A arte da psicoterapia

O espaço terapêutico como lugar sagrado onde  fluem os Mistérios da alma

 

 

“O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da arte superior é libertar.”

“No fundo, a religião é uma forma rudimentar do sentimento de beleza. Toda arte não passa de um ritual religioso.”

                         (Fernando Pessoa)    

A arte que nos torna livres

Fernando Pessoa, o grande poeta português, poderia ser definido um verdadeiro alquimista da alma e mago da palavra; ele percorreu um turbulento caminho de busca interior, auto-exploração e auto-expressão do qual surgiram os famosos heterônimos: Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares – personagens que pertenciam à vanguarda cultural portuguesa e que, desenvoltos, se moviam naquele ambiente como se fossem personagens viventes com características e traços bem definidos, munidos de autobiografia e reconhecíveis pelo inconfundível estilo literário. Pessoa define a arte: “a auto-expressão que luta para ser absoluta”. Esta frase também caberia para um analisando com o caminho existencial que trilhou e o desenvolver-se da “sua arte”; nesse caso específico, a arte que se tem em mente é a arte do decodificar o indizível por meio da magia alquímica das palavras. Palavras que ‘re-nascem’ das profundezas do ser, vitalizadas pelo espírito novo, palavras que trazem caos e abalam, mas, ao mesmo tempo, tornam palpáveis – no ar impalpável – a essência indelével. A arte de “desatravancar as superestruturas” para que a alma possa emergir. Essa forma específica de arte, realizada “a quatro mãos”, ou melhor, “a dois corações” – entre o terapeuta e o analisando – era comparada por Aldo Carotenuto à “escultura”.

 

 Sublinha ainda Pessoa:     

 

“A finalidade da arte não é agradar. (…) A finalidade da arte é elevar.”

O criador da pintura abstrata, o artista russo Kandinski, exprime nas suas obras a grande relação existinte entre a obra de arte e a dimensão espiritual. Segundo este notável artista que é Kandinski, a arte “supera os limites nos quais o tempo desejaria restringi-la, e indica o conteúdo do futuro”. Para ele, a cor pode ter dois possíveis efeitos sobre o espectador: um efeito físico, superficial, baseado na percepção sensorial e um efeito psíquico devido à vibração espiritual por meio da qual a cor toca a alma: a cor “tem odor, sabor e som”. O vermelho, por exemplo, expressa dor, não tanto por uma associação de ideias (a cor do sangue), mas sim pelas suas intrínsecas características, pelo seu “som interior”.  Para explicar o efeito da cor na alma, Kandinski emprega uma metáfora musical: a cor é a tecla, o olho é o martelete e a alma é o piano de infinitas cordas. Segundo o artista russo, a composição de um quadro não deve se dobrar às exigências puramente estéticas e exteriores, mas, ao invés disso, deve ser coerente com uma profunda necessidade interior que Kandinski chama de honestidade. A definição de belo não deve estar presa a cânones estéticos ordinários e pré-estabelecidos. É belo tudo aquilo que responde ao sentido, sendo vivido pelo artista como uma necessidade interior

No fundo da alma, esta necessidade interior pertence a todos nós, pois, segundo Carotenuto, somos todos potencialmente “artistas”. O sofrimento é justamente o elemento  que insufla em nós a necessidade de perguntas às quais não poderemos responder se não encararmos outras tantas interrogações; desta forma, num certo sentido, somos “chamados” à auto-expressão e à evolução. Chamados por “algo” que parece residir num lugar remoto, fora de nós, algo que “fecunda a nossa alma” e nos torna, então, “criativos”. Tanto para Carotenuto quanto para Meister Eckhart, criar significa dedicar-se à dimensão sagrada da existência: “a criatividade é uma centelha do divino que habita a nossa interioridade”. (Carotenuto, 1991). Uma centelha que reside na alteridade, no além existente dentro de nós mesmos e que Rudolf Otto define “numinoso”; trata-se de um lugar mais real do que a própria realidade, um espaço futuro, ocorrente no presente, e que costumamos chamar de sagrado. Desta forma, a arte como um todo se transforma em arte-sagrada, como também sagrado é o temeno, o espaço da terapia. 

Quando nos encontramos diante de uma obra de arte ou de um local sagrado, como por exemplo, um santuário que há séculos é meta de pelegrinagem, muitas pessoas vivenciam uma experiência subjetiva comum: provam sentimentos de paz interior e harmonia quase palpáveis; respeito reverencial, temores e tremores como se o ar desses lugares estivesse impregnado não só de beleza artística, mas também de todas as projeções, emoções, intenções, orações e significados de todos aqueles – gerações inteiras de visitantes – que, pisando o seu solo, contemplando a beleza e “respirando” aquela atmosfera, passaram por ali.

O terremoto da Arte

 

Sabe-se, porém, que, tudo o que fascina, pode também e, ao mesmo tempo, transtornar; tal agitação tem o dom de fazer tremer a alma nas suas bases. Dificilmente seremos os mesmos depois de observarmos atentamente uma obra de arte; não é possível permanecermos distantes e indiferentes ao efeito da arte sobre nós. Algo acontece: inquietação, pânico, terror ou então sentimentos de unidade e ampliação de horizontes; esse conjunto favorece o acesso a uma nascente interior de força vital. Assim sendo, para o bem e para o mal, alguma coisa acontece.

Às vezes, o poder evocativo da obra de arte ou do local “sagrado” se revela dramaticamente devastador, e, portanto, perigoso, pois desestabiliza a personalidade. A experiência estética pode ser capaz de “adoecer” o indivíduo, fazendo-o cair nas malhas de uma enfermidade dentre as mais ilustres: “a síndrome de Stendhal” como a definiu Graziella Magherini (1989) no seu homônimo livro; a autora seguiu a trajetória do  famoso escritor, Stendhal, o qual, diante da potência da arte, foi acometido por esse tipo de transtorno psicológico. Magherini nos fala da sua experiência como psiquiatra em Florença, cidade de arte por excelência, onde milhares de turistas estrangeiros sofrem descompensações psíquicas que são desencadeadas pela contemplação de lugares e obras de “excessiva beleza”: 

 

“Muitos dos nossos pacientes são personagens tocados pela beleza, mas, grande parte deles, “selvagemente” recolhidos em si, refugiados na doença em conseqüência da impossibilidade de tolerar a relação apaixonada com o objeto estético, o qual, se por um lado, com suas qualidades formais fascina, por outro lado, provoca dor em virtude do aspecto enigmático que emana e dos dilemas que expõe.” 

 

A força e a beleza de uma obra de arte ou de um lugar despertam a alma e entram em ressonância com os aspectos removidos e conflitantes do nosso mundo interior, trazendo-os à tona. Por meio da expressão artística, portanto, seja nos aspectos de nobre beleza ou de erotismo, mas também de dor, angústia, degradação, ou, ainda, de violência, abre-se um rombo brusco e feroz na nossa habitual percepção. Uma vez demolida essa percepção, ditada pelo restrito espaço da vida cotidiana e dos “confins do eu”, abre-se a via para explorar e conhecer um universo desconhecido, rico de possibilidades cognitivas; desta forma, entrando em contato com o “totalmente outro”, nos confrontaremos com o mistério da existência.

