A morte que mata a morte

 

os limites do ego, entre Oriente e Ocidente

(Estratto)
Virginia Salles, Roma

Quando liberto do corpo no livre éter ascendes, és como um deus imortal para sempre desacorrentado da morte.”

(Empédocles)

 

 “Que a morte não me faça enlouquecer ainda; ah!  Ninguém sabe quão terrível é a loucura dos mortos.                                                                            

Mortos. Mortos – isto é – aqueles que ainda dormem. (Guimarães Rosa)

O preço da liberdade

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Nos albores dos tempos os homens eram ainda companheiros dos deuses e não viam a natureza como a vemos hoje, mas volviam o olhar para o cosmo e o encaravam como “real”. Percepção “real” era o som da lira de Orfeu ou a visão de Osíris e Ísis que, apaixonados, passeavam sob o luar.

Na origem dos tempos tudo aquilo que existia era adentrado pela essência divina, e a alma humana extraia destas visões espirituais, sons e luzes celestiais, o próprio nutrimento. Os homens não se escoravam em nenhum tipo de “sentimento de si” e se sentiam imortais no seio da divindade. Não existia, portanto, uma “consciência separada” o que, consequentemente, os distanciava também da mais pálida consciência da morte.

Sucessivamente, como nos conta Rudolf Steiner nos seus numerosos livros, a consciência começou a se alternar entre dois pólos. Num destes pólos se encontrava o estado de “clarividência” que, ofuscando-se num crescente, varria consigo a própria percepção direta que se tinha dos deuses (sendo que, em tempos sucessivos, a exasperação desse processo de ofuscamento exauriu também a capacidade de visitar, durante o sono, as esferas celestiais). No outro pólo encontrava-se a diurna consciência objetiva de vigília, a principal consciência no mundo de hoje. No pêndulo da alternância, o estado de ‘clarividência’ foi sendo, portanto, suplantado pelo estado de vígila, e, na medida em que ocorria a “decantação” da consciência diurna com o surgimento do eu, perdia-se gradualmente a faculdade de elevar-se aos mundos espirituais. Desta forma, prossegue Steiner, enquanto o eu se desenvolvia, em torno ao homem desciam as mais densas trevas.

A fascinante descrição de Steiner, da qual eu gosto bastante também nos seus conteúdos mais excêntricos, mostra perfeitamente o sentido e limites da nossa angusta percepção sensorial. Segundo as tradições esotéricas, para que a alma humana pudesse se expressar como personalidade individual e consciente, ela foi dotada de “um invólucro-veículo” que centraliza a sua ação e, limitando-a, impede que ela se perca. Servida e limitada, portanto, pelos órgãos dos sentidos, a alma só pode interagir com o universo que a circunda através destes mesmos órgãos. Esse invólucro-veículo é, portanto, o corpo, concebido sob medida para o ambiente material no qual a alma deve viver. Segundo Eliphas Levi (pseudônimo de Alphonse Louis Costant, grande estudioso de “magia”), o corpo “limitando a ação da alma a concentra e a torna possível. Com efeito, a alma sem corpo estaria em todos os lugares, mas numa dosagem tão diluída que não poderia agir em lugar algum; se perderia no infinito, incorporada e diluída em Deus”[1]

Tendo sido Steiner curador das obras de Goethe, foi incisivamente influenciado pelo seu pensamento e pela relação do Homem com a Natureza, descrita por Goethe como algo que vai muito além do dualismo kantiano. Num certo sentido, a descrição de Goethe é bastante próxima da tradição esotérica. Na visão goethiana, a Natureza permeia tudo, inclusive o espírito e a imaginação humana. Desta forma, a verdade não existe como algo independente e objetivo, mas se revela no próprio ato da cognição – como bem mostram, hoje, os estudiosos de física moderna, entre os quais David Bohm[2], cuja vida foi muito influenciada pela relação íntima e duradoura que teve com o grande maestro espiritual Krishnmurti. Portanto, segundo Goethe, o espírito humano, diversamente do que pensava Kant, não impõe a sua ordem à Natureza, mas, pelo contrário, é justamente o espírito da Natureza que produz a própria ordem através do homem – o seu órgão de auto-revelação. Consequentemente, do ponto de vista de Goethe, a Natureza não é diferente do espírito, mas é o espírito em si: os seus processos respiram o espírito e a força do próprio Deus. Goethe unia, assim, poesia, alma e ciência numa analise da Natureza onde era possível vislumbrar uma religiosidade cheia de “participation mystique”, uma religiosidade decisivamente imanente e sensual.

No fundo do sofrimento galopante ao nosso redor é possível detectar em todos nós, seres humanos, um sentimento melancólico de incompletude, a profunda saudade que temos desta “participation mystique”, de uma felicidade completa, absoluta, simbolizada na Gênese pelo mito do “Paraíso Perdido”, a árvore da vida e do conhecimento. A literatura espiritual hindú, no budismo e em muitas outras tradições sapienciais é repleta de símbolos e descrições detalhados da “queda e expulsão desta condição de harmonia e completeza. A nossa busca por esta felicidade é desesperadora; a procuramos fora de nós mesmos, certos que ela exista em algum lugar, num lugar perdido. Numa espécie de ciclo vicioso a procuramos continuamente de modo exasperado e compulsivo. Num mecanismo perverso, o ciclo vicioso se alimenta também do avesso da felicidade: quanto maior for a busca da felicidade (na paixão, no casamento, na riqueza e no poder, nas drogas, numa ideologia, na religião…), maior será a falência em encontrá-la, o que redundará, portanto, numa infelicidade infinitamente maior. O sofrimento e a vã e desesperada procura de completeza é definida no âmbito transpessoal “Síndrome do Paraíso Perdido”.

A “Síndrome do Paraíso Perdido” nasce de uma miragem, de um engano fundamental: a ilusão da separação que faz com que nos percebamos separados do resto do mundo. Levando até as últimas consequências esta separação entre o ego racional e a unidade primordial vislumbrada por Goethe entre Espírito e Natureza, a nossa época caracteriza-se,  sobretudo, por esta perda da  “participation mystique”. Isso significa que, à medida que “sentimos o nosso eu, o mundo se torna “órfão” de divinização, e passamos a compreender somente a natureza inanimada. O escopo da Arte no mundo grego era exatamente sanar a fratura entre a nossa alma aprisionada e o mundo dos deuses que se perdeu, restituindo vida ao que estava morto para a consciência habitual. Uma espécie de processo reparador, um ritual para voltar a ser saudáveis: tratava-se da Tragédia.

