda de controlo que sempre nos impediu de sermos ao extremo. A vida nos chama e não podemos evitar a derradeira tarefa de a sentir ao máximo e de a elevar para além de si mesma, uma tarefa que a velhice torna possível. Chamamos a este movimento vital “transcendência”.

Jung escreve: “A velhice é uma limitação, um estrangulamento. Mas tem-me dado muitas coisas: plantas, animais, dia e noite e o eterno no homem. Quanto mais se acentua a incerteza em relação a mim, mais aumenta a sensação de familiaridade com as coisas. Sim, é como se esta estranheza que me tinha separado do mundo durante tanto tempo se tivesse agora interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo”.

Segundo Jung, é na velhice que nos encontramos através das lembranças: as imagens do passado que desfilam perante o nosso olhar interior. De um ponto de vista psicológico, a vida no além aparece como uma sequência lógica da vida psíquica na velhice. É o primeiro passo que nos dá acesso a esse território inexplorado para além da morte: “uma preparação para uma vida após a morte, da mesma forma que, segundo Platão, a filosofia é uma preparação para a morte”.

Donna Isabel , uma mulher de 80 anos em estado terminal, pede para consultar uma psicóloga para compreender a sua vida. Após alguns dias em que revisitou toda a sua vida, viajando para trás, teve o seguinte sonho: 

O seu marido, que morreu mais de 20 anos antes, está  tomando banho e lhe pede roupa nova.

O seu marido chega vestido com roupa nova, traz uma mala e lhe diz que está na hora de partir.

Este foi o último dia em que a vi.

 

Segue-se a história do último período da vida de Agata, uma mulher de 72 anos, gravemente doente mas que desconhece o seu estado de doença.

Os sonhos de Agata:

 Ela abre as torneiras e decide inundar a casa. A casa está coberta de água e ela procura o seu traje de banho para mergulhar.

Ela me fala das nuvens e me diz que agora olha para elas com frequência  e se identifica com a suas contínuas transformações.

Ela tem de atravessar o rio.  Alguns rapazes negros puxam uma corda para  ajuda-la a atravessar ( sente tanta energia).

Grande limpeza no velho apartamento, a água jorra copiosamente.

Um membro da sua família me telefona para me informar do seu estado de saúde terminal, do qual ela não tem conhecimento.

Ela tem de tomar um banho de purificação e vestir roupa nova. Trata-se de algo muito importante: um ritual.

Brinda com a sua irmã que morreu  alguns anos antes.

Vê a cruz e pensa em Deus como um pai impiedoso que mata o seu filho.

Juntamente com o seu falecido marido, ela lava o deposito da velha casa.

Me diz que se sente em contacto com espíritos que a protegem e à noite vê nuvens que se transformam no céu. Ela me repete “é belo” e me diz que se sente bem a olhar para elas: “é o espírito dos mortos bons que vêm do Oriente”. Me diz que o seu marido a está a chamando e que ela quer ir ter com ele.

Sonha com o Evangelho de João (O apocalipse)

Sonha com o sol, toma-o nas suas mãos, mas ele não a queima. Ela me diz que o sol é Deus e que Ele a ama. Me diz que vê os anjos que veiram buscá-la.

Me pergunta como eu estou e me diz que me quer muito bem.

Vou visitá-la em casa. Ela está na cama, diz-me que compreendeu que está  morrendo, que se sente arrastada pelas boas almas e que precisa tanto de flores.

Na visita seguinte trago-lhe flores brancas. Ela me diz que ontem foi visitada por “eles”: os terríveis (todas as suas más recordações), em particular o médico de família que a apalpava quando ela era muito pequena. Me diz e repete que precisa tanto de amor.

Agata morre alguns dias depois.

A doença afeta o corpo, ataca-o, seguem a decadência, a morte, a desintegração. Um acontecimento cruel e desestabilizador para qualquer um: desaparecemos, nos tornamos nada… para onde vão os nossos afetos, recordações, prazeres, amor? Este é o ponto de vista do corpo, mas a alma conta-nos outra história, uma história de casamento: diz-nos que se reunirá com a metade quel lhe falta e que realizarà a sua completude.

A nostalgia proverbial do velho não pertence a este mundo, é “saudade de casa”: é uma sede de infinito e expressa a urgência da alma em regressar ao seu lar eterno,  uma necessidade que não pode ser compreendida com a nossa consciência racional. Em alguns contextos espirituais a morte é celebrada como um evento festivo, vemos nos antigos sarcófagos donzelas dançantes e banquetes e ainda hoje, em muitos países, é celebrada como uma festa. 

Na medida em que mudanças radicais e as experiências extremas da vida (morte e renascimento) nos levam a uma desidentificação gradual com o corpo, começamos a valorizar a importância das coisas finitas na medida em que percebemos nelas a imanência do infinito e somos levados a “acreditar” espontaneamente em “algo mais”: o elemento animico/vital da existência, esse fio invisível que nos liga aos nossos sentimentos mais íntimos que é o mesmo que nos une aos outros, o elemento incorruptível que transcende o nosso “traje mortal”.