Por íntima vocação ou por pessoal busca da verdade, o artista é capaz de “entregar-se totalmente”; ele doa aos outros, mesmo as parcelas de si que desejaria manter em segredo, pois tais partes são fontes de dor. O artista é aquele que, desnudando-se, revela através da sua obra as camadas mais íntimas do próprio ser, e interpreta, no teatro da vida, mil personagens: os rostos do desejo, as máscaras do desespero e medo, a careta da crueldade, as vestes da agonia, o êxtase e a divindade.

Segundo Grotowski, grande reformador e figura expoente da vanguarda teatral, os atores “devem poder contar com um método que adentre o desconhecido, caso contrário, o método é ruim e não serve”. Para o maestro o “método bom” deveria integrar as energias psíquicas e físicas através do “auto-adentramento” que, por ser total, equivale a um “estado de transe”, podendo ocorrer somente por meio do “dom total”, humilde e sem reservas de si mesmo, do qual advém uma espécie de “translucidez”.

 A arte e a sua linguagem penetram até as dobras mais remotas do nosso mundo interior; têm acesso ao espaço onde jazem latentes todos aqueles conteúdos repletos de energia, conectados com os aspectos mais extremos da vida e da morte, verdadeiros arquipélagos de angústia, dor e êxtase, ilhas distantes da terra firme da nossa consciência habitual. A emoção liberada por meio da expressão e fruição artística pode ser, portanto, demasiadamente forte para ser contida e elaborada. Desta forma, corre-se o risco que, uma força propulsiva de tamanha grandeza, abata defesas (e certezas). Enveredando-se pelos abismos profundos da alma, essa força pode ter um função reveladora (no sentido mais literário da palavra, isto é, “levantar o véu” que escondia elementos deveras ‘escorregadios” que, até então, jaziam no fundo da nossa ordinária percepção da realidade). Diante disso, caso se rompam equilíbrios (ainda que precários, mas, no entanto, extremamente funcionais ao nosso ser no mundo – uma espécie de “céu que nos protege”) podem ser abertas ásperas fendas nas camadas dos esquecimentos o que comprometeria todas as nossas seguranças habituais e atingiria o centro abrasado do próprio ser.

Stanislav Grof define a experiência oriunda deste encontro como sendo uma verdadeira e própria “emergência espiritual”, uma profunda crise psicológica que pode se revelar um momento fecundo e evolutivo, um momento iniciático de profunda transformação interior e abertura espiritual. 

Para Friedrich Schiller (1793) o caminho da liberdade passa pela contemplação da beleza. O poeta-filósofo alemão define “o estado de ânimo estético” um estado de consciência “integrado” através do qual se pode alcançar a fonte evolutiva do autoconhecimento e criatividade. Schiller descreve de forma significativa o homem moderno nas suas“Cartas sobre a educação estética do homem”, datadas de 1793 (mas surpreendentemente atuais); indo muito além do tempo e espaço no qual ele vivia, a descrição de Schiller trancende o  momento histórico.

 

 A razão se depurou das ilusões dos sentidos e de uma enganosa sofística, e a mesma filosofia, que anteriormente nos induzira à rebelião contra a natureza, agora nos chama urgentemente, e a altos brados, a reintegrarmo-nos nela. Qual é a causa da nossa persistente e duradoura barbárie?

 

Conforme nos identificamos com o nosso “eu” separado, o mundo permanece “desendeusado”, despojado do seu caráter divino. Por meio da obra de arte entramos em contato com o elemento espiritual existente em todas as coisas do mundo. Desta forma, a arte se torna uma espécie de “processo reparador” graças ao qual o espírito invisível tem a possibilidade de se tornar visível, manifestando-se na forma sensível,  subtraindo-se, portanto, a uma existência de Sombra: ele se vê através dos sentidos, mas o que realmente importa é o espírito que flui por meio deles. A experiência estética é, portanto, uma necessidade vital: é o meio para que possamos nos religar a totalidade perdida, uma espécie de antídoto à alienação contra o qual o homem moderno, porém,  se entrincheira e opõe duras resistências.

Segundo Schiller, pela contemplação daquilo que é Belo o homem é projetado para o lugar intermediário, alternativo, no qual é possível introduzir a razão na atividade sensível e o sensível pode se elevar a um grau mais alto de consciência, de modo que ele venha a operar como espírito. Desta forma, para Schiller, o verdadeiro artista é aquele que veicula em si a realização dessa própria transformação, fazendo-se testemunha do espírito e inserindo o mundo espiritual no mundo sensível. O “estado de ânimo estético” favorece, portanto, a íntima conexão da razão com a realidade sensível manifestada à alma através dos sentidos; assim fazendo, introduz na percepção e na ação do mundo físico um elemento espiritual: a beleza. Assumindo o cunho de espiritualidade, o Bem, então, se extingue, sendo capaz, de agora em diante, de “direcionar-se por si mesmo, sozinho”.

 

 “… fazem parte de um gosto desenvolvido, a clareza de intelecto, vivacidade de sentimento, liberalidade e até mesmo dignidade de conduta, e para um gosto não educado, normalmente se observa o contrário.”

Schiller analisa a atitude interior necessária para experimentar, acolher e produzir obras de beleza; trata-se daquele estado de consciência por meio do qual o mundo, os fatos, a própria vida se revelam ao homem na sua íntima essência. Para Schiller, o advento do verdadeiro ser humano ocorrerá quando este estado de consciência se consolidará.  

Na realidade, diante das profundezas abismais (ativadas, graças à arte, pela participação da alma nesse espetáculo, pelo encontro com o Belo ou com o Sagrado) não temos muita prática;  estamos habituados a entender a experiência, mas o encontro com o Belo ou com o Sagrado nos faz experimentar uma mudança no nosso estado subjetivo, do qual a emoção estética ou religiosa é expressão. Como afirma Schiller, a “beleza é funcional à elaboração da verdade enquanto experiência real”; o estágio intermediário de liberdade estética é a única condição necessária para chegar juntamente com a razão a uma posição ético-moral. 

      “… para que o homem sensível  se torne razoável a única via é torná-lo, 

 antes de tudo, estético.”

A arte e a sua crueldade

 

Se quisermos obter o sentido de todas as obras artísticas, se constatará o que para Robert Musil, é uma negação interminável-incompleta (mas exemplificativa e fundada na experiência) de todas as normas, regras e princípios vigentes na sociedade que ama aquela mesma arte. A arte, para Musil, “com o seu mistério, transpassa o sentido do mundo todo, agarrado a milhares de palavras triviais, e faz dessa ação um balão que voa distante. Se isso se chama beleza (como habitualmente se pretenderia) então a beleza deveria ser uma sublevação mil vezes mais cruel e impiedosa que qualquer outro tipo de revolução política!” Também para o filósofo francês Jean-Luc Nancy, considerado juntamente com Jacques Derrida  o maior expoente do “desconstrutivismo”, a grande arte provoca, abala e altera o sentido do mundo. 

