O MISTÉRIO DO GÓLGOTA – Entre os demônios e deuses da modernidade

Virginia Salles, Roma

 

… Não te fizemos celeste nem
terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que
tu, árbitro e soberano, artífice de ti mesmo, te
plasmasses e te informasses, na forma que
tiveres seguramente escolhido. Poderás
degenerar até aos seres que são as bestas,
poderás regenerar-te até às realidades
superiores que são divinas, por decisão do teu
ânimo.

Giovanni Pico Della Mirandola
(Discurso sobre a dignidade do homem)

A morte superstar

O artista Damien Hirst conheceu a fama em 1997, graças aos seus animais secionados e acondicionados dentro de tanques de formalina, criou a obra For the love of God (“Para o amor de Deus”): um crânio “superstar” com oito mil diamantes incrustados; a obra mais cara da história. Também Andy Warhol – que nivela produtos de consumo e celebridades – encontrou na morte um ingrediente essencial da sua arte e, entre as famosas serigrafias que realizou, podemos nos deparar  também com cadeiras elétricas e vítimas de acidentes de carro. Na Itália, Oliviero Toscani, responsável pelas campanhas publicitárias da marca Benetton, lançou mão de imagens saídas dos leitos de morte de doentes terminais de Aids.

Não é somente na arte que a morte parece ter um papel de relevo: se tentássemos ver o mundo pela perspectiva de um “extraterrestre”, provavelmente nos faria muita impressão que o ícone do “Filho de Deus morto”, reine soberano e domine a cena religiosa da nossa época: a crucificação é a imagem central da psique do homem ocidental. No curso dos séculos a nossa consciência coletiva  operou mudanças na forma de se relacionar com esta imagem; partindo da sua forma impessoal, arquetípica, sem uma real ligação com o sofrimento humano, chegou até as modernas e exasperadas elaborações artísticas individuais.

Às portas do século XVI (1499), através da Pietà, Michelangelo expressava o arquétipo da Mater Dolorosa, o pranto da Grande Mãe pelo próprio filho morto. Segundo Jung, este arquétipo possui um ulterior significado para o homem moderno: Maria representa “o lamento fúnebre pelo Deus perdido”, o pranto da humanidade que fora roubada das suas imagens eternas. A imagem arquetípica da “Mater Dolorosa” – a nossa “Ísis” –  corresponde, segundo Jung, à necessária fase da mortificatio do processo alquímico de transformação, indicando a nossa natural energia vital destituída do próprio objeto. A virgindade de Maria é um componente importante do símbolo enquanto parece existir uma relação arquetípica entre a virgindade, entendida psicologicamente, e a capacidade de gerir “o fogo sagrado”, isto é, a energia transpessoal. As Vestais da Roma Antiga e as Virgens do Sol dos Incas tinham como tarefa principal a preservação do fogo sagrado.

 

Tanto na arte moderna quanto na contemporânea, as mais variadas representações da morte trazem este lamento fúnebre pelo “fogo que se apagou”. Entre os autores do século XX que mais se consolidaram nesta forma de expressão mortuária, podemos citar o austríaco Hermann Nitsch,  famoso pela suas imagens terrificantes; considerado um dos máximos expoentes do Movimento Vienense, Nitshc deu a sua contribuição com os  “Schüttbilder”  (1961), uma forma de arte que mistura sangue na composição das cores a serem empregadas num quadro. Nitsch se tornou famoso  pelo seu “Teatro das Orgias e Mistérios”, um itinerário “iniciático” no qual durante sete dias eram encenados ritos de sacrifício com animais (vacas, porcos) em substituição às vítimas humanas. Os seus “atores”, de olhos vendados e o corpo coberto das vísceras dos animais, eram içados na posição da crucificação diante dos animais sacrificados. A reação do público a esse tipo de obra era bastante variada, podendo suscitar desde curiosidade até indignação, choque e escandalização.