Se pedirmos a alguém que nos indique onde se encontra a natureza ou a um homem religioso onde está Deus, todos apontarão na direção de algo que se encontra fora, fora da porta, da janela ou cidade, não importa, fora de si mesmo. Este gesto é ilustrativo da  ilusão, a percepção de base que na filosofia é chamada de dualidade e que assinala o nascimento do atual estado de consciência. Para alguns, indica também o início de todo o sofrimento humano, e até mesmo do suicídio da humanidade. Como bem ressaltou Edgar Morin, a objetividade – condição primordial do método científico – dilatada ao máximo, chega até mesmo à eliminação do próprio sujeito. Atualmente, os avanços da mecânica quântica e os novos caminhos empreendidos pela física moderna, tendendo incisivamente a salientar este equívoco fundamental, afirmam que a separação entre o homem e o universo é artificial.

A psicologia transpessoal estuda principalmente os estados de consciência onde a dualidade desaparece, e, na sequência, debruça-se sobre os possíveis métodos para ativar tais estados. A descrição desses estados e os vários meios para alcançá-los são encontráveis em todas as culturas, períodos históricos ou civilizações – podem responder a nomes diferentes, mas serão sempre compatíveis nas descrições. Isso indica que o nosso atual estado de consciência de vigília ainda não encorpou o suficiente, no sentido que não desenvolveu ainda as suas potencialidades.

O que ainda não foi alcançado pelo homem? O que ele perdeu? Na opinião de Steiner, não se pode compreender a vida que pulsa com um pensar fragmentado, parcial. Isso significa que fazendo uso do pensar fragmentado da consciência individual – o pensar espiritualmente morto – podemos compreender somente aquilo que está morto. A natureza como se apresenta diante de nós, hoje, seria vista pelo homem dos albores como o cadáver da natureza. Portanto, a força do nosso pensamento deriva do cadáver do elemento anímico-espiritual.

Na sua “filosofia da liberdade”, Steiner afirma que somente “o pensar morto” pode conduzir o homem à liberdade. Desta forma – somente então – quando se instaura o pensamento, e, portanto, a morte, nós podemos ser livres. Mas, continua ainda o pai da antroposofia: por meio da inspiração e do pensar imaginativo, podemos dar vida novamente à nossa alma não nascida: podemos nos sentir vivos novamente graças à imaginação, e assim fazendo, transpomos o estado habitual de sono-morte, deixando-o resolutamente para trás.

Goethe, no mais famoso dos seus romances – Faust – expressa um dos seus preceitos nas palavras de uma vidente “Amo quem aspira ao impossível.”

Considero realmente curioso o fato que, uma visão tão ampla e fecunda como aquela de Steiner sobre a natureza humana não seja devidamente considerada  no âmbito psicológico oficial. Decididamente a visão de Steiner traz já na sua bagagem as sementes de tantas elaborações futuras cujos frutos foram importantes conceitos psicológicos, como por exemplo, o conceito de Anima-Animus ou o processo de individuação de Jung.

Da abstração ou do pensamento morto – o preço da nossa liberdade, portanto, – nascem as leis e as artes, as conquistas da ciência e a ética, as quais, segundo Balzac, são, ao mesmo tempo, Glória e Flagelo do mundo. Glória porque criou as sociedades; Flagelo porque, privando o homem da possibilidade de ascender à Especialidade (a Consciência Cósmica, a individuação junguiana), o desterra de uma das vias do infinito.

Richard Tarnas[3] descreve essas “gloriosas” etapas do desenvolvimento da consciência ocidental desde a Antiguidade até os nossos dias; ele analisa as dramáticas consequências atuais da “impermeabilidade” da nossa fronteira egóica e da predileção exasperada, tipicamente ocidental, pela “separação”. O paradigma da ciência que endossa tal visão do mundo tem raízes no modelo newtoniano-cartesiano, hoje considerado anacrônico. Segundo Tarnas, a nossa cosciência egóica, testemunhando hoje o próprio declínio, parece aspirar, agora mais do que nunca, à superação dos seus limites. O anélito mais profundo confinado no inconsciente do homem moderno é, portanto, o desejo de sanar a fratura, reconciliando-se com o mundo perdido dos deuses (o feminino interior, a via do infinito…). Segundo Tarnas, essa reconciliação foi sempre a meta recôndita de todo o desenvolvimento intelectual do Ocidente.

 

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 O escopo supremo do mito do herói: a via do infinito

 

O Céu, o Pai e o Espírito estão rigorosamente associados à “consciência masculina”. Erich Neumann[1] (intérprete dos princípios da psicologia analítica em chave evolutiva e identificador da fenomenologia desta evolução na tradição mitológica) vê nesta supremacia do ego ou da consciência masculina, o sinal de vitória do patriarcado sobre o matriarcado.  A palavra de ordem patriarcal sancionadora do nascimento do eu (a consciência) e da repressão de todos os conteúdos que poderiam ameaçá-la é: “Abaixo o inconsciente, fora a mãe.” Esta dominância masculina é de importância decisiva para a posição que o feminino ocupará num determinado contexto cultural e, como ressalta Tarnas, determinou todo o desenvolvimento espiritual do Ocidente.

Como todo salto evolutivo, o patriarcado conduziu tanto ao nascimento de novos valores quanto à superação da velha ordem. No velho ordenamento vigorava a supremacia do inconsciente, o matriarcado que se tornou, então, negativo: a mãe se transfigurou em Dragão ou Mãe terrível (esta, sucessivamente se transformou ainda: de Mãe terrível – ao tio materno – ao velho rei – ao pai individual).

A íntima correlação existente entre a consciência e o masculino atinge o ápice  com o progresso da Ciência, típico produto da separação em trajes de espírito masculino.  Considerando a nossa “passagem obrigatória” por ela e sem querer subestimar as grandes conquistas da mente científica, devemos refletir sobre a sua exagerada unilateralidade, hoje não mais funcional à nossa evolução. Tudo o que a Ciência toca é imediatamente expropriado do seu cárater originário e da sua conexão com o resto do mundo; no passado, essa conexão se mostrava muito rica, pois era  impregnada das inumeráveis projeções que provinham do incosciente o qual se encarregava de vitalizá-las também.

 

…esta adaptação exclusiva e unicamente à realidade externa, ao mundo, não é mais adequada às exigências das etapas sucessivas de desenvolvimento mais recente. A consciência moderna constatou a  existência, no próprio inconsciente, de elementos formadores da realidade como dominantes da nossa experiência, como idéias ou arquetipos. A consciência deve, portanto, voltar-se para o interno[2].

 

Para a consciência masculina, voltar-se para o interno significa “afundar”, regressar à Mãe, ao útero, ao Abismo e… ao Inferno; tais palavras, orbitando o universo matriarcal, bem podem ser equiparadas ao feminino e ao inconsciente. Voltar os passos na direção do interno significa se abrir, dando espaço a uma nova consciência emergente representada mitologicamente pelo herói. O Dragão inimigo é a potência obscura da Grande Mãe devoradora, o elemento uróboro, a cavidade uterina. É o estágio psiquicamente superado que deseja reabsorvê-lo e contra o qual o herói deverá combater (ou sucumbir) para consolidar a própria liberdade.