A arte contempôranea desfigura completamente o usual sentido de beleza: desmonta a frase, a própria forma, desorganiza a sintaxe, expressando, desta forma, para além dos confins da palavra, o próprio dissenso com toda a sua bagagem anárquica e provocatória; esse dissenso é também crítica e  desafio aos mitos, às linguagens e valores, ao excessivo intelectualismo e consumismo da nossa sociedade. Representantes da Arte Pop, como, por exemplo, Andy Warhol e Roy Lichtenstein,  foram altamente críticos à sociedade de consumo; “coletando” imagens de objetos pinçados da vida cotidiana, Warhol e Lichtenstein os transformaram em obras de arte: o universo dos hamburgueres, dos carros, das publicações em quadrinhos e TV foram reproduzidos e utilizados com instrumentos  e meios não tradicionais.

Autores “malditos” como Sade, Nietzsche e Artaud deram impulso ao grande protesto da arte contemporânea; fazendo vacilar o mundo ordenado e previsível da razão, o substituíram pelo caos primordial: violência, erotismo, solidão extrema e impulsos destrutivos. Cada protesto exprime, juntamente com a sua raiva, a Sombra da cultura que o gerou e não se dá por vencido diante de nenhuma regra cromática ou gramatical, de nenhum código estético: irradia e transforma energias, libera as potencialidades contidas nas insondáveis profundezas do inconsciente coletivo. Na tentativa exasperada de conter e transformar o Caos o protesto exprime toda a força propulsiva do seu desejo e instinto e toda a rebelião contra a violência da cultura: “é um grito primordial que aniquila e frustra todo e qualque tipo de regra”, afirma Maria Pia Orazi a propósito da dança japonea butô”. Um grito que evoca e celebra aquilo que ainda não “é”, que ainda não existe; muito embora possa ser uma promessa de existência na vida que escorren e de um coração que ainda pulsa dentro de nós. Um grito que restitui ao homem a sua instintividade-espiritualidade e a força primitiva, que ainda vivem no amor, no desejo, mas também no “delito”, na crueldade e loucura.

 

“Eu renego
o batismo,
a pátria,
a ciência
a palavra,
a literatura,
os ritos,
a liturgia,
as experiências,
a pedagogia,
o ensino

a lei,

as leis, 

o testemunho.
Eu não acredito no valor da salvação”.

(Antonin Artaud)

“Eu, Antonin Artaud, nascido em Marselha em 04 de setembro de 1896, cinqüenta anos de idade, autor de cinco ou seis livros de poesia, ator e diretor de cinema … fui despojado de qualquer tipo de poder que me permitisse dispor livremente da minha vida e do meu corpo, internado e enclausurado num manicômio por 9 anos, objeto nas mãos das autoridades,  fui submetido a leis cruéis e alienantes que me tornaram irremediavelmente outra pessoa e para sempre. Sofri 51 eletrochoques, sendo que durante um deles fui declarado clinicamente morto e depois ressuscitado, para ser jogado novamente no terror do tratamento psicanálitico… Do mais profundo do meu ser e querer eu continuo eu renegar a psicanálise, fugirei dela eternamente como fugirei de qualquer outra iniciativa que tente aprisionar a minha consciência em preceitos ou fórmulas, numa organização verbal qualquer… eu, Antonin Artaud, morto em Ivry em 04 de março de 1948, sentado aos pés da cama.”   

De forma alguma confortadora ou familiar, a obra de arte nos arrasta com ela para territórios que são desconhecidos ao nosso sentir habitual; ela nos desorienta, questiona e embaralha todos os nossos pontos de referência, nos confronta. E a beleza enquanto fascínio, maravilha, assombro, sofrimento, exaustão dos nossos mais recôndidos desejos e ideais pode se revelar um atentado ao nosso “ pequeno eu” funcional em correspondência à sociedade na qual vivemos. A verdadeira arte, exatamente como toda verdadeira terapia pode ser “maldita” e “perigosa”, e agir  como elemento subvertedor da ordem social.

A obra de arte conclama o homem ao seu destino Humano ou Sobre-humano. O obriga a encarar tanto as profundezas abismais do Ser quanto a sua Sombra gigantesca que contém os aspectos mais dolorosos e extremos do nascimento e da morte que não foram ainda integrados na consciência atual. Algo entra em cena no nosso teatro interior, algo envolvido numa indizível angústia que “assusta e abala” e “enlouquece”; é um elemento estranho, mas, ao mesmo tempo, desgraçadamente familiar: o desconhecido e o déjà-vu. Por certos aspectos, a emersão de tais aspectos da vida emotiva pode ser comparado ao que Freud chama de experiência do “perturbante”, um reflorescer de elementos “primitivos”, “arcaicos” do inconsciente.

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O útero e a arte

 

Algo di indizível e não representável, algo que deve permanecer vedado ao nosso entendimento, emerge dos abismos mais profundos do nosso ser e das nossas vísceras e se manifesta na consciência com toda a sua potência transformadora. Segundo Kazuo Ono, o grande maestro de butô, a origem da verdadeira arte se encontra no ventre materno. Ali, imerso no líquido amniótico, o embrião se move num mundo sem fronteiras, ilimitado, oceânico, um mundo que, segundo Ono, “não é acessível aos viventes”. 

A emoção e alegria que brotam da contemplação da Beleza nos reconduzem  a uma dimensão estática de expansão e perda dos confins, somos novamente em contato com aquela dimensão do prazer, união e fascínio da originária fusão com a Mãe-Natureza cujas distantes raízes se encontram na experiência pré-natal. O sentimento de completeza que pertence aos territórios não limitados da experiência intra-uterina se origina naquele de passado remoto jamais cancelado totalmente: quando éramos Tudo e não havia nenhum tipo de falta da qual pudesse nascer o desejo. A experiência estética oferece um espaço intermediário no qual ritualizar a nossa fome de completeza, a saudade daquele lugar da alma permeado de Prazer, Beleza e Harmonia, o êxtase paradisíaco: a fusão com o corpo materno.

Durante uma profunda autoexploração experiencial, ativada, por exemplo, pela respiração holotrópica, tem-se acesso aos territórios do inconsciente profundo; Stanislav Grof o chama de “primeira matriz perinatal de base” (“o universo amniótico). A base biológica desta matriz encontra-se na existência intra-uterina, sendo dada pela fusão original do feto com o organismo materno. Uma vez alcançados tais territórios do inconsciente profundo, emergem emoções e sensações físicas de extrema intensidade: a sensação que se tem é de “estar imerso na água”, flutuar no mar ou em regiões sem limites até a identificação com o oceano inteiro, galáxias, espaços interestelares ou, até mesmo, encarnar o cosmo todo. Todas essas percepções são acompanhadas de imagens simbólicas e arquetípicas carregadas de “numinosidade” como, por exemplo, visões paradisíacas da natureza no seu máximo esplendor, beleza, harmonia: águas límpidas e cristalinas, céu azul, florestas virgens, pedras preciosas, ouro, prata ou imagens de paraísos das várias culturas. A máxima expressão da qualidade sagrada e espiritual desta matriz é a experiência de união mística ou unidade cósmica caracterizada pela transcendência do tempo e espaço, pelo sentimento de profundo respeito para com toda a “criação” e por fortes sentimentos estáticos. Este tipo de êxtase é chamado de “Oceânico ou Apolíneo”. 