A Morte, essa imensa Sobra/Luz coletiva, é reinterpretada em todas as variadas espressões da arte contemporânea, podendo ser emoldurada, estripada, coberta de diamantes ou colocada sob um pedestal. Se por um lado a Morte é relegada aos cantos mais recônditos da nossa psique e das clínicas, despojada dos seus rituais ou negada em vista da nossa crescente obsessão pela eterna juventude, por outro lado ela é celebrizada nas manchetes dos noticiários e nas Bienais de Arte.

A morte espreita não só os homens, mas também os deuses morrem, ou, desprovidos da própria essência “religiosa, transformam-se em figuras de madeira, cimento ou pedra,”. Às vezes renascem. A imagem do Cristo morto na cruz predomina na nossa cultura, batendo qualquer outro ícone; é uma cena emblemática e nos faz lembrar que, para a nossa consciência coletiva, Cristo jamais ressuscitou.

A cruz tem significados universais e mexe profundamente conosco, pois representa um momento cardinal da evolução humana; esse momento evolutivo, porém, não foi compreendido na sua totalidade e ainda não encontrou o devido espaço na nossa realidade psíquica. O exoterismo cirstão o define como sendo as “núpcias espirituais”, e na nossa cultura ocidental é representado pela figura humana (o eu) pregada na cruz-mandala (o Si-mesmo). A ativação do “Si-mesmo” na psique humana e toda a dinâmica arquetípica ligada a ele, é um processo cheio de ciladas e violências, uma verdadeira “catástrofe psíquica”.  Segundo Jung não há lugar neste mundo para o nascimento do Si-mesmo, pois para o status quo consolidado, o Si-mesmo é uma verdadeira estranheza, uma aberração ou ainda pior, é um crime. Desta forma, o Si-mesmo é obrigada a se realizar “extra mundum”. Se quisermos entender e elaborar o processo interior sem sucumbir à violência ou sermos vitimados por ela, é necessário ter um ponto de observação que se encontre fora do “mundo”.

Que destino pode nos aguardar diante da morte de um “Filho de Deus”? “Punição, tormento, morte e transfiguração, afirma Jung. O acesso à dimensão eterna-universal da existência, que chamamos de “Si-mesmo”, carrega consigo a sombra do “pessoal”, e o encontro com a sombra tem início a partir de uma dolorosa humilhação: a derrota do eu que é descentralizado, relativizado, e, às vezes, aniquilado. 

Os demônios da modernidade – as nossas atuais entidades aterrorizantes – são portadores de morte; não se trata, porém, de uma morte física como é normalmente representada na arte ou, ainda, como nós tendemos a interpretá-la; ao contrário disso, é um drama de morte e renascimento no qual o eu encontra o próprio destino transpessoal e se entrega a ele. Os demônios da modernidade são os Demonios precursores de um novo início (“morte iniciática”), um passo necessário para penetrar os mistérios da existência e empreender um caminho de conhecimento. Para sobreviver a esta “crucificação”, Jung aconselha “dormir ou rezar”, mas ele sugere também “Imaginar”: uma imaginação criativa favorece a transformação dos opostos e a conseguente redenção.

 

A “virgindade” psicológica requerida no interior deste processo, define um comportamento “puro” no sentido que é capaz de entrar em contato com o universal, ou seja, um comportamento despojado, “purificado” do componente  pessoal. O eu virgem é um eu suficientemente forte e consciente para poder se relacionar com a energia transpessoal sem ser “tragado” por ela, sem passar a se identificar com ela.

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A contribuição de Rudolf Steiner

 

Quanto mais a psicologia do profundo desce até “as profundezas”, mais se aproxima do que defino “o inconsciente steineriano”. É compreensível que o pensamento de Steiner, dotado de  palavras anacrônicas e fecunda “imaginação”, pareça difícil quando se é, sobretudo, avesso a tudo o que escapa à medição objetiva e ao controle experimental.

