O Livro Vermelho de C. G. Jung

 

di Virginia Salles, Roma

 

Foge de tudo que já é dotado de forma em busca dos descerrados reinos das formas possíveis. 

            (Goethe)

 

Jamais esquecerei o que há de violento e maravilhoso na vontade de abrir os olhos, encarar tudo o que existe. E eu não conheceria a relidade se nada soubesse do prazer extremo e da máxima dor.

       (Georges Bataille)

 

libro

A coragem

………………………………

A nossa época se caracteriza por fortes impulsos contrastantes, tendências destrutivas e desagregantes, mas, ao mesmo tempo, se caracteriza também por um forte impulso em direção da paz e harmonia. Cresce a poluição e aumentam os desastres naturais, se alastram as tensões políticas, a desigualdade sócio-econômica entre os povos e o terrorismo, mas crescem também os movimentos pacifistas, o voluntariado, a valorização das diferentes perspectivas culturais, o culto à Mãe Terra, uma visão crítica juntamente com o desejo de mudança. É possível, portanto, observar grandes crises, constatar graves perigos e desastres, mas também nos deparamos com perspectivas promissoras de uma mudança epocal. No campo psicológico e, especificamente na esfera italiana, enquanto por um lado, é preocupante a crescente “medicalização” da psicologia o que comporta uma gestão cada vez mais autoritária e limitante da psique humana, por outro lado, publica-se O Livro Vermelho de C.G. Jung. Essa obra de Jung nos faz refletir sobre os nossos limites pessoais e culturais; abrindo uma porta, ela nos facilita o acesso à exploração do mundo interior e das potencialidades esperienciais e evolutivas do homem.

 

O verdadeiro ato de coragem, o único que nos é solicitado – enquanto participantes do grande milagre da Vida – é a coragem de enfrentar o Desconhecido, o elemento mais incompreensível e perturbador com o qual nos defrontamos durante a vida. As experiências que Platão definia “a loucura divina”, experiências visionárias concernentes ao mundo do espírito ou da morte, ou da “verdadeira vida”, ocorrem “de olhos fechados”, ou seja, nos recessos mais obscuros do nosso mundo interior. Considerando o fato que tais experiências foram excluídas de forma maciça da nossa vida e dos nossos interesses cotidianos é fácil entender porque os nossos sentidos – inicialmente capazes de acolhê-las e compreendê-las – se atrofiaram. O mesmo atrofiamento comprometeu a nossa capacidade de “sentir” a presença da Divindade. Ronald Laing (1975) afirma que a maioria das pessoas passa pela vida sem jamais experimentar o que se poderia chamar de “a presença de Deus”; não percebendo nem mesmo “a Sua ausência”; as pessoas captariam somente a ausência de algo fundamental, um grande e indefinido vazio: “a ausência da Sua Presença”.

Descobrir em nós mesmos algo desconhecido anteriormente, imenso, íntimo e profundamente envolvente, que nos une a “todo o resto do mundo”, nos faz compreender que, grande parte da nossa angústia existencial e das nossas infinitas necessidades nada mais é do que uma tentativa de atenuar o sofrimento desta “separação”.

  1. G. Jung, com a coragem dos endemoninhados, desce até o fundo do “Abismo” e, explorando ângulos, paragens e veredas insidiosas, se aventura pelos meandros abismais mais secretos; o resultado deste caminho é a obra fundamental de Jung, O Livro Vermelho, no qual ele nos presenteia com as revelações de outro mundo, um mundo substancialmente diferente de tudo aquilo que habitualmente conhecemos.

O Liber Novus inaugura uma nova era para a psicologia profunda. Ele é representativo de um novo tempo não porque aporte algo inovador no horizonte psicológico literário (na verdade, narrativas deste tipo abundam nas tradições espirituais das mais variadas épocas, nos livros de psicologia transpessoal, de filosofia oriental e antropologia, nos casos de experiências xamânicas etc). A “novidade” reside no fato que tenha sido Jung a escrevê-lo, com linguagem vigorosa. Jung – que jamais renegou oficialmente o paradigma dominante da cultura a qual pertencia e que até então jamais transpora de forma tão despudorada “a soleira” – foi, na realidade, o primeiro psicólogo “transpessoal”, seguido por Erich Neumann. Jung derrubou pioneiramente as barreiras do inconsciente pessoal freudiano, e chegou até o outro inconsciente que representa ainda hoje um desafio ao “mundo conhecido”, a grande descoberta em psicologia. 

O aspecto realmente surpreendente do Livro Vermelho não é, portanto, o seu conteúdo, mas sim o fato que um texto tão representativo, verdadeiro pilar sustentante de toda a estrutura da obra junguiana, tenha sido publicado somente agora. Hoje, finalmente, esse trabalho pode nos oferecer um panorama mais arejado e maior compreensão da gênese do pensamento daquele que foi o descobridor do inconsciente arquetípico. 

É difícil acreditar que a causa desse atraso de 70 anos possa ser creditada exclusivamente à compreensível apreensão por parte do autor o dos seus herdeiros; a causa principal reside num contexto cultural caracterizado por uma visão psicológica limitada que tende a patologizar este tipo de experiência subjetiva. Na época de Jung, os estudiosos da psique eram também experimentadores (a prática dos seus experimentos não era feita, porém, em cobaias de laboratório como no caso dos estudiosos do “comportamento”); eram experimentadores corajosos que arriscavam a própria pele ao enfrentar o Desconhecido, antes de tudo, dentro deles mesmos. Somente mais tarde a autoexperimentação foi substituída pelo uso de manuais e dogmas, por conceitos abstratos e classificações. Acredito que, de agora em diante, devemos refletir não só sobre a exasperada unilateralidade do modelo psicológico cultural que nos serve de referência, mas também sobre os intransponíveis confins desse mesmo modelo; adotando tal procedimento, a atual visão da psique provavelmente não será mais a mesma.

