Mercadores de corpos, dissipadores de alma

 

di Virginia Salles, Roma

(Estratto)

 

 E se temos o desejo angustioso de fazer durar aquele ser destinado a perecer, temos igualmente a obsessão por uma totalidade originária, que nos una ao ser absoluto. A saudade da qual falo… é a saudade que comanda em cada homem as três formas de erotismo: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o erotismo sagrado.

 

                                                                                                                           (Georges Bataille)

 É lá, onde termina a solidão que começa o mercado, e onde começa o mercado, começa também o falatório dos grandes comediantes e o zumbido das moscas venenosas.

                                                                                                                (Nietzsche)

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Carla 

 

Carla tem 43 anos e sofre de depressão profunda após três anos de prostituição. É divorciada e tem um trabalho regular. Não é bonita, segundo aquilo que me ela me conta, os homens a consideram uma deusa do sexo. Graças ao dinheiro ganho desta forma, ela pôde fazer algumas viagens e comprar tudo o que os filhos desejavam o que, como me dizia, lhe er motivo de “grande satisfação”. A primeira vez que se prostituiu lhe parecera um sonho que pudesse ganhar 300 euros por somente meia hora de trabalho, e pela primeira vez na sua vida se sentiu “valendo tanto”! Depois disso, passou lentamente a prestações cada vez mais especializadas até chegar ao patamar das orgias e, por fim, das práticas sadomasoquistas. Ela se mostra arrasada, chora ininterruptamente com a caixa de lenços no colo.

O aspecto mais dolorido de toda essa situção, que “a perfurou por dentro” criando “uma imensa cratera vazia”, é o modo com o qual os homens se dirigem a ela, o modo de tratá-la como se fosse “uma coisa”. Uma amiga lhe propôs uma sociedade, “um negócio” num ramo bem específico: o sadomasoquismo; tudo seria feito com a devida publicidade e site na internet; a amiga lhe acena com a possibilidade de um “rio de dinheiro”. Desta vez, porém, ela “não cai na armadilha”, pelo contrário, quer abandonar aquela vida, não aguenta mais.

Carla conseguiu comparecer a mais duas sessões, e as inundou de lágrimas. Um dia me chamou para cancelar o nosso encontro, me disse que nos verímaos em breve. Desde então não tive mais notícias suas.

O fato que mais me impressiona no caso de Carla é que o dinheiro – algo absolutamente impessoal, distante anos luz da unicidade e do conteúdo íntimo de uma pessoa – possa ter determinado o seu valor, possa ter servido a fazê-la se sentir “preciosa”. Mas esta definição de valor, que enquanto parecia valorizar Carla, na verdade prescindia dela própria, a “perfurava por dentro” criando “uma imensa cratera…”

 

Quando estou com as prostitutas me sinto à vontade para dizer ou fazer qualquer coisa; posso ofender sem ser ofendido, não me retribuirão com a mesma moeda; não sinto vergonha e culpa. Elas são somente instrumentos do meu prazer, para usar e descartar. Diferentemente das outras mulheres, quanto mais rápido eu acabar o sexo, mais as prostitutas ficam felizes. E eu o faço como comer num fast-food. Consumo rapidamente, tenho que respeitar a vez do próximo cliente. A rotatividade do sexo faturado tem o seus ritmos…”

 

Esta confusão, e num certo sentido “subversão” de definições e valores, nos faz refletir sobre a verdadeira natureza da identidade de uma pessoa e “o que” a defina enquanto tal: onde está localizado o espelho? No mundo atual, no qual o valor de todas as coisas, ou de quase todas, pode ser quantificado em dinheiro, podemos observar, perplexos, aquilo que Georg Simmel, no seu livro O dinheiro na cultura moderna, define “a abnorme subverção teleológico” dos meios, os quais adquirem muito mais valor do que os fins. Da mesma forma, é possível observar o consequente predomínio do objeto em detrimento do sujeito, do “fora” que se sobrepõe ao “dentro” num processo que caminha lado a lado com o crescente aumento das nossas necessidades e consumos. A partir do momento em que as coisas localizadas fora do nosso cerne, fora da nossa mais íntima essência, se tornam para nós a própria fonte de identidade e gratificação, quando se apropriam do nosso centro e de nós mesmos na nossa totalidade, a alma expulsa e aviltada é incapaz de reencontrar a sua morada. A nossa fonte de nutrimento interior, “perfurada por dentro”, se seca e cria, parafraseando Carla, “uma imensa cratera”.