 

Steiner é um autor dificil, revisitado por muitos escritores das mais variadas disciplinas, mas ainda hoje ignorado pela cultura dominante. Enfrentar o seu pensamento requer tanto responsabilidade quanto capacidade de desembaraçar-se entre paradoxos e palavras impronunciáveis no nosso mundo “iluminado” pela Ciência. A psicologia em geral – até mesmo a psicologia do profundo com a sua reinvindicada “respeitabilidade” científica – cada vez mais entrincheirada nos próprios limites e em descompasso com os mais recentes progressos de muitos outros setores do conhecimento – mais cedo ou mais tarde deverá se defrontar com a profunda sabedoria dos escritos steinerianos (cujos ecos ressoam hoje nos mais importantes conceitos da metapsicologia junguiana) e analisá-los à luz do próprio embasamento teórico. O pensamento de Steiner é uma fonte inesgotável de recursos, “imaginação” e humanidade. 

 

Segundo Steiner, num período remoto – que se perdeu na noite dos tempos – existia uma natural convivência entre o homem e o mundo espiritual. Para o homem de outrora não havia realmente necessidade de uma religião (que significa conexão entre o mundo profano e celeste) a indicar-lhe a existência de um mundo divino, sinalizando-lhe o caminho a ser tomado para alcançá-lo, pois, na verdade, esse mundo era modelado pela experiência. O passo successivo na evolução humana foi o nascimento da consciência de si: o homem passou a reconhecer a si mesmo  enquanto unidade “separada” desta dimensão eterna. Assim sendo, no que diz respeito à percepção direta, o homem foi sendo “suprimido” da realidade espiritual, ficando cada vez mais exposto à realidade puramente física – um “homem interrompido”, portanto. Para Steiner, daquele tempo onde o homem convia com o mundo divino sobrou “a saudade”, arrebatadora lembrança de uma outra dimensão do ser, uma dimensão invisível, povoada por entidades e potencias espirituais. Daquela lembrança e pesar nasceu o impulso tipicamente humano de buscar o acesso, a via de retorno à fonte divina, graças a um estado de consciência excepcional.

Desta forma, surgiram os mais variados métodos de iniciação: nos locais onde se reuniam os Mistérios punha-se em ação um percurso de desvendamento, isto é, graças ao temporário abandono da consciência de vigilância obtinha-se acesso ao mundo espiritual que era, assim, revelado a alguns “eleitos”, os iniciados; estes, por sua vez, dando testemunho do que haviam visto, comunicavam aos demais (aqueles que não eram capazes de captar por si mesmos) a existência de mundos que  se manifestavam para além do tempo e espaço.

Sob influência de tais lembranças e saudade, formou-se a convicção no seio da civilização paleoindiana (pré-védica) que a realidade exterior fosse somente “maja”, ou seja, “ilusão”: a “verdadeira realidade” encontra-se somente no mundo espiritual; é possível retornar a essa realidade por meio do yoga – um método de iniciação que tenta sanar a fratura e restabelecer o que se perdera para os homens. Segundo Steiner, este foi o primeiro estado de ânimo religioso e a primeira forma de iniciação foi o yoga. Para superar a ilusão e chegar à verdadeira essência, na iniciação yoga somos chamados, sobretudo, a perder o elemento pessoal, extinguir o eu e dissolvermo-nos no espírito universal, no Brâman. Para o Yoga a dissolvência do eu é nascimento espiritual. 

Steiner descreve duas atitudes fundamentais da alma no curso da evolução humana: a primeira, de matriz oriental, é justamente o ato de se libertar da individualidade, “retroceder” e se moldar no elemento divino universal. A segunda atitude, aquela que caracteriza a nossa civilização, (definida por Steiner “pós atlântica) é bem diferente: tem a ver com o se identificar cada vez mais com o próprio “eu separado”, conquistando, assim, a realidade fisica que se apresenta, neste caso, como único espaço de exploração cognitiva e único campo de atividade. Levando o homem ao domínio das leis da natureza, tal atitude produziu a Ciência objetiva que, centrada no mundo físico, é a base da nossa civilização. 