Enquanto o Livro Vermelho se mantinha protegido dentro de um cofre, aguardando a sua publicação, outros estudiosos corajosos abriram novos frentes para as experiências que exulavam da nossa ordinária percepção da realidade; alargando os confins da visão tradicional da psique aproaram a uma “outra” psicologia, mais ampla, para a qual os livros vermelhos das nossas vidas encontraram uma própria casa. Ainda antes de Jung, Rudolf Steiner foi pioneiro tanto na publicacação de “livros vermelhos” (os quais ainda hoje não são compreendidos) quanto na teorização de um paradigma cultural referencial distinto daquele compartilhado coletivamente. Roberto Assagioli, Stanislav Grof, Erich Fromm, Abraham Maslow, John Perry e tantos outros levaram o “pensamento vermelho” às últimas consequências, superando, num certo sentido, os limites da própria metapsicologia junguiana, ampliando-a até um ponto de incompatibilidade com a filosofia dominante da nossa cultura, ou seja, o “realismo materialista”. 

O Liber Novus e demais escritos deste gênero colocam em discussão as próprias raízes da cultura da qual fazemos parte, e sabe-se que toda cultura coloca em ação “mecanismos de defesa” para confirmar e manter a própria “cosmovisão”. “Livros vermelhos” que, num certo sentido,  acabam por se transformar em transgressivos e “perigosos” por uma antinomia essencial – uma relação deveras impossível com uma cultura que deslegitimou toda e qualquer experiência espiritual estranha à ortodoxia hebraico-cristã ou desenquadrada dos axiomas da ciência pré-quântica. Se, por exemplo, levarmos em consideração os paradigmas espirituais que nos foram transmitidos pela cultura clássica, pelo humanismo e as novas concepções derivadas da física moderna constatamos que ambos estão absolutamente em sintonia com o que foi escrito por Jung no seu livro mais polêmico e com outros escritos afins.

 Jung passou na própria carne a experiência e viveu num equilíbrio delicado entre a psicopatologia e o mundo espiritual; ele fez dessa experiência a base da sua metapsicologia.  Num certo sentido, narrando sua experiência interna, Jung – um membro dos dois mundos que oficialmente jamais se chocou com o paradigma do seu tempo – age como elemento instigante, “de conjunção” entre uma psicologia já superada e uma visão mais ampla da psique. A visão mais ampla acolhe e une elementos ainda hoje pertencentes tanto à psicopatologia e à “Ciência”, quanto à obscura e ambígua definição de “mundo espiritual”.

 

O nascimento de Deus na alma

 “Cala-te e escuta!…”

Enquanto Nietzsche com voz potente proclama a morte de Deus, Jung revolve  cada vez mais fundo nas camadas arqueológicas da psique e se defronta com “alguma coisa” que vai além de si mesmo, ele se vê diante de algo que não lhe pertence mais enquanto indivíduo, mas que o “transcende”. Jung se depara com o “espírito da profundeza” e os seus misteriosos segredos, inferno e êxtase e se deixa levar pelas suas correntes místicas, por terrores arcaicos, avassaladoras e valiosas descobertas. 

 Equilibrando-se entre dois mundos, entre a própria finitude e a imensidão do Ser, Jung paulatinamente se entrega àquelas experiências anímicas que o levarão cada vez mais para o alto…  na direção do mundo espiritual. Entre as mazelas de um si mesmo que Jung não reconhece mais, ele descobre Deus, o Deus interior, o Deus vivo, renascido na sua alma.

 

o escaravelho é a morte, que é necessária para a renovação; por isso brilhava como brasa atrás dele um novo sol, o sol da profundeza, o sol enigmático, sol da noite…

 

 O futuro autor do Livro Vermelho viu, sentiu, ouviu, viveu… mas agora deve regressar ao seio da coletividade humana, pôr os pés na terra novamente e afundar no solo as suas raízes. Deve se revestir dos seus trajes-papéis e, uma vez conseguido dar sentido ao seu parto existencial, deverá elaborar uma nova e pessoal cosmogonia cuja forma seja aceitável para o mundo e, ao mesmo tempo, não traia tudo aquilo que ele experimentou, sentiu …viveu.

 

 “Cala-te e escuta! Todas as tuas profundezas estão cheias de loucura!!!” 

 

Jung reentra no mundo, porém, não somente não é mais o mesmo como nem poderá fazer de conta que o é. É consciente que tudo o que conhecera até então estava agora, definitivamente, inexoravelmente mudado.

Para sair do impasse e elaborar sua experiência do “além”, Jung – o descobridor do inconsciente arquetípico – se lançara inteiramente na direção das tradições sapienciais do Oriente e das tradições do “outro pensamento” ocidental. Sobre esse “outro pensamento” é necessário dizer que, para o bem e para o mal, ele ainda faz parte da nossa cultura. Ele está entre nós exatamente como as numerosas cabeças de um gigantesco Dragão continuam a brotar, mesmo após o advento da guilhotina iluminista: a alquimia, a astrologia, o hermetismo, o zoroastrismo, a cabala, mitos egípcios, o sufismo, o pensamento mágico, os rituais pagãos. Na verdade, estudiosos de tais disciplinas esotéricas místicas sustentam a idéia que tal saber, ainda que de forma furtiva, sempre agiu – e ainda age – na nossa história individual e coletiva.