No útero, vida e morte não se distinguem. A criança no ventre materno é “pura presença”, pois, segundo as vivências das experiências holotrópicas, o ventre materno é “um local de morte diferente do além-mundo”. Nesse contexto, a morte não é considerada uma condição biológica, mas um estado de consciência típico dos percursos iniciáticos. Nos estados holotrópicos, o útero e o universo acabam por se identificar (o cosmo é visto e experimentado como um grande útero). É como se a alma mergulhasse no cosmo e fôssemos “envolvidos”, impregnados por este sentimento do infinito.  Nas palavras de Ono, “vestir o universo é o melhor modo de dançar”, de produzir arte. O transe e o abandono da consciência parecem ser, portanto, o elemento propulsivo e o coração pulsante de toda a arte.

Tal vivência de união estática (que permanece para nós um mistério insondável) constitui a máxima expressão da Beleza e a fonte primária do Prazer; ela é uma espécie de “paraíso perdido” dentro de nós, um reservatório de energia enclausurada, que, uma vez liberada, se torna desfrutável e anima o mundo inteiro, dentro e fora de nós. Em sintonia com tais profundezas e com o reservatório de “Prazer Originário” (advindo da experiência intra-uterina), a experiência “estética” permanece, portanto, para quem a vive, não somente uma vivência sensorial ou contemplativa, mas, sobretudo, uma prova “participativa’ e transformadora.

 

O temeno analítico, local sagrado, onde têm lugar os Mistérios da alma.

 

Nos nossos sonhos, normalmente o inconsciente aparece como um território estrangeiro, e o nosso revolucionário caminho interior também passa por esta “área dentro de nós que vai além das fronteiras conhecidas”, a percorre tanto nos seus aspectos paradisíacos quanto também infernais. Emergem, deste local interior, os nossos fantasmas que acabam  por povoar o espaço analítico, espaço “intermediário” de encantamento e sensibilização estética, recipiente ideal das projeções de tudo aquilo que se encontra “além dos confins”, dentro de nós. Desta forma, a prerrogativa da obra de arte como de toda terapia do profundo (enquanto “espaço uterino”, base das experiências emotivas) é dar significado aos símbolos, isto é, traduzir os aspectos da vida interior que não são suficientemente pensáveis, exprimíveis ou representáveis. Trata-se, portanto, de encarar o ambiente em questão como um cenário de arte: vendo-o como uma tela em branco e uma paleta ou como um palco vazio, podemos usá-lo para aquarelar os nossos fantasmas e encenar um drama arquetípico.

Exatamente como a alma de uma pessoa, a alma de um lugar pode ser descoberta; é possível descrever essa alma internamente segundo a nossa concepção. Conseguimos captá-la, por exemplo, nas áreas arqueológicas, nas casas antigas ou quando estamos imersos num cenário de arte, nos locais sagrados: mágicos “chuviscos” de luz filtrados pelas janelas entreabertas, sons provenientes de lugares desconhecidos, todos esses elementos povoam o espaço de  “presenças invisíveis”, frações de tempo suspensas pelo leve roçar nas madeiras assoalhadas, pelo passo silente dos velhos fantasmas que caminham sorrateiramente para não nos atrapalhar…

O escritor Henry James usa a expressão genius loci (espírito ou alma do lugar) para definir esta verdadeira “impregnação de espírito” que guarda em si a essência do ambiente: um concentrado de todos os significados que aquela atmosfera nos sugere com seus odores, sons e cores, seus espaços abertos ou fechados, jogos mutáveis de sombras e luzes. A alma de um lugar é inextricavelmente moldada conosco e exige transparência e autenticidade. Como a beleza de uma obra de arte (beleza esta que, para Schiller, é algo indefinível e dá prova efetiva do que, indo além da compreensão humana, é fundamental”), também um lugar pode nos encantar, avivar o ânimo e fornecer  sugestões que embaçam os sentidos e nos conduzem a outro lugar. 

Tudo aquilo que, difundindo-se no ar, enche nosso coração e pulmões; é a própria essência do ambiente o qual, volátil, fecunda a alma e halita tudo ao seu redor sob forma de tênues informações entre os nossos sentidos e as pessoas, espaços, objetos, ou o próprio ar que se respira. Algo que parece ir muito além dos simbolismos somente ou dos significados recônditos. 

Grotowski, um ateu convicto, expressava-se por meio dos conceitos de “sacerdócio” e “sacralidade do ator” quando queria se referir ao momento no qual o autor entrava na “santidade do espaço cênico”; para ele, naquele exato momento ocorria algo de especial, algo muito semelhante à Missa na Igreja Católica. É neste espaço e na sagrada relação entre ator e público que, segundo o famoso dramaturgo, o público se vê diante do desafio de  empreender “a trilha da compreensão”; ele é desafiado a pensar e a se transformar pela atuação e desempenho teatrais e por uma única certeza: “a presença do autor”. Desta forma, por meio do teatro, Grotowski entregava ao público os rituais sagrados da transformação.

Nos locais sagrados, orações e atos de devoção continuam registrados no ambiente da mesma forma que, o espaço da terapia, permanece impregnado da alma, do calor e da verdade de toda a história passada, presente e futura do analisando. No “setting,” todo o ambiente é caracterizado por uma alta densidade; cada gesto,  silêncio ou o simples som da voz se ampliam; e, então, carregados de genius, nos capturam e chegam diretamente aos nossos sentidos; são parecidos com alguns cenários artísticos peculiares como o teatro de Grotowski  ou de Beckett, a “dança das trevas” (o butô) ou as “montagens” de uma Bienal de Arte. Acontece com freqüência no espaço analítico que, esforçando-se por dar consistência física às imagens através das palavras (unir espirito e matéria), o analisando-artista transcenda a própria consciência e aja em “estado de transe”, colocando em cena puras visões do inconsciente; tudo queima, a identidade desaparece e a força interior é, enfim, visível.

Diversamente da comunicação tradicional, que é um meio para transmitir algo pensado e já estabelecido precedentemente, no “setting”, um mundo de expressões e imagens vem à tona do “espaço terapêutico” e se dissipa no ar vivificando o inteiro ambiente, exatamente como uma estátua de Michelangelo emergia, viva, das vísceras do mármore. Desta forma, o espaço da terapia é “um espaço animado”, um espaço cruzado por linhas invisíveis e forças viventes; tanto a imagem contida na pedra quanto os impulsos e expressões emergentes do temenos analítico, pertencem à memória individual e coletiva que, acumulada ao longo do tempo, é formada não somente pelos seres humanos, mas também pelos animais e plantas e, ainda, pelo mundo inanimado.

Todos os objetos circundantes adquirem aparência das coisas vivas quando a  luz do sol resplandece e, filtrada pelos vitrais da janela entreaberta, se expande em infinitos raios coloridos iluminadores dos minúsculos grãos de pó dançantes. Exatamente como se o temenos tivesse a faculdade de incorporar a memória  anímico-espiritual de toda atmosfera circunjacente, nos móveis, nos pisos, nas cortinas, no ar que se respira. Assim sendo, a alma levanta o véu e descobre diante de si um horizonte infinito de percepções e verdade e ela é capaz, então, de sentir que todas aquelas linhas, luzes e cores, existiam já, embora estivessem invisíveis no espaço. É como se conseguisse captar a interioridade e espiritualidade humana descendo até o plano físico e penetrando a matéria. Renunciando a expressar-se por meio dos papéis de sempre, o analisando-artista se apresenta à cena da terapia como um “sujeito morto”; na condição de morto, ele já não tem nenhuma vontade expressiva, podendo, então, simplesmente, apresentar a si mesmo, deixando transparecer a memória. O primeiro passo na direção da verdadeira expressão é, portanto, a “renúnica a exprimir”. Não pretendendo exprimir nada, o analisando-artista revela a sua existência enquanto “matéria-prima” que, fazendo ouvir a sua voz secreta, se torna veículo do Ser. Assim sendo, a cena da terapia é um lugar bastante próximo da morte, e somente em tais lugares, como afirma o poeta Jean Genet, todas as liberdades são possíveis.  