Através desta façanha o herói responde ao fator transpessoal, à voz interior do Pai arquetípico (Deus ou a força vital evolutiva em nós), que o chama à transformação e à evolução. Desta forma, o Pai interior entra em contraste com a lei dos pais que encarna os valores coletivos por meio do seu representante, o pai individual. Sem o confronto entre a velha geração (o pai representa a lei do coletivo que o herói vive como um limite, um impedimento…) e o fator evolutivo transpessoal, com a vitória deste último (a morte do “dragão-pai-mãe”) não há desenvolvimento da consciência e nem da personalidade.

Com a consolidação do masculino e da consciência do eu, a luta contra o Dragão materno-paterno se torna – do ponto de vista psicológico – a luta heróica do eu para libertar-se. Nesta batalha, a ligação do herói com o “céu masculino” pode levar à autoregeneração na qual, às vezes, segundo Neumann, é possível que já não intervenha nenhum elemento feminino.

A nossa originária morada espiritual, “pleorâmica”[3], da qual advém a nossa parte “merecedora de salvação”, é claramente uróbora, pois possui as características da Completeza e da Indiferenciação, da Sapiência, Totalidade e toda a Grandeza da existência primordial. Quando nessa morada se acentua, sobretudo, o aspecto espírito-pneuma, o uróboro adquire uma natureza mais masculina paterna. Por isso a via masculina da libertação (gnóstica) – a via que emerge dos escritos de Ken Wilber, por exemplo – consiste em aumentar a consciência e retornar ao puro mundo do espírito (com apenas alguns vestígios da Sofia feminina), perdendo, desta forma, completamente o aspecto inconsciente. Diversamente, na libertação uróbora regida pela Grande Mãe, os vestígios masculinos são quase imperceptíveis (a via feminina), já que esse tipo de libertação pretende a ‘renúncia-perda’ do princípio consciente: a re-imersão no inconsciente, e, portanto, o “renascimento”. É esta a via descrita por Stanislav Grof. O fundamental dualismo não somente da gnose, mas também de muitos outros percursos espirituais, pressupõe ainda a divisão dos genitores do mundo numa parte espiritual superior e numa material inferior.

A tradição grega com a linguagem simbólica do mito nos descreve a relação psicológica existente entre o eu e a realidade transpessoal e as várias etapas do desenvolvimento da consciência que, por onde passa, deixa o seu quinhão de “vencedores” e “vítimas”. A mitologia grega nos fala de Psique, uma bela jovem que, após ter vencido uma série infinita de provações, tornou-se a imortal companheira de Eros ou de Jasão o qual, ajudado por Medéia, apropriou-se do velo de ouro. O universo mitológico, porém, nos fala de  tantos outros personagens que, diferentemente de Psique, “faliram” ou obtiveram sucesso parcial na tarefa que lhes fora confiada. Lá está Ícaro, o jovem que, chegando muito perto do sol, teve as suas asas de cera derretidas e encontrou a morte na queda; eis Orfeu separado da sua Eurídice e trucidado pelas bacantes, Édipo trágicamente cego e Prometeu, símbolo da Humanidade, acorrentado a uma rocha por toda a eternidade.

No combate vitorioso contra o Dragão, o herói afirma a sua origem divina no cumprimento da condição originária e fundamental de adesão à batalha, condição espressa mitologicamente na fórmula “eu e o pai somos um”. A personalidade, através destas experiências, descobre que não é mais idêntica ao eu, pois superou psicologicamente a transitoriedade que é própria da consciência egóica e, consequentemente, dado que já a conhece, não teme mais a morte.

O próximo relato faz parte de um sonho de Marco, um analisando de 34 anos às voltas com a sua trajetória pela “via do infinito” (escrito de próprio punho) exprime poeticamente este chamado na direção do Feminino, elemento fundamental no processo de individuação descrito por Jung.

 

 “…Vejo um menino em cima de um tanque de guerra numa zona de combate. O menino é sequestrado… pela lua! A cena é tão fantástica que me dão permissão para revê-la de outro ângulo, o lado onde está a criança: o menino consegue ver a lua que brilha sobre o arame farpado, a lua é uma mulher linda, e obviamente muito pálida; ela estende as mãos para o menino que as segura, e então, suspenso no ar, ele é carregado para longe …”

 

O texto acima faz parte de um sonho complexo e articulado que inspirou Marco a escrever a poesia intitulada “A  Lua e a cerca de espinhos”:

 

                     Un menino sentado em cima de um tanque de guerra

                                  observa o mundo por entre uma cerca de arame farpado

                                 

                                       

                                                              Ao redor

                                                              a guerra

                                                     num arrastar lento

                                      de campo de batalha

                              e fumaça e silêncios quiméricos

 

                               Eis que se vê um raro clarão

                               o menino põe o olhar no céu:

                         é a lua que se debruça sobre o arame

                           

                                Lua mulher, lua tão linda que

                            o olhar jã não pode mais desviar o menino 

                            que confiante como todas as crianças

                                   ergue os braços para ela

 

                     A lua sorri, o suspende pelas mãos e o leva consigo

                                    para longe do tanque, da guerra, da vida que pesa:

                                                     o menino aprende a voar.

 

                                            Desde então, bem lá no alto, longe das guerras

                                                 para além das cercas de arame farpado

                                                          acima do fragor da morte

                                            voa uma criança que brinca com a lua.

Sofrer as asas

 

O escritor brasileiro Guimarães Rosa, cuja obra é considerada “uma alquimia literária”, descreve desta forma a crise spiritual, o progressivo “enveredar-se pela morte”, da qual falam os antigos mistérios gregos, as religiões, o xamanismo, os ritos iniciáticos das várias culturas e da qual se ocuparam também Jung e Neumann.

“Cada criatura é um rascunho a ser retocado sem cessar, até a hora da liberação pelo arcano, além do Lethes, o rio sem memória. Porém, cada grande passo na direção do crescimento do espírito, exige a queda do ser como um todo, o enveredar-se por imensos perigos, um morrer em meio às trevas. Mas o que acontece depois é “o Renato”, um homem mais real e novo”

E ainda: “um morto tem sempre medo. Tem medo de morrer ainda no infinito Nada […]Tenho de tresmudar-me. Sofro as asas.…”.

“Sofrer as asas”, sofrer o Medo de “se perder”, de se ver aniquilado e descobrir na  dor ou apenas poder vislumbrar diante de si, numa imagem efêmera e fugaz, … o infinito.