 

 A loucura é uma forma especial de espírito que adere a todas as teorias e filosofias, mais ainda à vida de todo dia.

 No Liber Novus Jung desenha, escreve, reza. Com linguagem poética e mística, com a lucidez do intelectual e uma grande veia artística, empreende a tentativa desesperada de captar e elaborar integralmente o significado derradeiro da própria experiência. Aquilo que Jung não conseguiu dizer ao mundo em vida foi confiado às paginas do seu livro secreto, o Livro Vermelho, guardado a sete chaves, num mundo de gavetas escuras e empoeiradas, ou, em versão moderna: dentro do cofre de um banco suíço. Aquilo que Jung não conseguiu expressar à luz do sol nos é entregue, agora, a 70 anos de distância. 

Através do Livro Vermelho, essa verdadeira obra de arte (a despeito do que dizia o próprio autor que não o qualificava como arte) Jung descreve a sua experiência do bem e do mal com tintas fortes e por meio de imagens excepcionais; descreve uma verdadeira e própria batalha entre o mundo da realidade e o mundo do espírito que o conduz ao limite extremo das suas forças. As cenas fantásticas descritas por Jung causam intensa e avassaladora impressão no leitor; são imagens tão ricas e impregnadas de um sentido de verdade, de um profundo sentir, que acabam por agir com força convincente na nossa alma. Nenhuma forma de conhecimento puramente racional e lógico pode ser comparada a uma força imaginativa de tamanha grandeza.

Deus é terror amoroso. Os antigos diziam que é terrível cair nas mãos do Deus vivo!

Com uma narrativa esmerada Jung prossegue corajosamente. Usando pena e tinteiro, cujas cores são matizadas, compartilha conosco reflexões sobre o cristianismo e sobre a evolução espiritual do homem, sobre o vínculo existente entre o indivíduo e a coletividade tanto dos vivos quanto daqueles que já fizeram a passagem. Narrando a sua travessia pelo reino dos mortos ele nos descreve detalhadamente a relação existente entre a sua alma e “o espírito da profundeza”, “o espírito divino”, relação que ainda hoje é um dos principais “segredos” esotéricos. 

Indagado sobre “a natureza do sagrado” Goethe respondeu: “o sagrado é aquilo que une, num elo conjunto, muitas almas”. Quando falamos de matérias esotéricas místicas falamos de um conjunto de mundos culturais cujas tradições são múltiplas e se afinam sob alguns aspectos. Nos dias atuais, tais disciplinas se encontram cada vez mais mescladas por meio de uma espécie de “contaminação” e se enriquecem graças a contínuos fluxos migratórios. O estudo das culturas esotéricas me parece hoje, na era da globalização, particularmente fecundo e pertinente, pois confronta e integra gradualmente paradigmas culturais diferentes.

A nossa visão culturalmente míope é fruto de um estreitamento e delimitação do status de “religião” aos três principais monoteísmos históricos. Contudo, na história da humanidade podemos encontrar expressões religiosas muito mais profundas e variadas, ricas de um vasto patrimônio di símbolos ainda vivos que exortam o homem à própria interioridade, ao conhecimento de si mesmo e à evolução espiritual. É justamente desta profundeza que emergem de forma violenta – como se brotassem das “cabeças cortadas do dragão”– em novos trajes e com força cada vez mais renovada, as alvoroçantes e inexplicáveis experiências descritas nos “livros vermelhos”. Vermelhos como uma válvula de pressão.

 A experiência psico-espiritual de Jung o leva a reelaborar em chave psicológica a antiga ideia do Divino dentro de cada homem e a edificar uma ponte que nos dá acesso ao “espírito da profundeza”. Com uma linguagem que vai do místico ao profético, Jung desenha nos seus mandalas um mundo esquecido que, reemergendo das trevas, se coloca diante dele; a mensagem que esse mundo envia a todos os homens anuncia o despertar das forças anímicas por meio das quais é possível beber da fonte da sabedoria eterna.

 

Nossa época está buscando uma nova fonte de vida. Eu encontrei uma e bebi dela e a água tinha gosto bom.

 

Em todas as grandes religiões, assim como em todas as possíveis abordagens “terapêuticas”, podemos constatar a existência de dois diferentes níveis de conhecimento. O primeiro deles é o nível transcendente, profundo (vertical) o qual, sendo concernente à experiência subjetiva, tende a favorecer e promover a relação entre o homem e a sua dimensão interior, entre o homem e os outros homens, entre o homem e o Universo. O segundo nível é o aspecto “restrito” (horizontal) da religião, ou da terapia, que consiste num conjunto de dogmas e regras de comportamento coletivo, social e moral, cuja característica é, às vezes, uma excessiva rigidez. 