 

Em substituição à capacidade de ver na natureza o elemento divino-espiritual, a humanidade adquiriu, portanto, o sentimento da própria individualidade – o eu, mas também se revestiu de egoísmo. A imersão na matéria e o consequente abandono da “conexão” com a dimensão invisível-essencial da qual provimos, vive hoje a sua máxima intensidade – conhece um nível de exasperação tão grande que nega até mesmo a própria existência da conexão.

 

Ainda que o núcleo central da nossa época orbite sempre em torno da ideia que a realidade física é a única existente, é possível ouvir ao longe as ressonâncias de um chamado que continua a se fazer presente: são os ecos do elemento universal inserto no homem religioso do passado; esse elemento se conservou, ainda por muito tempo, na consciência da nossa afinidade com as gerações passadas, da íntima relação que nos ligava, através do sangue, à sequência das gerações passadas,   retrocedendo cada vez mais até chegar ao progenitor da estirpe, o patriarca Abrão. Assim, segundo Steiner, através do sangue que flui ao longo das gerações, o homem podia sentir a sua pertinência  espiritual, se sentia acolhido no abraço divino. Ainda hoje, em alguns contextos religiosos tradicionais, o indivíduo representa um elemento costitutivo da coletividade que, num certo sentido,  concentra em si o destino do “povo”. Da mesma forma como, por exemplo, na Antiga Grécia, era mais importante ser um “cidadão”, um ateniense do que simplesmente um homem. Segundo Steiner, o homem de tal contexto por não ser ainda suficientemente “individualizado”, não era capaz de  vivenciar plenamente o amor.

 

Para Steiner, por meio do “Mistério do Gólgota” – verdadeiro e proprio arquétipo da “Conexão” – a humanidade é ofertada com a possibilidade de ulterior evolução. O símbolo de Cristo ativa na essência mais profunda da natureza humana o impulso a reatar o contato com o que se perdera. O tema do Dragão escondido nas águas da morte ou do Cristo-herói que desce ao reino dos mortos é recorrente na nossa tradição mítico-espiritual, pois representa a “purificação” das águas e a destruição das forças “demoníacas” que ali se encontram. Conhecer o divino significa experimentar esta descida e os episódios da crucificação como destino pessoal, participando, assim, do drama cósmico.

 

Se conseguirmos “nos purificar” (eliminar temporariamente os elementos pessoais), permitindo que as imagens vivas dos máximos símbolos da cristandade penetrem nossos sentimentos e vibrem na nossa alma, poderemos alcançar as valiosas forças ativas do símbolo cristão; tal ativação, por meio da  cruz, da coroa de espinhos e do sangue vermelho vertido por Cristo, nos conduzirá ao contato–abertura que, segundo Steiner, comportará experiências interiores cada vez mais profundas.

 

A “graça” de Cristo

 

Uma humanidade “feita refém do peso da matéria e arremessada para fora da sua linha evolutiva” pode, segundo Steiner, reencontrar no símbolo do Cristo o elemento propulsivo que a resgatará, reconduzindo-a para além da matéria. Neste sentido, o episódio do Gólgota representa para a história humana um verdadeiro e próprio “divisor de águas”.

Segundo Steiner, se tivermos em mente o curso da evolução da humanidade, um episódio dessa grandeza precisou ocorrer quando já havíamos descido na matéria o suficiente para penetrá-la, mas ainda não estávamos perdidos dentro dela como nos dia de hoje. Desta forma, para “semear” no campo fértil do inconsciente humano a ideia de um Deus que desce à terra, fazendo-se carne como o homem (portanto, um Deus visível ao olho físico) o Cristianismo precisou nascer exatamente no período contíguo ao nosso cuja maior característica é o profundo materialismo. Tal “semeadura” era exatamente como se uma força descesse “do alto” e viesse enxertada no “substrato” humano (hoje chamado de “inconsciente”) e continuasse a operar, até que, no momento certo, os seus frutos estivessem maduros. Esta força continuou a agir até os nossos dias quando, por fim, o homem se encontra completamente mergulhado na matéria; o raio de alcance dessa imersão abrange o homem em todas as suas dimensões e potencialidades: físicas, intelectuais e espirituais. A força “descida do alto” é, para Steiner, “o impulso-Cristo.” Para o autor, o que faz do homem um “filho de Deus” é justamente esse impulso que leva cada um de nós a superar o conflito dos opostos simbolizado na crucificação, impelindo-nos a encontrar o nosso próprio destino transpessoal.