As nossas emoções “pessoais”, definidas e circunscritas às vicissitudes da nossa vida, estão geralmente ligadas a algo de conhecido e compreensível. As emoções de natureza transpessoal como o Medo e os Sentimentos de Culpa, por exemplo, possuem uma intensidade que transcende o que podemos experimentar durante o estado ordinário de consciência, tendo suas raízes numa dimensão arcaica da evolução da humanidade: o nascimento da consciência com a ilusão de “separação”. As fronteiras do Sentimento de Culpa transpessoal são muito mais extensas do que território ocupado pelas situações de contexto familiar; ele é representado nos mitos como “culpa primordial” ou “pecado original” e diz respeito ao “delito nefando” da separação dos pais do mundo (a “separação ou dualidade”), ou como diria Steiner, o abandono do “mundo do espírito” que é vivido como solidão e isolamento. O Medo transpessoal, que pode ser de uma intensidade às vezes paralizante, é o medo do retorno à condição inicial de indiferenciação, a chamada “morte do ego”; é o medo de ser engolido, de se dissolver no inconsciente. Ao mesmo tempo, esaa Morte é também a experiência transformativa por excelência, experiência de renascimento para uma nova vida. Nas palavras de São João: 

 

Em verdade, em verdade vos digo: 

quem não nascer de novo 

não poderá ver o Reino de Deus. 

                       (João 3: 3)

 

Os ritos ou mistérios iniciáticos eram destinados tanto a produzir essa morte quanto à  conseguente renovação; eram muito difundidos na Antiguidade como, por exemplo, a morte e a ressurreição de Osíris, Mitra, Tamuz, Adônis, Atis e vários animais que os representavam (touros, cabras, porcos, pássaros e peixes). Nos antigos mistérios gregos a palavra “Ditirambo” (como era chamado o morto e ressuscitado Dionísio) significava “aquele que é, que pertence à dupla porta”, sobrevivente do “terrível milagre” do duplo nascimento. Na nossa tradição religiosa, essa morte é representada pela crucifixão e ressurreição de Cristo e pelo batismo que

ainda hoje é celebrado no seu significado simbólico de “mergulho na morte” e renascimento como filho de Deus.

A possibilidade de uma íntima transformação reside justamente naquele momento de “passagem pela morte”, instante onde a antiga identidade se quebra. Uma consciência mais ampla e o seu enlevo exigem a dissolução da individualidade separada. A mais radical e drástica de todas as mortes (a Morte que mata a morte), que nos devolve ao paraíso perdido, vai muito além das mortes “menores” de aspectos parciais da nossa personalidade, companheiras do nosso percurso evolutivo. A morte que mata a morte, isto é, a “morte do ego” é um verdadeiro divisor de águas entre a psicologia ocidental e os grandes psicólogos orientais, e, questionando todos os pontos de referência, abalando as estruturas já conhecidas, faz aparecer no horizonte “o mundo dos deuses”.

No budismo tibetano, o Buda da meditação aparece sob dois aspectos: um de paz e outro de cólera. Quando somos fortemente atacados no nosso eu e no nosso pequeno mundo temporal com as suas alegrias e dores, e a vida do corpo nos parece a única possível, se apresentará diante de nós o aspecto terrificante e colérico da divindade. Terror que nos faz pensar no “medo religioso”, no mysterium tremendum descrito por Rudolf Otto ou na advertência bíblica: “coisa terrível é cair nas mãos do Deus vivente.” Mas no momento em que o nosso “eu” cederá e se abandonará, este mesmo Buda aparecerá como portador de êxtase. Afirmama os orientais:

“Quando o anjo da Morte se aproxima, é terrível. Quando te alcança é o êxtase”.

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 Samadhi, a apoteose do amor

 

Existe uma emoção associada à arte que vai bem além da beleza e da harmonia; é  freqüentemente descrita como algo transtornante, uma emoção tão forte que o nosso normal estado de consciência não pode conter. Exemplos dessa impossibilidade de contenção são algumas manifestações da força prodigiosa da natureza: uma vasta extensão de mar aberto ou um pôr-do-sol tingido de vermelho. Uma emoção desse gênero é chamada de “sublime”. No entanto, também é possível tirar lições do monstruoso e do terrível, vivendo-os como sublimes. Sublimes são também algumas experiências no limite da resistência humana, como, por exemplo, catástrofes, terremotos, bombardeamentos ou violentos episódios bélicos que, às vezes, são descritos pelos sobreviventes como experiências de tanta intensidade emotiva que são vivenciadas não só como inumanas e terríveis, mas também como sublimes. Segundo o grande estudioso de mitologia, Joseph Campbell, existe uma forte relação entre o Monstruoso e o Sublime. 

Uma aparição ou presença “horrível” transcende qualquer tipo di juízo moral ou estético e derruba todos os nossos modelos pré-estabelecidos de beleza, harmonia ou comportamento ético. Nas nossas religiões, Deus equivale ao “Bem puro”. “Não, não!” afirma Campbell “Deus é horripilante!…” 

Seguindo as descrições da literatura espiritual, o que jamais pode ser esquecido é o catastrófico, “a primeira morte…” a morte que subverte as nossas certezas mais enraizadas, parâmetros e concepções das coisas e do nosso próprio ser. Uma verdadeira catástrofe psíquica que, abalando a inteira existência, destitui de valor e significância todas as nossas conquistas mundanas como a riqueza, o sucesso, o poder etc. Este evento sem precedentes é um trauma de tamanha intensidade que, às vezes, pode levar à loucura e exige sempre explicação, enquanto quase ninguém se encontra “preparado” para enfrentá-lo. É como se a nossa habitual condição de pensamento, a percepção de tempo e espaço tivessem sido abolidas e o universo nos arrastasse com ele no seu desmoronamento, como um castelo de cartas. Naquele mesmo instante todas as faculdades emotivas, o inteiro mundo interior é ativado e canalizado num estado de prazer extremo, absoluto, vivido “no mais recôndido santuário do nosso ser”, e o que antes eram “duas coisas”, agora é “uma única só”. Um mundo que jamais conhecêramos antes emerge fulgurante dessa destruição, e, diante de nós, se escancaram as “Portas do Paraíso.”

Caso tentássemos dar cabo de uma experiência como essa, afirmando que “é falsa” nos daríamos conta que tudo isso não pode ser falso… mais provável é que todo o resto seja falso, como afirmam os iniciados. Como indicio da sua veracidade permanecem a lembrança e intensidade da emoção, tão indiscutíveis que parecem mais reais e importantes do que qualquer outra experiência, como se, bem ancorados em terra firme, acordássemos, finalmente, de um longo pesadelo. Na linguagem dos místicos, o estado de intenso prazer, alegria e êxtase amoroso é chamado de Samadhi, nome sânscrito cujo significado etimológico é “união com Deus”. São Paulo o descreve como a união do eu com o “não eu” que se manifesta como elemento de conjunção também na linguagem simbólica dos rosa-cruzes e em todos os símbolos sagrados. Imprescindivelmente, quem vive uma experiência desse tipo, se questionará ardentemente – talvez pela primeira vez na vida – sobre “o que é realmente a verdade”. No Samadhi a verdade emerge por meio da renúncia a todas as formas e do acesso direto ao único Significado; a manifestação dessa significação específica é normalmente chamada de Deus.