Para que este processo ocorra, analista e analisando (exatamente como os atores e o público de Grotowski), os dois juntos devem saber colher – “na santidade do espaço cênico” – o átimo presente; em meio a tantos impulsos e imagens, devem poder identificar quais deles pertencem à esfera do sonho ou da realidade, os próprios espaços internos e externos; enfim, é preciso que haja, sobretudo, entrega: despojamento para se abandonar à dissolvência, integração e expansão num processo evolutivo sem fim o que, sem dúvida alguma, despertará o sentimento que, ainda é possível, a qualquer momento, cair, sobressaltar-se, voar.

Mario, um analisando de 53 anos, é um afirmado arquiteto que se dedica com muito sucesso à decoração de internos. Sendo particularmente sensível às formas, linhas e movimentos do espaço circunstante, quando às suas imaginações ativas, ele expressa toda a vitalidade e força interior que emergem da percepção e do “sentimento do lugar” da terapia. Seguem alguns trechos destas imaginações ativas atuadas por Mario durante as sessões analíticas: 

 

Toda vez que fecho os olhos, repentinamente, a sala se expande até o infinito e vejo Virginia (a analista) que se distancia cada vez mais…  a uma certa altura, o meu sofá “Chaise long” se move com grande velocidade na direção de um túnel que se abre na parede da sala, como se o sofá fosse dotado de um motor… levo um susto.

 

Estas imagens são bastante exemplificativas de uma percepção do local da terapia como sendo um “lugar animado”: um lugar pulsante, mutável, rarefeito e infinito.

 E ainda:

 

 A sala da terapia se transforma. Agora me vejo numa sala toda de madeira; no centro há uma mesa de design bastante simples, e outros poucos móveis de madeira, também espartanos no estilo. Há uma grande janela, mas o vidro está sujo, não se vê nada. Vejo uma escada que desce e paro. Virginia me pergunta se eu quero descer a escada. Respondo que sim e desço: lá embaixo, tudo é penumbra; estou num ambiente fechado e sem janelas. “É uma carvoaria e há muito carvão”. De repente, a cena muda; eu estou no sotão onde meu pai, que era um artista, normalmente pintava  (meu pai dizia que o sotão era o local onde se encontram todos os sentimentos). Há janelas com vidros sujos, vários cavaletes e um armarinho, onde, dentro, vejo latas de leite condensado.

 

Estou novamente no lugar de antes, desci até a carvoaria, procuro algo e  acho um anel de água-marinha. Eu o pego e subo as escadas; levo o anel para cima e o apoio na mesa espartana. Do sótão desce uma luz cônica sobre o anel, que brilha muito. Vejo o meu rosto refletido na água-marinha. Pego o anel e o coloco no bolso.

 

Quando a sessão termina, antes de ir embora, o analisando me pergunta se ele pode ficar com o isqueiro que está sobre a mesa, pois quer ascender um cigarro fora do consultório. Eu digo que sim e ele, então, me confessa que, uma semana antes, quando participara do grupo anterior de respiração holotrópica, pegara do ambiente um isqueiro e o colocara no bolso; desde então, mantinha o isqueiro sempre consigo, e, às vezes, sentia necessidade de tocá-lo: “era a sua salvação”.

O isqueiro – que, neste caso, poderia ser definido como “objeto transacional” (Winnicott) – pertencia ao local onde Mario tivera a experiência holotrópica ; num certo sentido, Mario ficara “condicionado” pela experiência que tanto ele quanto os outros haviam vivenciado naquele lugar. Ele se sentia “carregado de algo”, algo tangível que ia muito além, unicamente, do seu “significado”; quando o tocava com as mãos sentia algo de benéfico. Da mesma forma que, numa obra de arte se concentra a íntima essência do seu executor (essência que, no ato criativo, reverte-se na obra, e essa, por sua vez, a reverte no espaço circunstante), também um lugar pode ser “condicionado” por tudo aquilo que ali foi “vivido, sentido, respirado”. O espaço terapêutico está, portanto, impregnado de tudo aquilo que, tendo se acumulado  emotivamente ali, paira no ar que se respira do seu longo sentir e viver; essa densa e rica atmosfera foi impregnando o terreno, as paredes e a própria estrutura do lugar: um espaço que, com o passar das sessões, se torna, exatamente como acontece a algumas obras de arte ou lugares sagrados, um lugar vivente.

A seguir o relato de outra sessão com Mario.

 

Minha memória volta até a casa onde passei a minha infância e eis-me ali, ainda menino; estou na sacada da casa, visto uma camiseta de listras e uso óculos de aros pretos. Sinto a alma da casa: uma alma má, uma casa maldita. A alma da casa tem um ar de inquisição. Eu me lembro da casa, vazia; casa maldita, “inanimada”, onde não morava ninguém, somente eu. A minha única relação era com a casa e com a sua maldição.  

Naquela mesma noite, sonhei que estou no estúdio, com Virginia. Eu a vejo nua, de costas, e, na frente, ela está toda coberta por uma couraça, uma espécie de armadura medieval.

Outro sonho: entro numa catedral gótica, talvez seja a Catedral de Milão. Passeio pela parte alta da igreja, pelas naves, mas no chão há muitos buracos, tudo é muito escuro e tenho medo de cair. Na entrada da catedral há uma máscara grotesca (tipo teatro grego). A máscara fala comigo, dizendo-me que eu tenho medo. Eu digo que não, mas depois me dou conta que tenho  realmente muito medo. 

 

Pensemos, por exemplo, numa experiência subjetiva comum; pensemos na emoção cheia de respeito reverencial; na devoção e paz claramente palpáveis que algumas pessoas sentem entrando nos lugares antigos, santuários ou áreas arqueológicas. Tais lugares, sagrados ou profanos que sejam, exercem sobre a psique dos visitantes fenômenos peculiares; a literatura espiritual de todas as épocas aborda e descreve tais fenômenos, embora muito frequentemente, eles sejam encarados como folclore popular ou sugestionamentos. Ervin Laszlo, eminente estudioso de física moderna, ocupando-se da teoria dos sistemas e da teoria geral da evolução, escreveu um belíssimo livro intitulado “Reconsagrar o cosmo”; no livro, Laszlo fala da relação existeste entre esses fatos e os mais modernos desenvolvimentos teóricos da física, de forma especial com “o formalismo holográfico quântico associado ao campo A”. Segundo Laszlo, todos estes elementos – o santuário, as pessoas que entram e saem dali, o altar e a própria estrutura do lugar – exalam “uma aura sob forma de informações holográficas que são absorvidas reciprocamente”. Portanto, ao longo do tempo, provavelmente séculos de reverência, orações e devoção, profundamente sentidas pelos fiéis, são absorvidos na própria estrutura do lugar, o qual, por sua vez, os reverte no espaço circunstante. O espaço é, portanto, “condicionado” pelas multidões e sentimentos de quem o frequentou, o viveu. Estudos recentes (William Tiller, Stanford) oferecem uma descrição (do ponto de vista “experimental”) do “condicionamento” de um espaço; segundo esses autores, isso significa que, determinadas propriedades de um objeto material, podem ser modificadas por meio de “pensamento coerente focado”, como ocorre na meditação. Este condicionamento sugere uma relação (ressonância interna) entre “quem originou a intenção” e “o objeto físico”, como no exemplo precedente do santuário.