 

Como o Cristianismo foi acolhido sem ser compreendido, não foi capaz de cumprir a sua missão fundamental: estabelecer um elo com a dimensão da qual cada homem provém. Se, por um lado, o evento Cristo “semeou” o inconsciente humano, por outro lado, a sua incompreensão intensificou as fronteiras do eu e a consequente identificação com a dimensão física, conduzindo a humanidade até a atual grave materialização.

 

Pois a lei foi dada por Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. 

                                                 (Giovanni. 1, 17)

 

“A graça de  Cristo” (da qual fala o Evangelho de João, único dos quatro evangelhos canônicos que, segundo o pai da antroposofia, foi escrito por um “verdadeiro iniciado”) é interpretada por Steiner come a faculdade da alma de “realizar o bem por virtude da própria interioridade”. A “graça” e a “verdade reconhecida no íntimo”  têm, portanto, origem em Cristo. O elemento determinante, novo e “divisor de águas” que surgiu do fenômeno Cristo é que, pela primeira vez, se afirma a existência de “algo”, um âmago essencialmente espiritual: a boa nova anunciada é que a divindade não vive apenas naquilo que se exterioriza do laço de consanguinidade, mas ela vive também em algo espiritualmente mais profundo do que o “divino princípio paterno” fluindo no sangue através das gerações. Desta forma, a máxima “eu e o pai Abrão somos um” é substituída por outra: “eu e o Pai somos um”, que significa “um todo único”. Ainda que não suficientemente compreendida, foi esta a revolução que o Cristianimo levou a cabo e muito pode ainda incidir na compreensão e desenvolviemnto da interioridade humana. 

Segundo Jung, todas as coletividades são organismos psíquicos inconscientes dotados de grande força e perigo. As coletividades encarnam as energias arquetípicas privadas da mediação do eu consciente, e por isso, são imprevisíveis: “Quanto mais vasta a loucura, mais irrelevante o indivíduo”, mas enfatiza ainda Jung: “o portador da consciência é justamente o indivíduo”.

 

                      A força psíquica e o cerne transpessoal representado anteriormente por uma coletividade, o povo judeu, com o progenitor da estirpe, o patriarca Abrão, depois “encarnado” individualmente pela figura metafísica de Cristo, o Deus-homem, deverá ser  deslocado para a experiência interior do ser humano (o retiro das projeções).  Em termos simbólicos, o que faz de um indivíduo um “Filho de Deus” (um “rei” ou “sujeito soberano”) é esta autoridade transpessoal interior que se sobrepõe às autoridades coletivas: religiosa e política.  Neste sentido, o símbolo cristão é realmente salvífico, pois ativa no profundo do Ser o impulso à transcendência da matéria e à conexão com a força primordial impregnada em tudo aquilo que nos rodeia, e, ao mesmo tempo, salvaguarda o indivíduo das potências destrutivas com as quais ele pode se deparar enquanto realiza a passagem. 

 

Existe uma felicidade perpétua, subjacente às  contínuas mudanças de humor entre o prazer e a dor 

   O tema da libertação da alma crucificada do mundo ou do Dragão escondido nas águas da morte e da vitória sobre ele diz respeito à transformação do ser no território transpessoal do inconsciente. Segundo Steiner, a evolução universal se revela no pensamento como um processo ascendente que vai do imperfeito a uma sempre maior “perfeição”: os seres humanos evoluem, e, nessa evolução Deus se manifesta. Neste sentido, na opinião conjunta de Steiner, Platão e Jung, o devir é Deus ressurgindo da tumba na interioridade do ser humano. 