Como somos habituados a usar os termos de uma filosofia dual e egocêntrica, é difícil explicar o que ocorre e entender os detalhes de uma experiência cujo elemento principal é a conjunção dos opostos e a eliminação do ego. Desta forma, somente vivendo-o podemos compreender; devemos vivenciá-lo para finalmente entender o processo através do qual se começa, durante a meditação, a afastar todos os pensamentos até chegar à destruição do sentimento de individualidade; pela primeira vez, podemos confirmar, assim, o que até os mestres da linguagem não são capazes de descrever, e que, no passado, sabíamos, ou seja, poderemos encontrar a nossa verdadeira essência (o Si-mesmo) somente quando nos cancelamos totalmente. Como afirmam os iniciados, a experiência do Eterno é simplesmente a experiência daquilo que somos e, seja lá o que for a Eternidade, ela é aqui e agora.

No âmbito místico espiritual, a elaboração da experiência que Neumann descreve como sendo a “imersão nas águas escuras do mar cósmico” aflui no interior do dogma ou do simbolismo da religião professada; assim sendo, o “renascimento” adquire significado de conversão ou “revelação”. Muitos místicos falam de uma identidade que se expande para muito além dos confins do corpo e que abraça o inteiro cosmo; o Samadhi, isto é, o estado de êxtase que acompanha a expansão da consciência, é descrito como uma união de amor com a essência das coisas.

Para Richard Bucke, psiquiatra e estudioso do potencial evolutivo dos estados não ordinários de consciência, assim como para o místico Boehme, a iluminação e o enlevamento estático permitem um conhecimento de si mesmos, uma compreensão intelectual de qualidade diferenciada e um sentimento de amor para com uma pura presença viva. Esta nova espécie de conhecimento é definida por Bucke “consciência cósmica”. Desta forma, o novo tipo de experiência é uma das fontes principais da criatividade e do pensamento; ela nasce de um impulso voltado para a expressão e comunicação do inefável contido na própria experiência. Wilber descrve todo o processo com as seguintes palavras:

“É como se despertássemos de um longo sonho confuso para descobrir o que sabíamos desde o início: ele, o Self separado não existe e o seu verdadeiro eu mais profundo, o Todo, nunca nasceu e jamais morrerá”.

 

Iniciação

 

Imaginemos uma gota d’água dentro de uma película protetora; continuemos a imaginar que, em seguida, lançamos a película no mar. Enquanto a película se mantiver intacta, a gota conservará a própria natureza, mas se, na mensidão do mar, a película se desfizer, onde irá parar a nossa gota d’água?

Uma lenda budista nos conta a estória de uma “boneca de sal” que queria muito entender o que era o mar. Assim sendo, o mar a convida a tocá-lo; diluindo os dedos da bonequinha ele se põe a explicar-lhe que, assim fazendo, já lhe dera alguns indícios para que pudesse começar a entender a sua natureza. Ela, toda decidida, não titubeia e, continuando o seu estudo sobre o mar, imerge nas suas águas; conforme imergia se sentia, num crescente, mais fraca e diluída de uma parte de si mesma, porém, simultâneamente, crescia nela a impressão de entender melhor o mar. Somente quando a derradeira onda engoliu o último vestígio da nossa pequena gota, no exato momento em que ela, liquefeita na onda que a envolvia, desapareceu, pôde entender finalmente o que era o mar. __ Sou eu! Exclamou ela, num último sussurro. 

Tais descrições normalmente são empregadas pela abordagem psicológica oriental, pois, para o pensamento oriental, cada elemento de um indivíduo é estéril e carente de significado enquanto não se realizar na sua parte complementar, a Totalidade (o macrocosmo mar). Pela ótica esotérica, a separação de si mesmo dos outros significa destruir-se; em contrapartida, para que haja a expansão de si mesmo e a efetivação da completeza, deve ocorrer a dissolvência do eu e o fim da separação do resto do mundo.

Na psicanálise clássica o conceito tão caro às tradições orientais de “morte do ego” não é levado em consideração. Para a psicanálise o ego está associado tanto à habilidade de relacionar-se “adequadamente” à realidade – entendida como tudo aquilo que podemos apreender por meio dos cinco sentidos – quanto à habilidade de “funcionar” de modo satisfatório na vida cotidiana. Assim sendo, o ego é, portanto, reforçado e consolidado, divergindo claramente do que é pregado pelas várias religiões orientais e ordens iniciáticas, onde o indivíduo é convidado a ir além dos limites egóicos, a abandoná-lo e transcendê-lo. Compartilhar a perspectiva da psicanálise significa ter horror à morte do ego, morte esta que, segundo as tradições orientais, abre as portas para a experiência mais elevada da natureza humana. Toda vez que defendemos a preservação do ego, “resistimos”, portanto, ao movimento vital e evolutivo da psique. 

Roger Bastide, estudioso do transe, da loucura, e de modo especial, dos ritos de possessão assim se exprime a respeito:

 

“… o que nos impede de alcançar a surrealidade é o nosso eu plasmado pela sociedade; é necessário dinamitá-lo e o sonho é a dinamite que liberta as coisas das amarras da realidade para restituir-lhes a soberania, resgatá-las da sua exploração por parte do nosso eu colonialista, já que o nosso eu só considera o mundo como objeto de exploração e domínio”

Bastide nos fala, então, da doença do homem moderno: o homem tem sede de poder e supremacia sobre o mundo sem ser capaz de se tornar ele próprio o mundo. Um grave erro de avaliação, um “pecado” no sentido grego de “errar o alvo”; o ego, ao invés de morrer para “ser” o mundo, avolumando-se incomensuravelmente, é acometido por uma intumescência quase patológica (tumoral) na tentativa de “possuir” o mundo.

 Tanto a posição da psicanálise clássica quanto aquela de Bastide ou da filosofia zen – defensora da idéia que o homem (ou a sua identidade mundana, isto é, o ego ou aquilo que ele acredita ser) deve morrer para poder viver – são posições extremas.  No meio dessas extremidades se encontra a posição de Bion que se remete a um “conflito ético”. Bion pensa a psicanálise como uma disciplina praticada por um psicanalista que se submeteu, com “rigor iniciático”, a esta aprendizagem e que esteja, portanto, capacitado a tolerar o terror da loucura que um contato tão estreito como esse acaba inevitavelmente por provocar. A abordagem terapêutica de Bion, defensora do repúdio à percepção sensorial (sem memória, sem saber, sem desejo), tem grande afinidade não só com as sugestões do yoga e das várias formas de meditação praticadas no Oriente, como também se aproxima do pensamento de Jung quando auspicia a superação da catástrofe psíquica através da “conjunção das partes opostas de si mesmo”.