Enquanto o primeiro aspecto, o interior, é o aspecto fundamental, que forma o núcleo autêntico e imutável de todas as religiões e de cada autêntico caminho existencial, o segundo, o horizontal, é, num certo sentido, relativo e mutável tanto no tempo quanto no espaço.  A dimensão vertical é a dimensão da União, é ela que une os seres humanos entre si e com o mundo todo, contribui para a harmonização entre os povos e atenua divergências no âmbito filosófico e religioso. A esta dimensão pertencem todos os “livros vermelhos” que descrevem experiências do mundo “invisível”, experiências relacionadas à dimensão profunda da existência. Ao longo dos séculos, tal aspecto essencial da experiência subjetiva e das religiões foi frequentemente “demonizado” ou, pelo menos, relegado a um segundo plano e ignorado. A sobrepujança do aspecto dogmático, horizontal em relação ao aspecto transcendente, vertical, nos distanciou da nossa “nascente vital”, exasperando cada vez mais as diferenças e conflitos entre povos e religiões.

 

Para quem viu o caos, não há mais ocultação, mas ele sabe que o chão treme e o que este tremor significa.

 

A mensagem que Jung nos transmite destes mundos é que a “verdade” reside nas potencialidades interiores do homem; somente o esforço individual de aperfeiçoamento, pode favorecer a busca interior. Tal mensagem parece incompatível com a posição institucional das igrejas cristãs enquanto torna legítima uma pluralidade de percursos que procuram chegar até a “verdade”, baseados, sobretudo, na coragem, confiança e busca de aperfeiçoamento individual.

Desta pluralidade de caminhos e do precioso patrimônio das nossas tradições sapienciais emerge a constatação primordial que a consciência é a “única realidade” e o fundamento do ser, pois real (verdadeiro) é tudo aquilo que age. Estamos diante, portanto, de uma filosofia oposta à filosofia que impera no nosso mundo moderno, segundo a qual somente a matéria é real.

 

 Os mortos atuam, é o que basta… 

 

Para desenvolver uma alma capaz de escrever o Livro Vermelho faz-se necessária, como fundamento, toda a sabedoria “submersa” do nosso tempo. Sabedoria esta que agiu em primeiro lugar na própria alma de Jung o qual, através do seu drama existencial, seguindo as pegadas de Goethe, personificou o drama de cada indivíduo.  Tal drama é vivido por cada homem que, tendo coragem suficiente para se colocar diante da Alma, combata contra o “espírito do seu tempo”. A coragem de percorrer o único caminho que lhe foi conferido. 

 

A oposição ao mundo exige grandeza, mas o eu sente sua pequenez quase ridícula.

 

A partir do desafio lançado ao espírito do seu tempo e do êxito da sua batalha, Jung conclui a sua obra pessoal – o seu “opus privato” – com a elaboração do conceito cardeal da sua psicologia: o “processo de individualização”, verdadeira e própria revolução que parte do indivíduo; trata-se da recuperação da alma através de um salto de extrema importância no qual se atravessa um abismo de grandioso significado para o indivíduo e para a inteira humanidade. Esta metamorfose, o advento de uma nova consciência, pertencente a uma outra ordem de saber, dá complemento à postura unilateral da nossa visão coletivamente compartilhada – um antídoto – como o é cada uma das manifestações do inconsciente arquetípico. 

 

No turbilhão do caos moram os eternos milagres.

 

A metapsicologia que emerge das páginas do Liber Novus faz referência a um conjunto de “verdades” esquecidas. Essas “verdades” profundas gravitam ao redor do axioma central do conhecimento exotérico que nos fala da possibilidade de um contato: nos recônditos mais profundos da nossa alma – além do tempo e do espaço – podemos não só entrar em contato com o “espírito da profundeza”, mas podemos “nos diluir” no Espírito, e assim fazendo, nos libertamos da “separação” e da “mortalidade”. Uma afirmação como essa, tão revolucionária para a nossa cultura, é promessa de um novo início enquanto confia ao próprio homem a chave para a compreensão de si mesmo e a possibilidade de ascender à única forma de entendimento que o torna livre.

Loucura divina e psicopatologia

Certas pessoas são conhecidas na Índia como “intoxicadas pela absorção de Deus”. A referência cabe aos indivíduos cuja energia psíquica liberada durante as práticas espirituais se revela demasiadamente forte, correndo o risco de perda de contato com a realidade. Dentro do contexto oriental a “crise espiritual”, desencadeada por este “excesso” de energia, é contida e elaborada por meio de adequados rituais; as práticas rituais contam com o apoio de um rico patrimônio mitológico que secunda e mantém livre a energia a qual, seguindo seu curso natural, permite – a quem a vive – desenvolver por meio da própria crise as potencialidades evolutivas inerentes à natureza humana.

Na nossa cultura caracterizada pelo culto do eu, a maior parte das práticas orientais não são aplicáveis de modo imediato, já que não correspondem à postura psicológica ocidental, centrada na personalidade. Consequentemente, no nosso contexto social não existem estruturas que nos apoiem durante o processo de transformação. Naturalmente, muitas pessoas que empreenderam esse tipo de viagem interior jamais regressaram. Não se deve perder de vista, porém, que este “desplugar-se” do mundo “terreno” é somente a primeira etapa no processo de transformação; a segunda etapa, onde se completa efetivamente a transformação, ocorrerá somente se regressarmos a ele. Nos últimos 150 anos, alguns personagens bem conhecidos naufragaram nestas águas profundas como, por exemplo, Van Gogh, Nietzsche, Holderlin, Rimbaud, Artaud, Strindberg, Munch, Schumann etc… 