 

A natureza prossegue no homem a sua obra criativa, para além de sim mesma.  

 

Sob a luz do significado do Gólgota como o interpreta Steiner, podemos afirmar que a parte mais individual do  homem também é dotada, paradoxalmente, de valor mais universal.

 

…os homens alcançarão o máximo da paz  e da harmonia quando o indivíduo terá chegado ao máximo da individualidade

 

É bastante significativo que, na experiência clínica, o símbolo do Cristo às vezes emerja no momento de maior relevo das emergências espirituais como promessa  do processo evolutivo e coroação de uma nova e mais profunda personalidade. Durante esse percurso, a potência misteriosa do Símbolo pode suscitar grande fascínio, a intensidade é tão grande que pode dar à luz uma  dolorosa identificação com Cristo, paixão e morte. A sintomatologia física correspondente às feridas infligidas ao Cristo (os “estigmas” são exemplos evidentes) é a somatização do drama divino que não foi suficientemente elaborado e integrado no nível psíquico. Para completar o processo evolutivo, o Mistério da Cruz deverá ser experimentado, compreendido e assimilado pelo indivíduo como destino pessoal. Quando isso ocorre, a projeção se retira e o homem é, então, capaz de estabelecer uma relação individual com o “Espírito Santo”, ou seja, com a fonte eterna do ser. Segundo Stein, este é um passo importante para superar o “cristocentrismo” e que, infelizmente, não foi dado com a morte de Cristo; naquela ocasião, o indivíduo não se tornou, ele próprio, o “vaso do divino”, mas, ao invés disso, o que emergiu daquela morte foi um recepiente coletivo: a Igreja – “Vaso do Espírito Santo” e único arauto da “Mensagem divina”.  

 

Quando, por meio da experiência de Cristo, a robusta individualidade humana chega às profundas fontes da verdade, observa-se que o corpo dessas verdades é o mesmo para cada um dos homens, e a essa altura, como afirma Stein, é impossível  combatê-las: “só nos resta evoluir até o ponto de reconhecê-las”. Segundo Steiner, existe somente “uma única verdade” em estreita união com o “Sol espiritual”, o Cristo.  A responsabilidade pessoal e o impulso à própria evolução são as chaves que nos abrem as portas para a verdade, paz e harmonia entre os povos.

 

Este tipo de afirmação parece muito distante da visão científica: “Deus está morto e somente a materia é real” e ultrapassada com respeito à complexidade e ambiguidade da filosofia pós-moderna, o mais recente desenvolvimento do pensamento ocidental, que nos deu o  descontrutivismo: “cada conhecimento é relativo e falível”. 

A visão pós-moderna do mundo

 

A essência da nossa cultura pós-moderna encontra-se no pluralismo e inderminação o que inelutavelmente leva a uma ausência absoluta de base sólida para uma visão de mundo: a própria linguagem “é uma gaiola”, afirma Wittgenstein.

 

De Nietzsche a Saussure e Wittgenstein, de Foucault a Derrida a palavra de ordem é a impossibilidade de encontrar um significado indiscutível para qualquer tipo de texto escrito. Assim sendo, relativiza-se de forma radical a necessidade eterna que o homem tem de uma verdade compartilhada, de algo absoluto e permanente. Neste sentido, o pós-modernismo, segundo Richard Tarnas, é “um movimento antinômico que pressupõe uma vasta aniquilação do espírito ocidental”, uma filosofia fundamentalmente destrutiva diante de qualquer forma de saber que tenha sido transmitida pela tradição.

 

Como consequência desta anarquia espiritual generalizada, a influência da religião institucionalizada foi drasticamente redimensionada; em contrapartida, porém, o sentimento religioso parece ter sido revitalizado, acabando por estimular novas possibilidades religiosas e maior autonomia espiritual. Do avassalador caos destrutivo pós-moderno, em meio a tanta ambivalência intelectual, surgiram, portanto, novas formas de expressão e novas fontes de inspiração, indo do misticismo oriental à teologia da libertação, das novas formas de autoesploração interior ao culto da “Terr-Mãe”. Segundo Tarnas, a “morte de Deus” deu início, paradoxalmente, a uma abertura espiritual, favorecendo uma mais autêntica busca interior e o despertar do sagrado, um sentido mais amplo e numinoso da divindade.