A excessiva importância dada ao egocídio em muitos contextos espirituais-iniciáticos, como, por exemplo, naqueles orientais, corre o risco de esquecer que este termo indica um fato voluntário. A morte “iniciática”, através da qual se alcança uma autêntica transformação, na maioria das vezes, chega sem ser chamada, é algo que acontece “apesar de nós mesmos” por meio de experiências que Stanislav Grof define “emergências espirituais”. A ser “chamado” a enfrentar uma prova desse gênero é, sobretudo, um “ego forte”; a grande prova com a qual o ego se depara e deve superar é, no fundo, um processo autônomo e arquetípico colocado em ato pela nossa psique, pelo espírito-natureza em nós que deve se renovar e evoluir ao longo de periódicos ciclos de morte e rinascimento.

Como afirma filósofos e iniciados, se for realmente verdade que o homem é uma imagem representativa do mundo todo, qualquer aspecto do ser humano, por mais ínfimo que seja, está em relação direta com o “grande cosmo”. O homem pode aprender, portanto, a atribuir valor a cada evento, considerando-o fútil ou importante, segundo o vínculo que consiga estabelecer entre aquela coisa específica e uma dimensão muito mais ampla, uma dimensão “cósmica”. A realidade, portanto, segue por veredas que vão muito além do que conseguimos perceber com os nossos cinco sentidos, é muito mais complexa e profunda do que habitualmente acreditamos. Essa constatação nos aproxima do pensamento de Steiner, para quem, graças à transformação do próprio mundo interior, o homem carrega em si a faculdade de ver além, de captar o eterno que vive em cada coisa e agir, portanto, no sentido da ordem universal, apreendendo do eterno que vive nele a direção que dará o tom à sua ação. 

Somente quando a pessoa consegue intuir as conexões que unem os eventos da própria evolução interior àqueles da humanidade pode ascender a uma mais profunda consciência de si e a iluminar símbolos ou frases, que, caso contrário, seriam realmente misteriosos. A vida adquire Significado conforme a pessoa se dá conta de pertencer à Totalidade, quando consegue compreender que o homem nada mais é do que uma forma individualizada da espiritualidade que impregna o mundo. Para Steiner, sendo assim, o homem se transforma numa metamorfose infinita, adentrando o ser de cada coisa para contemplá-la e vivê-la “por dentro”.

 

           No limiar da iniciação

 

           Resumindo o que foi dito até agora, o aspecto que concilia todas as abordagens iniciáticas é o aniquilamento do indivíduo “no Infinito Impessoal da Existência”, do qual reaparece mais vivo e enriquecido pela sua própria fonte interior. Neumann utiliza a expressão simbólica, “incesto uróboro”, para definir este impulso de morte, a tendência do eu e da consciência a se dissolverem, o que, segundo o grande psicólogo, tem um caráter profundamente amoroso e erótico. Segundo Neumann, esta pulsão primordial e evolutiva da natureza humana se manifesta por meio da ativação do arquétipo da Grande Mãe, (Uroborus materno), a “mãe da morte e da vida”, cuja dimensão transpessoal não pode ser, de modo algum, reduzível à mãe individual.

Desta forma, segundo Neumann, a força inconsciente se apresenta como elemento feminino que tem “a força irresistível de um rio caudaloso”, permitindo ao divino penetrar a consciência. O retorno do herói ao seio materno possui importante significado místico-iniciático, sendo acompanhado de introspecção, meditação e elaboração facilitadoras do desenvolvimento dos órgãos anímicos da percepção. Assim, o iniciando prepara o casulo-borboleta que cresce dentro de si como um embrião no corpo da mãe até o momento do nascimento da Alma a qual, assim, é reconhecida como a mãe do divino.

Durante as experiências iniciáticas e a sua conclusão através da renovação, no período que intercorre entre as vivências iniciais de morte e destruição do mundo, a pessoa perde todas as referências  e fica presa num torniquete. É um verdadeiro momento de impasse no qual, para o iniciando, já não é possível se amoldar às usanças do velho mundo, pois não lhe pertence mais, embora ainda não tenha identificado os novos valores que lhe permitirão construir um  novo e mais amplo projeto existencial. A esta altura, a pessoa se encontra no limiar da iniciação, às portas de uma nova experiência, e nos contextos iniciáticos tradicionais lhe serão dadas instruções exatas para superar algumas “provas” que o conduzirão à natural vida da alma. As provas geralmente são três: a prova do fogo, da água e do ar. 

A primeira “prova” consiste em  adquirir uma percepção mais verdadeira, conhecer o mundo na sua essência e, sobretudo, os elementos viventes em toda a sua nudez (elementos que, para a percepção física, permanecem como encobertos por um véu).  Para o iniciando, o véu é removido graças a um processo chamado de “combustão espiritual”. Quem atravessa uma experiência desse tipo supera a primeira prova, a prova do fogo, e é já um iniciando, mesmo que ainda  não tenha consciência de sê-lo.

Depois de superar a prova do fogo, prosseguirá pelo caminho iniciático e aprenderá, por meio da leitura, o conjunto dos signos de uma “escrita oculta” que lhe revelará as forças ativas no mundo. Durante as etapas desta aprendizagem, há ausência absoluta de apoio das condições do mundo externo, da mesma forma que, não tem onde se apoiar alguém que se mova na água sem chegar a tocar-lhe o fundo, sendo. por isso mesmo, reconhecida como a prova da água.

Segundo Steiner, os nossos desejos, paixões e tendências agem sobre os acontecimentos do mundo. Durante o percurso, caso o iniciando se deixe influenciar pelos próprios desejos e aspirações pessoais, ainda que por um só instante ele deixe de trilhar o caminho reconhecido por ele mesmo como justo, ele se perde, malogrando a direção e o escopo das suas ações. Quem passa pela vida fazendo vistas grossas aos próprios desejos e fins pessoais, é já – ainda que não tenha consciência disso – um iniciando, e o seu processo de superação das provas descritas é quase completo.