Lembro-me de uma das minhas experiências emotivamente mais intensas: a primeira vez que visitei a Capela Sistina, aos 19 anos de idade. Além do notável  valor artístico, havia algo a mais que me tocava e se agitava perturbadoramente no ar; eu podia sentir que penetrava no mais íntimo e profundo da minha alma, me fazia expandir. Eu entrara em contato não somente com a emoção viva do artista, mas com algo que, diante daquilo que sei hoje, me faz pensar na força de todas as evocações, esperanças e orações que, ao longo dos séculos, haviam sido sentidas e pronunciadas ali.  Devoção, fé e orações, reverências e temores que impregnavam toda a atmosfera, lhe conferiam uma peculiar potência, fazendo do lugar (e somente agora consigo dizê-lo) uma porta de acesso ao Divino. O Sagrado batia à porta e pedia para sair do santuário obrigando-me a voltar o olhar cada vez mais para baixo … na direção do céu soterrado. 

De fato, quanto mais a obra de arte é célebre, conhecida por todos, mais absorve, por gerações, as projeções dos nossos desejos, aspirações, exaltações, tornando-se símbolo vivente e recipiente das divindades, as quais, pedindo para serem acolhidas, tendem a emergir do inconsciente coletivo. Diante do encanto e beleza de um lugar ou de uma obra que nos foi legada há séculos, não podemos nos eximir do contato com a outra realidade subjacente à nossa realidade ordinária, e muito menos de ouvir os seus pedidos; se a contatarmos e atendermos os seus pedidos, abriremos a porta às suas divindades, símbolos e arquétipos.

O inconsciente coletivo foi “poluído” por fatos traumáticos da história humana da mesma forma que o inconsciente individual foi poluído pelos traumas da nossa infância e adolescência. Podemos dizer que, após a emersão da potência arquetípica das obras de arte, a memória anímica-espiritul da humanidade reativa-se. No contato com a obra de arte, o percurso evolutivo (e terapêutico) individual, transcende, portanto, a esfera pessoal, fazendo-nos participantes da evolução coletiva e da “cura da consciência enquanto espécie” (Christopher Bache).

Eis aqui mais um trecho da experiência de Mario; ele (com as suas imaginações ativas) amplifica e vivifica a dimensão espacial do ambiente terapêutico:

 

No decorrer da sessão: fecho os olhos e digo em voz baixa, “e muito secretamente”: “quero fugir, quero viver sozinho, odeio a minha família, quero sentir paixão sexual por uma mulher… Sou dominado por alguém que, de dentro de mim, controla a minha vida”. “Quem?”, me pergunta Virginia, pedindo-me para descrever essa pessoa. Descrevo  um inquietante personagem que está exatamente na minha frente, mas com o qual, não obstante a analista me peça para fazê-lo, não consigo dialogar: um homem pelado, gordo, com a barriga flácida, que cai por cima do cinto muito apertado; o seu olhar é mau, cheio de ódio, impedindo qualquer mudança no seu modo de ser. Não se assemelha a ninguém que eu conheça e se chama “Amilcar” (nome que considero tão anacrônico!). Vejo a mim mesmo em posição de largada, como numa corrida, mas não posso me mexer porque a mão de Amilcar comprime a minha testa e me impede de dar a largada. Em seguida, meu filho está comigo e vive a mesma situação minha;  mas, neste caso, é como se eu fosse Amilcar e o meu filho fosse eu dominado por Amilcar. Esta visão me perturbou muito.

Após um longo silêncio, falo sobre a minha família de origem e a descrevo mais uma vez como uma família “cheia de segredos”; a casa da minha infância é um lugar onde ninguém diz a verdade ou aquilo que pensa. Vejo ao meu redor um buraco negro, lotado de tais segredos. Na imaginação ativa entro neste buraco sigiloso: tudo é penumbra, e, mais do que ver, eu sinto e ouço; ouço vozes veladas, uma voz de homem nebulosa; parece haver o barulho imperceptível de uma gota d’água que continua pingando, sempre, como pano de fundo. Estou numa cozinha; eu vejo tudo de uma altura bem baixa, como se eu estivesse dentro de um alçapão debaixo do piso”.  Interrompo a imaginação ativa, porque estou muito cansado, sem fôlego e tenho uma dor de cabeça muito forte.

Como a borboleta (e a alma), a psique é o conjunto de impulsos vitais recobertos, segundo James Hillman, por “uma arcaica consciência da vida, sabedoria e loucura…”, consciência que passa pela sua própria morte quando sai do casulo e se põe a voar. Na sua “percepção primitiva”, tal consciência não distingue claramente o interno do externo, e expressa a sua metamorfose por meio da recuperação dos descartes de pensamentos e emoções que flutuam no ambiente. Ela os entrega aos sintomas, ao sonho e à imaginação: “ecologia do profundo”, diria Hillman.

Para este autor, grandes construções (como um estádio ou uma catedral) nos constroem do mesmo modo que nós mesmos os construimos; a ética (ecologia) consiste na realização dos pedidos que pertençam aos lugares: à sua história, na honra e na lembrança dos seus mortos. Pedidos de acolhimento e escuta das mensagens que, dos antepassados, chegam aos vivos; vozes que do “além” ressoam  ainda nos nossos ouvidos, ecoando do passado, flui até o presente e segue na direção do futuro.

O artista austríaco Hundertwasser dedica-se com afinco à conquista da felicidade por meio da beleza e do poder da arte em oposição ao funcionalismo tecnológico globalizante. A sua visão do ser humano e da sociedade é absolutamente original, e, em 1958, Hundertwasser escrevia o “Manifesto sobre o abolorecer contra o racionalismo na arquitetura”. Em função do seu estudo e descrição das cinco peles do homem, Hundertwasser é conhecido como “o pintor das cinco peles”; a primeira delas é a membrana que delimita a nudez do homem e contém o eu; a segunda são as roupas; a terceira seria a casa do homem; a quarta, o ambiente e a identidade social; e, por fim, a quinta e última seriam o ambiente global, a ecologia e a humanidade.

Tanto para Hillman quanto para Hundertwasser, um lugar que não tem os seus traumas e humores, nem os seus movimentos místicos, inquietações e aflições, é carente de autenticidade e vida interior: é falso, exatamente como pode sê-lo um ser humano. Para Hillman, a alma não é algo que se possa explicar, mas, “pelo contrário, ela é o princípio e a chave para cada uma das explicações”. Quando um lugar perde a própria alma (a essência urbana ou paisagística, ou seja, o concentrado de tudo o que é mais significativo no lugar) podemos comparar tal padecimento e as suas causas ao sofrimento experimentado por uma pessoa que se encontra perdida.