 

As grandes invenções téricas do último século, o pensamento de G. Bateson, dos cientistas D. Bohm,  R. Sheldrake, Ervin Laszlo, A. Goswami  e de muitos outros “cientistas idealistas”, como os define Goswami, abrem as portas à possibilidade de uma visão de mundo mais ampla e complexa e uma ciência menos reducionista. A ciência contemporânea emprega as mesmas metáforas da literatura espiritual e talvez, como afirma Goswami, se encontre já suficientemente espiritualizada para poder, enfim, aproar a uma nova visão do universo em que vivemos; assim sendo, poderá deixar para trás o  paradigma de uma ciência materialista para se tornar uma ciência ancorada na “supremacia da consciência”: o mundo é somente aparentemente contínuo, material, newtoniano-cartesiano, na realidade ele é descontínuo, quântico e “consciente”. Tal pensamento é compartilhado pelos mestres espirituais do mundo todo. A tese de Goswami vê a consciência como base do ser;  para o cientista indiano, como já haviam intuído Steiner e outros teólogos cristãos, em última instância, é a consciência que cria a realidade, já que pode influenciá-la com o seu projeto criativo. Assim sendo, podemos realmente dar início à resolução dos paradoxos.

 

A concepção da natureza da imaginação (como tratada pela obra de Jung e pela psicologia pós- junguiana, mas especialmente, e antes ainda de Jung, pela obra de Steiner) é outro passo decisivo para  ampliar, ou melhor, para dar um salto de qualidade e ultrapassar a perspectiva pós-moderna. Destas várias perspectivas emerge uma realidade que tende a se configurar como uma resposta ao conjunto dos pressupostos simbólicos do indivíduo e da coletividade; isso significa que o mundo tende a  “se corrigir”, a se mostrar segundo o caráter da “visão”- imaginação que sobre ele recai. Num certo sentido, o mundo real é extraído das “projeções” e do quadro de referência dentro do qual se move. 

 

Consciência, imaginação, oração, são, portanto, geradoras de acontecimentos; paralelamente, quanto mais ampla e complexa for a visão do mundo num determinado contexto social, e quanto menos ideologicamente limitado forem o indivíduo e a coletividade, mais livre será a escolha dos “mundos possíveis” e mais consciente e determinante é a participação humana na criação da realidade. O pensamento dos cientistas contemporâneos (dos quais Steiner é um exemplo) dá um salto que, deixando para trás o racional, delinha os traços de uma fascinante e complexa visão do homem: um homem multidimensional, visão na qual podemos vislumbrar uma via que, restituindo dignidade ao homem, fortaleça a interioridade humana por meio da empatia, criatividade e inspiração. 

 

E quando a alma consegue penetrar e viver naquele mundo, ela vê que no espaço não existem aquelas fantásticas estrelas sobre as quais fala o físico, mas sim entidades viventes, viventes comunidades de seres que sobem e descem e tramam e tecem no espaço cósmico, distribuindo dádivas e talentos de cima  para baixo, de baixo para cima…

 

A simples e limitada “visão científica do mundo”, predominante ainda hoje em muitos contextos culturais, faz parte da vida de quem ainda não conseguiu evoluir  no interior da problemática intelectual mais ampla do presente e integrar as novas descobertas em âmbito interdisciplinar. Segundo Tarnas, no mundo pós-moderno, a opinião que se tem dos “irredutíveis” da visão científica é a mesma opinião que, durante a época Moderna, a Ciência dispensava ao  “ingênuo religioso”. Atualmente, cada vez mais consciente e crítica em relação a si mesma, a ciência contemporânea se mostra menos inclinada a um “cientificismo” ingênuo, e, ao mesmo tempo, está mais atenta aos seus limites teórico-conceituais e existenciais.