No limiar da segunda porta da iniciação há um aviso onde se lê: “tens de abandonar todo tipo de preconceito”. De agora em diante, superada a prova da água, o único guia em absoluto é a  verdade. Na terceira prova, nenhuma meta é proposta ao iniciando. A ele cabe a decisão, tudo está em suas mãos e somente por meio de si mesmo – através do “eu mais profundo superior” – ele poderá encontrar o pilar sólido que o apoiará na busca do conhecimento que lhe indicará, então, o caminho a ser percorrido. Nas escolas iniciáticas, esta terceira prova é chamada de “a prova do ar”, porque o discípulo não pode se apoiar no terreno sólido das condições exteriores e nem mesmo nas percepções como cores, formas, dons etc, mas, deve se apoiar unicamente em si mesmo. No iniciando, já, enfim, se consolidou a ideia e o vivo sentimento que, tanto o seu corpo físico quanto aquilo que anteriormente ele identificava como sendo o seu “eu”, são somente um instrumento e veículo do Eu superior, a sólida base do mundo físico no qual está apoiado. Ao superar esta prova o Iniciado alcança a “mais profunda felicidade” (Samadhi) e a vida adquire Significado, podendo realmente se transformar numa contínua disciplina oculta. Tendo deixado para trás a terceira prova, é consentido ao Iniciado penetrar no “Templo do conhecimento superior”.

 A experiência vivenciada por Maurizio, 44 anos, durante uma sessão de respiração holotrópica, parece estar relacionada com o que foi descrito. Ele a intitulou “as poltronas do conhecimento”:

Estou num lugar sem referências físicas, talvez seja o cume de uma montanha, entre as nuvens; quem sabe é o monte Athos, na Grécia. Como não conheço o local, caminho sem ter a mínima ideia para onde estou indo; a única coisa que sei deste lugar (ou ‘não lugar’) é que parece ser feito de luz branca. De repente, vejo uma cadeira de granito, grande e maciça. Um homem idoso me explica, de longe (está a cerca de 10 metros de mim e nunca se aproxima), que eu cheguei às três cadeiras do conhecimento. Eu observo melhor o local e me dou conta que não longe dali, há outras duas cadeiras iguais, bem distanciadas entre elas. O homem me explica que para chegar ao conhecimento eu precisaria me sentar em todas as três cadeiras, sendo que elas não são iguais entre elas: a primeira é a cadeira da água, a segunda do fogo, e a terceira é a cadeira da luz.

Sem delongas eu aceito a sugestão, e me sento na primeira cadeira, a da água. Ajo sem poder imaginar para onde tudo aquilo me levaria. Assim que eu me sento sou transportado para um mundo subáquatico vastíssimo e aparentemente sem confins (sem nenhuma possibilidade de ar!). Eu fico muito assustado e começo a sufocar; imediatamente entendo que vou morrer e que não há nada que eu possa fazer sobre isso. E, de fato, acontece: eu morro. A morte, porém, dura somente um instante, e, imediatamente, percebo que é como se eu tivesse sofrido uma transformação, pois agora posso respirar na água. Sou invadido por uma intensa euforia e não posso parar de rir. Começo a nadar como um peixe; respirando e me movendo livremente, eu me levanto da cadeira. Movendo-me livremente, me aproximo da cadeira do fogo. Ela me causa medo. Talvez o receio que eu sinta seja porque eu entendi que me aguarda uma nova  morte; talvez ainda, porque eu tenha medo que, com a nova morte, precisarei deixar para trás tudo o que conheço ao meu redor,  tudo o que amo. Choro copiosamente; quando vou para me sentar na cadeira, ainda titubeio. É como se desta vez eu soubesse que precisaria renunciar a todas as minhas certezas e o medo era, portanto, torturante.

Por me sentir fraco e assustado, não confiando nas minhas forças, decido que o melhor a fazer é me amarrar à cadeira. Assim que me sento, surgem vários anéis metálicos que prendem os meus pés e pulsos; num segundo, o fogo envolve o meu corpo todo e ele queima completamente. Mais uma vez, porém, a morte dura um piscar de olhos, pois, quase em seguida, sinto o meu corpo novamente o qual, surpreendemente, eu posso tocar. Toco as minhas mãos, o rosto, o peito numa surpresa sem fim, pois um momento antes eu sentira a minha carne que se esfacelava. Agora, não tenho medo de mais nada.

O meu olhar pousa sobre a terceira cadeira enquanto me aproximo timidamente.  Quanto mais a olho mais me dou conta de não entender o seu significado; o tempo passa e eu continuo a estudá-la, procuro imaginar a sua serventia, tento achar um indício, uma dica qualquer, mas minha mente está vazia, não consigo entender – ou não se pode entender. Só me resta sentar na terceira cadeira.  

Depois que me sento, passa um segundo, e então, bruscamente, tudo desaparece, incluindo eu próprio, a cadeira, as minhas perguntas e as respostas que eu buscava, não existe mais nada; tenho a percepção do nada mais absoluto e isso não é nem bom, nem assustador, é simplesmente NADA. Ou talvez tudo. Nada mais é necessário, e nada vem depois disso – talvez justamente porque seja já TUDO.

Quando trabalhamos com estados não ordinários de consciência (estados holotrópicos), tendo em vista que a cartografia do inconsciente normalmente se baseia na visão psicológica tradicional, deveremos forçosamente enriquecê-la com uma ulterior dimensão da psique: a dimensão “transpessoal” que significa literalmente aquilo que vai além, que transcende o biográfico, o pessoal.

Nos estados de consciência holotrópicos, podemos tirar lições de fatos ou situações que a nossa civilização, com a sua visão de mundo cartesiana e materialística, não considera “reais”. Podemos, por exemplo, viajar por mundos mitológicos ou legendários, encontrar divindades, demônios, seres fantásticos etc. Podemos também viver episódios da vida dos nossos antepassados ou nos identificar com entidades arqueípicas ou ainda, com qualquer aspecto da natureza seja ele humano, animal, vegetal etc. O processo morte-renascimento, da forma como é vivenciado nas sessões de psicoterapia esperiencial, tem implicações que vão muito além da simples revivescência do nascimento biológico: é um momento de transição extremamente dramático através do qual se pode alcançar uma diferente “qualidade” de energia psíquica e da própria experiência subjetiva. Durante os estado holotrópicos a consciência individual pode atingir um grau de máxima expressão, ou seja, transcende cada uma das barreiras e se identifica com a Consciência Cósmica ou Mente Universal, da forma como é descrita pela literatura espiritual. As experiências que emergem durante tais estados não ordinários de consciência pertencem ao mesmo “continuum” das experiências biográficas e perinatais, e, portanto, afloram das profundidades da psique individual, mas, ao mesmo tempo, parecem afluir diretamente de fontes de informação que vão além da normal mediação dos sentidos e da experiência biográfica. Tudo isso confirma a hipótese junguiana segundo a qual, ultrapassando o inconsciente individual freudiano, podemos contactar e alcançar o patrimônio cultural da inteira humanidade que se encontra latente no inconsciente coletivo.

As novas pesquisas sobre a consciência e a psicoterapia esperiencial trouxeram nova luz aos temas da espiritualidade e religiões, restituindo à psique humana a sua “dimensão cósmica”. A espiritualidade e o “numinoso”, como descrito por Jung, parecem pertencer intrinsecamente à dinâmica profunda da psique. Cada vez que o processo de autoexploração esperiencial alcança o  nível transpessoal da psique, ocorre o despertar da espiritualidade e assinala o início de um caminho “místico”.