Do ponto de vista da psicologia tradicional, uma pessoa que vivesse fenômenos mentais e físicos semelhantes aos fenômenos descritos por Jung seria imediatamente diagnosticada psicótica e a tratariam com medicamentos que suprimissem todos os sintomas, mesmo sintomas para os quais não se encontrasse uma causa biológica. Quando a pessoa atravessa uma destas “crises espirituais”, as definições “patológicas”, o uso indiscriminado di psicofármacos e a utilização das medidas repressivas convencionais comprometem gravemente o potencial evolutivo do processo autônomo. Colocando em prática tais procedimentos, o que se perde é ainda mais desalentador quando pensamos que, hoje, muitos estudiosos consideram o processo autônomo um processo evolutivo de autocura psíquica, voltado para um estado de consciência mais elevado. Mesmo assim, ainda nos dias de hoje, em muitos contextos tradicionais, o estado de transformação psicoespiritual (chamado significativamente no Oriente de “intoxicações pela absorção de Deus” e recebendo de Stanislav Grof a definição de “emergência espiritual”) não recebe a devida atenção sendo frequentemente patologizado; nos últimos anos, porém, embora no âmbito institucional não se faça ainda nenhuma distinção entre psicose e misticismo, as “desordens psíquicas associadas a uma crise espiritual” começam a ser reconhecidas. 

Aceitar a definição destas experiências subjetivas em termos de “desordens psíquicas associadas à espiritualidade” não significa que todos os estados habitualmente diagnosticados como psicóticos correspondam a uma crise de transformação psicoespiritual ou que tenham, imprescindivelmente, um potencial de cura. Seria um grave erro romantizar ou idealizar estados psicóticos que poderiam expressar, pelo contrário, um sério problema médico. Infinitamente mais comum no nosso contexto social – embora igualmente grave – é considerar patológicos alguns estados psíquicos que, uma vez bem integrados, representariam um progresso evolutivo e uma verdadeira mudança na vida da pessoa.

Este é um assunto espinhoso, de difícil solução e não somente no âmbito psicológico. Um assunto que reside nas “sombras” do nosso inconsciente coletivo e que está ancorado num terreno “minado”. Creio que hoje, mais do que nunca, seja preciso tanto uma maior abertura quanto um conhecimento mais sutil das dinâmicas profundas da psique; se o fizermos, evitaremos o risco de “jogar fora o bebê com a água do banho”. A história humana dos últimos séculos é repleta de livros vermelhos que permanecem trancados em milhares de gavetas; temendo a moderna inquisição, aguardam “tempos melhores”. A versão inquisitória dos dias de hoje tem início com um implacável diagnóstico e prossegue pelas várias etapas e rituais que definem o percurso de banimento: a esclusão do contexto social e humano daquele que se encontra “fora” de si.

Quem vem do mar é doente. Mal consegue suportar o olhar das pessoas. Pois elas lhe parecem todas bêbadas e alucinadas.

Laing considerava a “normalidade” uma espécie de “integração alienada” no mundo em que vivemos; já a loucura dos seus pacientes era pensada por ele como uma “caçoada”, uma caricatura grotesca do que poderia ser a cura natural daquilo que costumamos qualificar como “sanidade mental” (Laing, 1989). Para ele a verdadeira loucura é a nossa, é a loucura de acreditar que somos sãos. Laing é um dos teóricos do movimento da “antipsiquiatria”, que se opõe às teorias e prática da psiquiatria tradicional, acusando-a de cronicizar, e até mesmo criar, as doenças mentais. Além de psiquiatras, participaram deste movimento também antropólogos, sociólogos, diretores de cinema, filósofos e artistas. Na Itália ele é o movimento responsável pelo desmantelamento dos manicômios, sendo o seu maior expoente Franco Basaglia. 

A autoexperimentação de Jung, descrita no Livro Vermelho, restitui dignidade a estas experiências “do outro mundo” que ainda hoje são demonizadas; desta forma, Jung contribui sobremaneira à compreensão das psicoses e concorre para ampliar o “mapa” do inconsciente oficialmente reconhecido. Além disso, ele é também responsável pela reformulação do conceito de psicoterapia. Jung abandona a ideia de psicoterapia como “método de tratamento” e passa a vê-la como uma prática voltada para a evolução interior do indivíduo, fornecendo, assim, elementos preciosos para um diagnóstico diferencial entre a psicopatologia e a inserção deste tipo de experiência numa visão mais ampla e evolutiva da consciência.

No Liber Novus Jung nos convida a participar da sua “travessia noturna”, da luta do seu espírito para se libertar da prisão das estruturas mentais convencionais – uma etapa importante do desenvolvimento da consciência humana tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. O núcleo desta ativação energética é o arquétipo do Centro; chamado por Jung de “ Si-mesmo” ele é representado nos seus desenhos de mandala que oferecem uma ulterior chave de compreensão da gênese do modelo de psicoterapia de Jung. O revelado por esse “desenhar” não só confirma que Jung seja precursor de uma nova psicologia, como talvez demonstre – mais do que os seus escritos “canônicos” – o quanto a sua psicologia ainda possa ser de grande influência tanto na evolução da consciência ocidental quanto na história social e intelectual deste século.