Assim sendo, perpetua-se infinitamente a diferença psicológica que existe, às vezes de forma grandiosa, entre o interno e o externo, entre a planície, a superfície dos fatos e a nossa interioridade, acelerando a inevitável metamorfose que nos transforma de seres humanos em autômatos, em cascas ocas. É possível observar que há um estranhamento cada vez maior entre a nossa realidade subjetiva e a cultura objetiva, sendo responsabilidade desta última o profundo sentimento de desconfiança e derrota que todos nós conhecemos e a percepção de um perigo incumbente: o perigo de sermos esvaziados da própria essência, privados do cerne, nivelados e consumidos pelo mesmo mecanismo que nos oferece as mais sólidas seguranças e as mais gloriosas conquistas.

Quando uma mulher alimenta no seu íntimo a convicção de que ela não tem valor próprio, sendo ínfima ou praticamente inexistente a sua auto-estima, ela é levada a pensar que o corpo seja a única coisa desejável e doável de si, a única coisa digna de atenção. Tanto a identidade de Carla quanto o seu valor eram definidos pela remuneração monetária à “prestação sexual” que o seu corpo – utilizado como instrumento de produção e degradado à condição de puro meio – oferecia. Esta prestação exige de Carla a total alienação de si mesma e do seu próprio sentir.  Desta forma, não é relevante quem ou o que defina o valor de Carla, não importa nem mesmo se a sua alma será mortificata e a sua fonte interior se secará; aquilo que conta é que, obedecendo aos parâmetros do dinheiro, a avaliação seja alta aos seus olhos e, portanto, lisonjeira. 

 Tal condição humana é muito parecida com aquela de um hamster que se exercita num gira gira sem fim; outras imagens poderiam nos fazer pensar a tal condição: saciar a sede com água do mar, perseguir uma meta que leva ao encalço de outra meta, agarrar-se a algo que o implacável transcorrer do tempo torna impalpável como a areia que se deixa escapar os dedos… O “pecado”, no sentido grego da palavra, alude a uma situação específica do jogo de tiro ao alvo com arco e flecha: se refere às situações nas quais o arqueiro errava o golpe e não conseguia acertar o alvo, este erro era o pecado. No caso de Carla, o pecado é desperdiçar a própria íntima essência com as coisas do mundo; tal desperdício lentamente se transforma num estrangulamento, numa corda sufocante ao redor do pescoço.

Simmel nos fala de uma analogia fatal que existe entre a essência da prostituição (que tira de si qualquer envolvimento pessoal no relacionamento entre os sexos) e a essência do dinheiro: “o único equivalente para todos os vários objetos que expressa as diferenças qualitativas de cada coisa em termos quantitativos”. De fato, ninguém se pergunta “o que” realmente “vale” o dinheiro, a sua qualidade se relaciona exclusivamente à sua quantidade assim como nunca se pergunta a uma prostituta “quem é você?” Este é o aspecto mais trágico da prostituição: um corpo reduzido a puro meio, carne reduzida a mercadoria, se torna o equivalente a qualquer outro corpo.  

O antiguíssimo ofício de prostituta era já difundido entre os povos primitivos, numa época na qual o indivíduo não era ainda claramente diferenciado da coletividade. Com a sucessiva evolução da consciência, tendendo a uma diferenciação cada vez maior, a crescente tendência-pulsão na direção da individuação e a introdução do sistema monetário, fizeram com que este ofício adquirisse um significado psicológico mais profundo e complexo.