Imaginação ativa de Mario:

 

Estou num beco sem saída, olho ao redor e vejo de soslaio uma porta… vou na direção dela e a abro. Vejo uma escada e começo a descê-la. A escada cada vez mais me leva para baixo. Tudo está muito escuro…Fico ali, paralisado, tenho medo de continuar. Virginia sugere que eu acenda um fósforo. Seguindo a sugestão, vejo, então, uma sala cheia de esqueletos e paredes úmidas que gotejam. Começo a chorar desolado.

Naquela mesma noite sonho com a cozinha da casa onde eu morava quando criança; o sol jamais entra na casa e ali se esconde “o segredo terrível”; é um segredo que paira por todos os recantos da casa e faz do lugar “o lugar do mal”. Não há comunicação entre as pessoas e todos escondem angústias; eu absorvo a amargura de todos. Houve um crime terrível ali, antes que eu chegasse. A sacada, a camiseta, há sol, mas não entra na casa… os seus raios chegam até mim como flechadas… todo o mal da casa.

 

No final da sessão, após o relato do sonho, Mario estava muito cansado, esgotado.

 

Sonho sucessivo: “subo uma escada com minha mulher, e, no final da escada, vejo um espelho. O espelho, porém, é fumê com sulcos de 45°; por causa da sua posição não consigo ver a minha imagem refletida nele.

Sonho com uma casa em reforma toda coberta pela rede de proteção; sobre ela está desenhada a casa da minha infância. Diferentemente da casa do desenho que eu pude reconher, a casa atrás do véu de proteção é uma casa anônima dos anos 60. Sinto muita tristeza.”

 

No diário onde relata a sua viagem à Itália, Stendhal fala de um repentino e misterioso mal-estar que o invadiu durante uma visita à Basílica de Santa Croce, em Florença; o mal-estar de Stendhal inspirou à Magherini o nome da famosa síndrome (exatamente: Síndrome de Stendhal): terror, pânico e vertigem que obrigaram o grande escritor a sair rapidamente da Basílica e começar a ler os versos dos Sepulcros de Foscolo. Naquele momento, a leitura foi para ele tranquilizante e terapêutica. 

Existe um paralelo entre a situação vivida por Mario, o meu analisando, e Sthendhal. Da mesma forma como as experiências de imaginação ativa de Mario emergiram da atmosfera impregnada de emoções, pensamentos e fantasmas que pairavam na sala da terapia, a intensidade do cenário artístico da Basílica de Santa Croce aguçou na mente de Stendhal um elemento estranho, removido, mas, provavelmente, desde sempre muito familiar. Podemos pensar num déjà-vu cheio de angústia, soterrado sob muitas camadas de armaduras defensivas; um déjà-vu que devia permanecer ali escondido para sempre, mas, ao contrário se manifesta repentinamente à consciência. A beleza e a sacralidade de um lugar conseguem entrar em ressonância e conter exatamente os aspectos mais extremos e conflitantes do nosso mundo interior, verdadeiras e próprias ilhas ou inteiros arquipélagos que flutuam à deriva no mar do inconsciente, longe da terra firme da nossa consciência.

 

“No início da sessão, a pedido da analista, comecei a respirar mais rapidamente e profundamente do que o habitual, por cerca de três minutos; vejo diante de mim uma mesa muito comprida, e, sobre ela há fotos dos lugares da minha vida. Começo a andar ao redor da mesa; vejo diante de mim uma grande janela medieval com vitrais; ela se abre para um grande vale”.

Sonho: Estou na minha velha casa; vejo uma escadaria que, do telhado, parece querer alcançar o céu; a escada continua a subir até as nuvens. “Eu percorro seus degraus, mas,  repentinamente, perco o equilíbrio, e um pedaço do corrimão se solta na minha mão”.

Estou na praça da minha cidade natal. Vejo meu pai que aparenta muito mais idade do que na realidade ele tem. Na praça, ao redor de uma fonte pouco adornada e bem simples, há um monumento de madeira muito bonito. Há também um bebedouro. Dada a intensidade deste sonho, eu o interpreto como uma “guinada”, um sinal de mudança. 

 

Através da liberação e limitação da experiência emocional podemos reconhecer, focar e tornar toleráveis os elementos arcaicos e caóticos do inconsciente, ainda não traduzidos em símbolos; tal ação facilita também que esses elementos, arcaicos e caóticos (os quais, no entanto, como pólos interiores de atração, permaneciam ativos, intensamente reativos e perturbadores), obtenham uma adequada inserção na vida psíquica. Desta forma, a energia até então enclausurada é ativada e liberada, uma fonte de prazer ou dor, que carrega o mesmo ato visivo da inclusão maciça de partes de si (projeções) o que torna a experiência contemplativa, sobretudo e radicalmente, participativa.

Estes densos focos emotivos carregados de energia são chamados por Grof de CEX ou “sistemas de experiência condensada”. Durante os estados não ordinários de consciência, ativados pela respiração holotrópica, emergem experiências ligadas aos vários níveis ou territórios do inconsciente: biográfico, perinatal e transpessoal; em muitos casos, a manifestação de tais experiências possui um tema comum de base, por exemplo, a Rejeição, o Conflito, a Solidão, o Desafio, o Abandono, o Amor etc. Trata-se, na verdade, de um agrupamento de vivências, lembranças e sensações pertencentes a vários períodos da vida da pessoa (inclusive o período intra-uterino) que se afinam graças a uma mesma tonalidade emotiva ou sensação física, como se tudo orbitasse em torno de um único grande tema arquetípico. Num certo sentido, o conceito de sistemas COEX, como “princípios ordenadores gerais da psique humana”, faz pensar em Jung e nas suas reflexões sobre os “complexos psicológicos”.  

Transcrevo em seguida a quarta experiência holotrópica de Mario, escrita de próprio punho:

 

Virginia acabou de me desejar boa viagem; o meu “sitter” (N.d.A: o assistente que o acompanha e protege durante a viagem) está “a postos” e eu, como sempre, me sinto muito nervoso.

Estou deitado com as pernas levemente abertas; as palmas das mãos estão viradas para cima e os olhos vendados… estou só e eis que a música se difunde na sala: começa a minha viagem…

O corpo vibra levemente, e, como nas outras ocasiões, começo a sentir um formigamento nas mãos, e depois me deparo com a voragem negra que, numa descida sem fim, me leva cada vez mais para baixo.

De repente, me encontro num espaço aberto, sem limites, num declive montanhoso com dois enormes abismos à direita e à esquerda; o caminho é estreitíssimo e tenho medo de cair. No outro lado do declive, ao final desta senda, vejo uma silhueta feminina; não a reconheço de imediato, mas intuo que é ela – o meu antigo amor.

Para atrair a minha atenção, ela gesticula na minha direção, convidando-me a ir ter com ela; em seguida, sorri, levanta o vestido e me mostra o seu corpo nu, e depois se recompõe. Começo a caminhar, mas tenho medo, então, resolvo descer engatinhando; de joelhos, com as mãos no chão, tento descer as encostas da montanha, mas não consigo andar muito; caminho um pouco e depois paro. O medo é demasiadamente forte, escorrego na direção do precipício à direita e depois na direção daquele à esquerda. Recuo e me levanto.