              Extinção em massa, a morte de todos nós

 

Esporadicamente o nosso planeta é abalado por um inevitável fato catastrófico: a morte coletiva de seres viventes. Duzentos anos atrás os homens não tinham a menor idéia se isso já ocorrera algum dia ou se ocorreria ainda. Jamais houve, em nenhum precedente período da história humana, a consciência da possibilidade de uma extinção em massa. No ano de 2007 o Museu de História Nacional dos Estados Unidos propôs a seguinte pergunta a vários biólogos: “Estamos vivendo um processo de extinção em massa?” Setenta por cento dos biólogos consultados  responderam que sim

Uma extinção em massa é, portanto, a definição daquilo que podemos observar atualmente no nosso planeta. Os números são os seguintes: cerca de vinte e cinco mil espécies se extinguem a cada ano. Caso os seres humanos não existissem ou se comportassem de modo diferente com a Natureza, uma única espécie se extinguiria a cada cinco anos. Isto significa que, sem dúvida alguma, apressamos a taxa de extinção em progressão exponencial, algo como cem a mil vezes mais. Acabei de ouvir no noticiário da TV relatos sobre episódios de canibalismo entre ursos polares devido à escassez de alimento; somos, enfim, bombardeados cotidianamente por este gênero de manchetes. 

Assistimos, portanto, a uma lenta catástrofe, mas inexorável como aquela que dizimou os dinossauros cerca de sessanta e cinco milhões de anos atrás. Desta vez, porém, nós somos os responsáveis por tal cataclisma. Certamente, é difícil para nós ouvir e compreender o que vem pela frente, pois os nossos sentidos foram ajustados e desenvolvidos para tratar e interagir com as várias circunstâncias de modo imediatístico e a olho nu. Não é fácil, portanto, enxergar com nitidez um fato como esse que diz respeito à totalidade, ao planeta, e requer, desta forma, “uma visão de conjunto.” 

As promessas sedutoras do explosivo desenvolvimento científico e tecnológico do século XX distanciaram o homem moderno desta “visão de conjunto” – podemos dizer que o distanciaram do antigo Deus. Com a eliminação da dimensão transcendente da existência, o homem foi sendo banido da própria vida enquanto sofria a substituição do espaço transcendente pelo mundo tangível, mensurável e material proposto pela visão cientifica. Até chegarmos ao nosso comportamento de hoje: somos ondas que se esqueceram de ser o mar. Obviamente, se olharmos para o mundo externo, as imensas conquistas do século passado melhoraram vistosamente a qualidade da vida. Por outro lado, se deslocarmos o olhar do externo para o interno, se pensarmos na visão de Conjunto, na busca interior e no Significado da existência, será fácil perceber que ainda estamos  empantanados: a evolução ética e o “entendimento” não acompanharam todo esse desenvolvimento exponencial; sendo assim, as grandes conquistas externas ficaram sem lastro. A ciência se revelou limitada e decepcionante diante das  expectativas de “um mundo melhor”, transformado e evoluído humanisticamente. Na história das conquistas tecnológicas, jamais houve um período em que os  homens obtiveram tantas vantagens dos progressos científicos como hoje; em contrapartida, porém, o homem nunca desconfiou tanto da ciência como nos nossos dias. 

Consequentemente, nós assistimos ao retorno do Deus que fora abandonado em favor das promissoras metas do Iluminismo; ele regressa – vingativo – da parte mais profunda das nossas almas e requer, segundo James Hillman, o que não lhe foi ofertado de forma espontânea, sob forma de “doenças”. Ou de “pulsão mística” como afirma Stanislav Grof. 

Esperando ardentemente que uma visão mais ampla daquilo que nos circunda possa nos alçar da limitada e míope percepção ordinária do mundo e de nós mesmos, o matemático e cosmólogo Brian Swimme relata nos seus livros a história do universo. A forma como entendemos o universo por meio dos sentidos é somente uma fração reduzidíssima da sua verdadeira essência, daquilo que podemos conhecer indiretamente, por vias que não sejam as  sensoriais. Para Swimme o universo é uma fonte inexaurível e fulgorante de conhecimento e revelação.

Contemplar o cosmo em toda a sua infinitude e perfeição nos inspira maravilhamento e admiração, o tipo de prazer estático que abre a nossa alma ao evento místico. Swimme, particularmente interessado no potencial único do momento que vivemos, está convencido que o nosso presente seja o momento perfeito para que o universo se torne consciente de si mesmo, graças à evolução das capacidades introspectivas da consciência humana. O estudioso americano enfatiza ainda que, a odisséia do universo é a história mais autêntica e profunda de nós mesmos.

A natureza e o fenômeno humano são um processo contínuo, embora nem sempre nos seja  claro como os fatos se conectam entre si. A nossa consciência, por exemplo, (afirma o matemático cosmólogo americano), depende das propriedades do protoplasma cuja existência é dada pelas inumeráveis condições de vida típicas do nosso planeta o qual, por sua vez, é determinado pelo equilíbrio e influências do universo inteiro. Desta forma, podemos afirmar que a nossa consciência esta conectada às galáxias mais remotas. Num momento como o atual, verdadeiro porta-voz da  nossa crise planetária, podemos, sem dúvida, como afirma Swimme, iniciar conscientemente a “reinventar o humano como uma dimensão do universo emergente” e, assim fazendo, mover o nosso leme na direção de um modelo de humanidade no qual tudo esteja profundamente conectado. 

Estamos acorrentados ao efêmero, nos diz o mito, a águia nos erode e “sofremos as asas”, como diria Guimarães Rosa, mas, ainda que pouco, somos capazes de intuir o vôo. Desta vez, a difícil batalha a qual somos chamados a combater terá lugar nas profundezas do nosso mundo interior – o espaço profundo – ou do universo emergente em nós, como diria Swimme.

Nos mitos, o pai divino do herói intervém em sua ajuda nas situações decisivas como aquela que observamos agora: uma guerra arquetípica entre divindades. É exatamente neste espaço, – onde sujeito e objeto se matam alternadamente – que o herói, como Parsifal, conquista a sua lança e prossegue na busca da raiz secreta de si mesmo.

O conflito que se repete e que permeia cada transformação é aquilo que o adepto dos Mistérios experimenta pessoalmente no curso da Iniciação, sendo também a mensagem presente no símbolo de Cristo: “ser crucificado e ressurgir”. Cada vitória é uma morte. Morte que pode se transformar na própria vida e nos tornar, cada um de nós, aptos a se autogerar novamente, por si mesmo. E assim fazendo, nos será possível preencher o intransponível abismo entre o homem e Deus.