Conforme relatam os recentes estudos e pesquisas efetuados por Grof e outros expoentes da psicologia transpessoal, nas últimas décadas um número crescente de pessoas viveu experiências “insólitas” como aquela descrita por Jung e, ao invés de uma queda inexorável na loucura, extraordinários “renascimentos” emergiram desses estados mentais; as pessoas adquiraram maior bem-estar psicofísico, maior entendimento e um modo diferente de se relacionar com o mundo e com os outros. A atual visão da psique parece superficial e inadequada para explicar tais fenômenos. A loucura – sobre a qual, hoje, um número cada vez maior de pessoas é capaz de falar – não significa necessariamente a queda na escuridão e a exclusão da comunidade humana, mas pode representar um momento de crescimento existencial, de liberação e renascimento.

 

O que Jung chamará mais tarde de “imaginação ativa” foi o instrumento técnico utilizado por ele, durante a sua descida ao mundo subterrâneo para chegar aos conteúdos arquétipos do inconsciente e, sucessivamente, conseguir “materializá-los” e expressá-los através do diálogo interior, da escritura, da pintura etc…

 

Atualmente a pesquisa e a prática terapêutica ocidental aprofundam cada vez mais o estudo das várias modalidades de acesso ao inconsciente que se inspiram, principalmente, nas técnicas tradicionais do Oriente, nas “viagens xamânicas” e nos múltiplos efeitos da meditação e respiração. Pode-se dizer que ocorreu uma “redescoberta” do potencial transformativo destes antigos meios de autoexploração e acesso ao mundo interior. Grof, por exemplo, enfatiza o aspecto de desenvolvimento psicológico e espiritual da respiração “holotrópica”, um modo de autoexploração profunda que utiliza a respiração, a música evocativa e o trabalho corporal. Por outro lado, J.A. Gaiarsa, propondo uma forma de terapia baseada nos princípios bioenergéticos da respiração, oferece uma visão mais pragmática, focalizada, sobretudo, no aspecto biológico e psicossomático em paralelo com o aspecto do desenvolvimento psicológico.

Reproduzo em seguida alguns trechos da “travessia noturna” de Giovanni, 36 anos. Tal experiência, ativada por meio da respiração holotrópica, foi, em seguida, escrita pelo próprio experienciador. 

Fora o estômago e o pescoço

O meu pescoço começa a doer, talvez porque eu me mexa muito ou sabe-se lá o motivo.  Tento me massagear, depois alguém me ajuda. Mas preciso ficar sozinho novamente.

Batalha (preparação).

Uma cena já vista em outras respirações. Sinto que estou no comando de uma aldeia de guerreiros que logo será atacada por um inimigo muito forte que não poderá ser derrotado. Além de ser o chefe da aldeia, eu sou também o seu chefe espiritual. Reúno o povo diante de mim, tendo à minha frente principalmente alguns guerreiros que guiam alguns grupos; invocamos todos juntos a proteção de Manji, a deusa mãe da qual descendemos e para a qual voltaremos. Tenho entre as mãos um punhado de terra que espalho diante de mim: todos os homens nascem e morrem. Nós morreremos em batalha.

Batalha.

Tenho a impressão que, no campo de batalha, eu sou ao mesmo tempo o pai e o filho. O filho tem quatorze anos, e está muito assustado. Começo a respirar velozmente, resfolegando; a visão do inimigo enfileirado diante de nós é terrível e, para mim significa somente uma coisa:  morte  certa. Meu pai percebe a minha dificuldade e, sem dizer nada, pousa uma mão sobre o meu ombro. O ataque começa: ao redor há uma grande confusão, meu pai e eu combatemos juntos, lado a lado, mas logo ele é atingido no flanco, talvez por uma bala. O tiro é medonho, a ferida profunda: como pai, caio no chão e tento segurar as minhas vísceras, mas pouco depois as forças me abandonam. Entrego a espada ao meu filho e, antes de morrer, quero ouvi-lo gritar: “Ay!” quero que ele ouça dentro de si a minha força e determinação. Mas ele está demasiadamente assustado, o tempo se esgota e eu morro. Como filho, choro a morte de meu pai: o momento é assustador, o futuro incerto. Invoco a presença de Manji, acomodo o melhor que posso o cadáver de meu pai e deixo entre as suas mãos a espada que o seguiu em vida; o seu sangue me cobre da cabeça aos pés e, como sinal de reconhecimento, eu o passo pelo meu rosto. Assim, sangue do seu sangue, estou pronto para combater e, provavelmente, também eu abraçarei a morte.  

Visões e aparições.

Começa um período mais tranquilo, interno da respiração. Acima de vim, vejo uma luz circular, parece a espaçonave de um alienígena como nos era descrita quando crianças: um grande disco voador com uma pequena porta inferior que se abre e de onde irradia luz. Estendo a mão na direção do disco voador e procuro facilitar a sua abertura. Não obtenho muito sucesso nessa tentativa. Vejo então uns arcos medievais, cúpulas de igrejas, longos corredores e, no final, um enorme portal de mármore branco. O portal se abre e então vejo uma escada com degraus muito altos cobertos por um tapete vermelho; após ter subido os degraus, avisto, na parte superior da escada, uma fonte com uma coroa cravejada de jóias. Tudo é extremamente luxuoso e magnificente.

Impressões gerais.

No geral, a experiência não foi simples ou positiva. Também desta vez, as dificuldades iniciais me conduziram a uma postura defensiva, tinha a impressão que tudo e todos estivessem contra mim, e que o poder das forças externas fosse infinitamente maior do que a minha capacidade de enfrentá-las. Desta vez, o desejo de não compartilhar a esperiência foi mais forte do que durante as outras vezes, talvez para não estragar o clima geral que era de positividade e empatia. Infelizmente, a minha experiência interior é diferente, desperta em mim uma profunda sensação de inadequação perante a “psicologia”, perante a “respiração”, e (o que é pior) perante boa parte do meu mundo interior.