Noto que, ao longo das encostas da montanha, há milhares de insetos pretos que se movem. Eles são terrivelmente ameaçadores, querem me impedir de chegar até ela; talvez me devorem ou me façam despencar no abismo … tenho medo, dou um passo para trás. Talvez seja melhor correr.

No início do caminho há uma pequena espaço de terra batida; como o lugar é plano eu me demoro um pouco ali, para tomar fôlego. Estou cansado, mas gostaria de chegar até ela e abraçá-la.

Tento me levantar, mas não é possível; por mais que eu me esforce só consigo levantar o peito. Eu continuo deitado no chão e as pernas me pesam, estão doloridas. Então, alguém me ajuda (Maurizio? Virginia?) e me levanto novamente; tenho medo de cair mais uma vez… procuro achar um modo de chegar até ela.

Estou com sede… o meu “sitter” me dá de beber; a água me reanima; assim, me levanto e vou ao banheiro… eu me sinto confuso, tenho vertigens, o meu equilíbrio é instável. Depois, volto a me deitar e estou novamente sozinho, mas não tenho medo e procuro uma solução. Estou mais uma vez nas encostas da montanha, olho à minha frente e ela não está mais lá… acho que não a verei nunca mais. E, no entanto, preciso passar para o outro lado… o que fazer? Eis a solução! Vou tentar voar! Lentamente, como se fossem asas, eu começo a mover os meus braços para cima e para baixo. Na verdade, não tenho  muitas esperanças que conseguirei voar, mas, incrivelmente, ESTOU VOANDO! Olho para baixo; enxergo a montanha, a trilha estreita e as encostas acidentadas, agora livres dos insetos; há inda vastas extensões de campos a perder de vista: é um espetáculo lindo. O dia chega ao fim e o sol está se pondo, é quase noite. Estou exausto, quero descansar.

Estou de novo deitado e sei que me encontro na sala, no Trastevere, em Roma; estou ali deitado no meu colchãozinho. Fico surpreso ao perceber que, numa grande sintonia, eu me fundo com tudo o que está ao meu redor; toco o lençol e SOU o lençol… SOU  o travesseiro… SOU o colchãozinho… SOU o chão… SOU a parede… SOU a música, o ar… SOU O MUNDO.

Invadido por uma grande serenidade, sorrio. Jamais tinha ousado tanto…Tenho vontade de abraçar Virgina… Quero ir para o Brasil. Agradeço o meu cultíssimo e fascinante “sitter” (era a sua primeira experiência!).

 

Por meio de um processo criativo, dentro do temenos terapêutico, a elaboração do analisando é, num certo sentido, o inverso daquela levada a cabo pelo escultor da antiga Grécia, o qual imprimia na dura pedra um simulacro da Vida que pulsava dentro di si. O analisando consegue colher do etéreo espaço circunstante, os fragmentos de luz que iluminarão a sua secreta vida interior. Segundo Schiller, onde existe humanidade deve existir beleza.  Beleza no sentido de tudo aquilo que pode ser abrangido pelo sentido mais amplo desta palavra; não consistindo na exclusão de algumas realidades, mas sim na absoluta inclusão de todas as realidades, a beleza não é, portanto, limitação, mas sim infinitude. Como muitas obras de arte, o espaço terapêutico (com os seus fantasmas) se impõe à percepção muito além dos nossos limites sensoriais, enleva e  vivifica  o mundo interior, abrindo as portas ao invisível, ao incomum e ao impensável.

 

Na sessão seguinte à experiência holotrópica, falo do meu desejo de ir até a praia e escancarar uma daquelas casas que permanecem fechadas durante o inverno; com certeza se a abrir bem e deixar entrar a luz do sol, o cheiro de mofo que impregna o seu interior, desaparecerá. Virginia me encoraja a fazê-lo “realmente e ritualmente”. Repentinamente caio no choro e digo: “há algo mais profundo, mais distante no tempo. Ainda há algo que deixei trancado dentro de mim, desde quando eu era criança”.

 

                A grande arte, que Freud definia “arte visionária”, é aquela que transcende a esfera pessoal, que consegue desafiar desmedidamente os nossos limites, devolvendo a cada palavra e gesto a força simbólica perdida. Diversamente, a “pequena arte”, filha do ego e da “separação”, é uma arte menor, sendo frequentemente contaminada por sofrimentos ligados às situações traumáticas pessoais que, num certo sentido, obstruem a via e aprisionam o seu criador dentro dos limites da “primeira” pele, como diria Hundertwasser. 

O artista, assim como o  Terapeuta, é aquele que sabe reverter a própria inquietação em busca da verdade, alentando – ele próprio – autênticas exigências espirituais. Somente por meio de uma sofrida e profunda metamorfose interior, Artista  e Terapeuta conseguem transformar a si próprios na “abertura”, convertendo-se, assim, na passagem que intermedia a relação com o “além”. Desta forma, ambos representam uma porta aberta através da qual o espírito, atemporal, se manifesta em toda a sua potência propulsiva. Essa “entrada” pode ser captada na arte, na terapia, em cada grande obra, da mesma forma que se encontra no interior de um autêntico espaço  terapêutico. 

“Todas as coisas provêm da arte e a ela retornarão”, afirma  Pierre Restany quando se refere ao pintor austríaco Hundertwasser com a sua proposta de resistir à desertificação e ao encalço implacável da tecnologia com o mais simples e valioso dos antídotos: “a infinita felicidade e harmonia da beleza”. 

             Psicologicamente, o tempo da arte e o tempo da Terapia é o tempo necessário para que o ego limitado se dissipe no ar e se expanda infinitamente; é o tempo no qual as máscaras caem e se atenuam as características estritamente pessoais. Desta forma, surge uma nova consciência de si mesmo e do mundo, e, num processo evolutivo-criativo sem fim, continua o trabalho de modelagem e acabamento da própria humanidade. 

Para a cultura japonesa, o estado de transe não é um estado de “unidade com o  divino”, mas sim um trâmite de “elevação”; o transe seria um estado por meio do qual o homem aprende conjuntamente a ser “simplesmente ele mesmo” e, simultaneamente, “privo de si”, o que o leva a agir de modo “unívoco e infalível”. Em termos transpessoais isso significa transpor os próprios confins egóicos, em função da totalidade. Este estado de virgindade psicológica, que na tradição religiosa significa “agir segundo a vontade de Deus”, é uma ação “pura” (se pensarmos a pureza como aquilo que não é contaminado pelo desejo pessoal).

No interior do temenos analítico, terapeuta e analisando mergulham na direção da  “água que escorre”; entram num estado de harmonia consigo mesmo e com o ambiente que, segundo a prática zen, leva “à ação perfeita”. No interior do “setting”, as palavras pronunciadas e as ações realizadas se tornam um prolongamento do lugar o qual, para o terapeuta e analisando, passa a ser o mundo inteiro. Desta forma, exatamente como ocorre para alguns artistas quando afirmam  ser somente “um trâmite” da Criação, e não os verdadeiros criadores da obra, o mesmo acontece também para o terapeuta, o qual tem a sensação de não ter feito coisa alguma e que, na verdade, nada deva ser feito. Tal sensação é filha da inspiração para a qual, diante da porta aberta que aponta para o infinito, nem intenção ou esforço tem vez, pois as coisas, simplesmente, acontecem.

Virginia Salles