 

Ressurreição

 

Para Tarnas  toda grande transformação do pensamento ocidental parece ter começado com uma espécie de sacrifício arquetípico. Como se, para consagrar o emergir de uma nova e fundamental visão de mundo, o profeta principal do momento devesse sofrer algum tipo de julgamento e martírio simbolicamente significativo: julgamento e crucificação de Cristo no nascimento da cristandade; julgamento e execução de Sócrates quando nascia o espírito da Antiga Grécia; julgamento e ostracismo de Galileu nas origens da ciência moderna. Parece que o profeta mais importante do pensamento pós-moderno tenha sido Friedrich Nietzsche. Segundo Tarnas, existe uma estranha e emblemática analogia pós-moderna entre o tema do sacrifício arquetípico e a prisão interior – o extremo sofrimento psicológico que levou Nietzsche à loucura – e o advento do pensamento pós-moderno. Nietzsche morreu nos primórdios do século XX e assinou as suas últimas cartas com o pseudônimo de: “O crucificado”.

Antes de tudo, a  “Crucificação” é um arquétipo, e, como tal, parece corresponder ao estágio de evolução da consciência no qual o indivíduo reconhece a natureza ilusória do mundo material. Quando isso ocorre, o universo se revela na sua verdadeira essência como um jogo cósmico de consciência. Desta forma, a estreita representação do mundo é destruída na psique do indivíduo. Esta profunda experiência interior – que se expressa por meio da identificação do eu profano com o arquétipo da crucificação e ressurreição de Cristo – põe fim à identificação filosófica  do indivíduo com o próprio corpo. Tudo isso é ativado pelo impulso central da evolução terrestre, (o impulso-Cristo). Enquanto Steiner representou esse processo através da imagem da penetração do Cristo em nós, São Paulo o expressara com tais palavras: “Não mais eu, mas o Cristo em mim”. O impulso-Cristo revela ao homem a percepção do invisível e favoresce o início de uma relação com o mundo espiritual.

 

  Tudo é efêmero e nada mais é do que um símbolo do Eterno… 

 

A missão fundamental do homem da nossa época é elevar-se à sucessiva fase evolutiva da humanidade, definida por Steiner “alma consciente”. A premissa fundamental para tal desenvolvimento é a “liberdade de pensamento”, a “concórdia social” (a capacidade de colher a essência e a unicidade de outro ser humano) e o “conhecimento do mundo espiritual”. O conflito que caracteriza e permeia esta passagem é contido no símbolo da cruz: “ser crucificado e renascer”; o ato de beber do cálice do sofrimento de Cristo tem como efeito “digerir” o mal de Deus, e transformá-lo num Deus benévolo. Cada um que venha a integrar um aspecto desta imensa Sombra mortuária coletiva contribui para a transformação do Deus.  

 

A inversão da trajetória pós-moderna, cada vez mais urgente nos dias de hoje, diz respeito aos desenvolvimentos futuros aos quais podemos dirigir apenas um olhar de vago presságio e somente palidamente intuir. Esta passagem pode ser pensada numa relação direta com o aspecto irredutível da liberdade humana, isto é, a “livre escolha” descrita na oração incipit de Pico della Mirandola (século XV). Por isso, para além do rigor intelectual e do contexto sócio cultural, nesta humanissima equação existencial estão em jogo fatores mais subjetivos e indefinidos como a vontade, fé, inspiração, espernaça e imaginação.

 

4 Tarnas, R., A epopéia do pensamento ocidental, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2001, p. 429, T.d.a.

5 Goswami, A., Guida quantica all’illuminazione, l’integrazione tra scienza e coscienza, Edizioni Mediterranee, Roma, 2007.

6 Steiner, R, L’impulso Cristo nel Faust di Goethe, Editrice antroposofiche, Milano, 2008, p. 57.

7 Steiner, R., L’impulso Cristo nel Faust di Goethe, Editrice antroposofica, Milano, 2008, p. 96.