 

A “torrente piroclástica” que transbordara e ameaçara de envolver completamente  Jung, ameaça também Giovanni o qual se depara, agora, com “o magma incandescente” do inconsciente; tal como Jung, ele também foi profundamente marcado pela relação com a dimensão sobrenatural da existência.

A verdadeira liberdade é aquela interior, é a liberdade de sentir e explorar o universo inexprimível das possibilidades humanas. Esta exploração, em alguns casos, cataliza um tipo específico de experiência que priva o indivíduo da palavra convencional e, como enfatiza Jung, renova simultaneamente a capacidade de expressão. Trata-se de uma experiência de caráter “iniciático” que marca o começo de uma verdadeira e própria descida ao inferno e ao domínio dos mortos; um percurso semelhante é descrito pelas tradições religiosas do mundo todo.

Em 1916, com uma linguagem que faz lembrar a literatura místico-filosófica, Jung escreveu em somente três dias “Sete Sermões aos Mortos”, um diálogo com os mortos como resposta a uma legião de espíritos que, invadindo a sua casa, fora captada por ele e por seus filhos. A legião de espíritos desapareceu assim que Jung se pôs a escrever os Sermões. As seguintes palavras correspondem às primeiras linhas do tratado que se intitula em latim “Septem Sermones ad Mortuos”: 

 

 “Uma multidão de espíritos parecia encher a sala, na verdade a casa, e no vestíbulo ninguém podia respirar normalmente porque estava cheio daquelas presenças. Gritei com voz perturbada e trêmula:“Em nome de Deus, o que significa isso?”A resposta veio num coro de vozes espectrais: Voltamos de Jerusalém, onde não encontramos o que buscávamos”

 

Num certo sentido, através dos Sermões Jung reata os fios da meada que partem da espiritualidade originária e conduzem a um conhecimento anímico-espiritual presente e futuro. A sua alma, retornando da terra dos mortos, faz o seu ingresso no mundo, catalisando em Jung um verdadeiro e profundo processo de “redenção dos mortos”. A voz dos mortos é a voz do Desconhecido que reinvindica o Devir. 

Durante a sua viagem interior, Jung era impelido a “obedecer a um desejo superior”. Muitos anos deverão passar antes que o psiquiatra de Bollingen consiga reapropriar-se de si mesmo, elaborar o Significado da sua experiência e vencer o desafio: 

 

Pode surgir alguma coisa do pavoroso nada.

 

Durante um certo trecho do percurso – o trecho já percorrido pelo  amadurecimento espiritual de cada indivíduo – o caminho a ser vencido parece fácil, mas na medida em que avançamos, a empreitada se torna cada vez mais difícil; isso ocorre pois é realmente árduo nos revelarmos a nós mesmos; é um verdadeiro  ato de coragem transcender o  eu e restituir-se ao infinito. Somente uma “ação arriscada” como essa é capaz de nos conduzir ao consciente “sentir” que também pode ser chamado de “consciência de existir” ou “consciência Cósmica”: a clareza que nos permite descobrir a Unidade existente para além da ilusão do tempo e da aparente multiplicidade das formas. 

 

Recentemente satanás causou-me forte impressão, come se fosse a quintessência do pessoal.

Para uma evolução consciente

Jung regressa ao mundo silenciosamente, sem fazer alarde e traz na sua bagagem o Livro Vermelho. Passarão 70 anos até que o mundo esteja pronto para lê-lo. 

Estudiosos da espiritualidade contemporânea afirmam que a nossa época marca o fim do “Kali Yuga”, um termo do Hinduismo que designa a idade mais materialista e obscura, caracterizada pela discórdia e hipocrisia. O século XXI coincidiria com o fim deste período. Para a humanidade é um momento de “crise”, entendida no duplo sentido que esta palavra tem na língua chinesa, isto é, “perigo” e “oportunidade”. 

 O jesuíta e maestro zen Ugo Lassalle é conhecido pela sua grande relação com a filosofia oriental e pelo seu diligente esforço de integração entre o pensamento filosófico-religioso ocidental e oriental; ele afirma que o rico e precioso patrimônio interior dos mitos, rituais e símbolos das culturas orientais é, hoje, um dos elementos fundamentais da nova consciência que emerge de forma silenciosa, mas inexorável, no mundo ocidental. 

Desta forma, Lassalle sintetiza os estados evolutivos da consciência humana. A primeira forma de consciência foi a chamada consciência arcaico-instintiva que caracterizou a passagem do animal ao homem: daquele nível básico de sobrevivência emergiu um novo mundo. 

A consciência arcaica deu lugar à consciência mágica com o seu pensamento animista: o homem vivia imerso na natureza, mas ainda não tinha consciência de si mesmo. Em seguida, quando o homem começou a ter consciência do próprio “eu separado, adquirindo sucessivamente a ideia de reciprocidade, se elevou até a consciência mítica. Com as suas imagens arquetípicas a mitologia grega expressa justamente esta passagem e descreve o homem em busca da alma perdida e do sentimento de comunhão com o todo que havia caracterizado a consciência arcaica e mágica.

Começa assim, segundo Lassalle, o dualismo atual cujo ápice é a consciência “racional” iniciada no Ocidente a partir de Platão. É no interior desta consciência “racional” que nos encontramos aprisionados ainda hoje; a crise que atualmente atravessamos está relacionada a esse modelo de consciência.

Tudo isso nos leva a pensar que a humanidade se encontre atualmente num degrau de evolução onde se faz novamente necessário conhecer aquela dimensão “tênue” da existência, intitulada normalmente de “espiritual”; se assim ocorrer, se dará lugar à realização daquele que, dentre todos, é o mito coletivo mais celebrado: “a manifestação da Vida dentro da vida”.

Richard Alpert, psicólogo e pesquisador espiritual, (conhecido como Ram Dass) nos conta que quando o seu guru queria criticá-lo o chamava de “inteligente”; ao contrário, quando desejava elogiá-lo, dizia “simplesmente” que ele era “simples.”

 

A alma exige tua tolice, não teu saber. 

 

Segundo Lassalle, portanto, os estados de consciência caracterizados pelos aspectos sensoriais, instintivos e emotivos do homem foram substituídos pelo atual modelo lógico-racional. Isso não quer dizer que, hoje, tal modelo de consciência tenha se desenvolvido de forma igualada em todos os indivíduos, mas significa que, na maior parte das pessoas, a consciência de vigília se baseia fundamentalmente nos processos lógicos.

Ainda segundo Lassale, o próximo salto evolutivo trará a superação do pensamento racional em favor de uma consciência fundada nos processos intuitivos. Estamos presos dentro de uma lógica tridimensional e precisamos nos reapropriar da quarta dimensão que é mística, atemporal e se caracteriza pelo impulso na direção da transcendência e do conhecimento do divino. Um terreno fértil e ideal para uma evolução consciente: a consciência global.

Amit Goswami, físico teórico nuclear – particularmente interessado na aplicação das novas descobertas da ciência aos problemas psicofísicos – é um dos muitos cientistas que nos últimos anos se enveredaram pelo campo da espiritualidade na tentativa de entender os resultados aparentemente incompreensíveis dos seus experimentos.

A vida de Goswami, como a de Jung, foi profundamente marcada pelo dilema entre fé e ciência. Nos seus livros ele defende a ideia que o paradigma materialista, elemento dominante do pensamento científico e filosófico nos últimos séculos, pode finalmente ser colocado em discussão; isso é possível porque, graças às novas conquistas da ciência, os fatos que anteriormente exigiam um ato de fé podem agora ser demonstrados.  Na tentativa de integrar variados campos do conhecimento num único paradigma, o cientista hindu abre caminho para uma nova cosmovisão na qual o espírito tem a precedência e suplanta o realismo materialista atualmente dominante.

Obras como aquela de Jung, Lassale, Goswami, e muitos outros, constroem as bases para a renovação da filosofia, para a renovação dos atuais paradigmas culturais, éticos e espirituais sendo que, às vezes, os princípios de tais obras já povoam de forma latente, o íntimo de cada um de nós. O contato com tais obras nos impele ao processo de busca interior e nos indica a estrada a ser tomada se quisermos alcançar uma consciência mais vasta e completa.

A transcendência daquilo que, ao longo dos séculos, nos habituamos a chamar de “religião” é a base desta sucessiva evolução. A herança cultural das nossas tradições sapienciais não poderá mais ser interpretada nos termos “dogmáticos” e autoritários da “vida religiosa”, mas sim deverá se cumprir como fator espiritual de civilidade, elemento catalizador de entendimento consciente, de expressão artística e Beleza, no mais amplo sentido que essa palavra possa expressar. 

A tal propósito, Caetano Veloso, na canção “Um Índio”, descreve uma imagem particularmente interessante: 

 

 

Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante

De uma estrela que virá numa velocidade estonteante

E pousará …

Depois de exterminada a última nação indígena 

E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida

Mais avançado que a mais avançada

Das mais avançadas das tecnologias

Virá impávido…

Virá…

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro

Em sombra, em luz, em som magnífico

Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico

Do objeto, sim, resplandecente descerá o índio

E as coisas que eu sei que ele dirá, fará, não sei dizer

Assim, de um modo explícito…

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos, não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio…

 

 

Como afirma Ram Dass, é realmente difícil entender que a liberdade espiritual não é algo fora do comum ou “especial”; é justamente esse fato – a “simplicidade” e naturalidade – que a torna ainda mais preciosa. Com as palavras da alma, a sensibilidade do Poeta consegue captar e exprimir o “óbvio”… aquilo que talvez nem Lassalle, Goswami ou o próprio Jung tenham conseguido fazer de forma tão … cândida e “explícita”. 

 


Note

1 Jung, C. G., Il libro vermelho, Editora Vozes Ltda, Petropolis, 2010, p. 267, T. d. A.

2 Ibidem, p. 239.

3 Jung, C. G., Il libro vermelho, Editora Vozes Ltda, Petropolis, 2010, p. 267, T. d. A.

4 Ibidem, p. 298.

5 Ibidem, p. 281.

6 Jung, C. G., Il libro vermelho, Editora Vozes Ltda, Petropolis, 2010, p. 210, T. d. A.

7 Jung, C. G., Il libro vermelho, Editora Vozes Ltda, Petropolis, 2010, p. 299, T. d. A.

8 Ibidem, p. 298.

9 Ibidem, p. 368.

10 Ibidem, p. 264.

11 Jung, C. G., Il libro vermelho, Editora Vozes Ltda, Petropolis, 2010, p. 299, T. d. A.