Segundo a filosofia tradicional, as categorias do bem e do mal não têm uma base objetiva no mundo, são conceitos puramente subjetivos. Contudo, não é o que nos chega  através das novas ciências de fronteira: essa nova visão nos oferece um cosmo novamente espiritualizado; um exemplo disso é a análise feita por Ervin Laszlo, na qual o bem e o mal reemergem como categorias ético-morais e se hipotiza uma base objetiva para ambos: “Bem” seria aquilo que dá energia ao processo evolutivo e  “maligno” é tudo aquilo que o reprime e o sufoca. Cada uma das nossas escolhas teria, portanto uma dimensão ética e moral, já que pode promover ou obstaculizar a evolução individual e coletiva. Escreve Simmel, “somente o que  é individual é nobre; o que corresponde a muitas coisas, o que for igual à maioria, corresponde ao mais baixo entre elas e reduz, por isso, também o mais alto para o nível do mais baixo”. O dinheiro e a prostituição são “vulgares” e, num certo sentido, “malignos”, enquanto continuam sendo os instrumentos niveladores mais desumanos. Sendo assim, a intrínseca negação da individualidade praticada pelo tráfico econômico e pelo tráfico do corpo, desconfirma qualquer possibilidade de distinção e subverte a natural pulsão evolutiva em direção oposta à sua potencial capacidade de autotransformação, reconduzindo o ser humano a uma condição de menor diferenciação, a um estágio precedente e já superado da escala evolutiva. 

A nossa sutil sensibilidade para as características mais específicas e individuais das coisas, afirma Simmel, passa a ser ofuscada, sufocada, pela ação homologante do tráfico econômico e não reage mais às peculiaridades das coisas com uma adequada gradatividade ou nuance, ao invés disso vê todas como “semelhantes”, desbotadas, desfiguradas… Quanto mais coisas são trocadas e circunscritas desta form no interior do sistema econômico, mais elas serão despojadas do próprio calor e da própria unicidade. O dinheiro não deve ser colocado em relação com o que é peculiar e excepcional na experiência e nas interações humanas, com todas aquelas situações nas quais é necessário tocar a essência íntima da pessoa.

No mundo regulamentado pela troca monetária tudo aquilo que é vivo bem como o seu  significado parecem escapar continuamente das mãos, esvaziados drasticamente do próprio cerne, do próprio valor intrínseco e especificidade. O homem moderno, cada vez mais vítima de um lento e inexorável processo de alienação que invade todo o seu ser parece vagar sem destino sem um ponto de apoio, uma bússola interior que indique “o centro”, um ponto de referência definido e estável. Ele se tornou presa da devastadora saudade por algo que ainda não “é”; incapaz de capturar a essência e o significado do momento presente, afunda cada vez mais no tormento, na dúvida e no desespero.

Sonia 

 

Sonia é uma jovem estrangeira de 26 anos: alta, loira, diáfana, corpo de “garota Pin-up”, uma beleza etérea, angelical. Olhando-a, a última coisa que eu imaginaria é que a sua profissão fosse a prostituição. No seu país natal pertence a uma família de classe média; o pai é formado, profissional liberal, não lhe deixava faltar nada. Mas ela queria sair de casa, queria ser livre, dona do próprio nariz, não precisar pedir nada a ninguém. “Prostituir-me”, afirma Sonia, “significa afirmar a minha liberdade”. Ela não é ambiciosa e trabalha somente o necessário para ganhar o seu sustento e financiar as suas viagens, a cada seis meses para a Índia onde medita num ashram.

Sonia não faz terapia regularmente, chegou a participar de um grupo de respiração holotrópica antes da sua ida à Índia. A sua experiência foi muito intensa com conteúdos que faziam alusões a certas dinâmicas relacionais passadas e atuais e alguns elementos perinatais (associados ao seu nascimento).

Antes de qualquer outra consideração o que causa perplexidade é a contradição intrínseca no percurso de Sonia a partir do seu próprio conceito de liberdade: liberdade do que? Para os budistas e taoístas “a maior graça na vida” é a liberdade de ser espontâneo. “Ser simplesmente nós mesmos” é uma conquista que provém naturalmente do ser em unidade com o Tão que é a via da água que escorre. Para Lao-tzu o princípio do Tão é aquilo que acontece por si só.

  O conceito de liberdade de Sonia passa através de um destino desviado e um corpo traído. Eros, a força vital em nós, é roubado da sua graça e da sua alegria e o corpo é transformado num instrumento de trabalho, obrigado a produzir: puro meio para obter outro meio, o dinheiro, que por sua vez è utilizado para obter uma experiência espiritual, que é a experiência “erótica” por excelência!

A busca espiritual de Sonia, as suas contínuas viagens à Índia (financiadas graças aos seus honorários de prostituta) parecem paradoxais e me fazem pensar na espiritualidade enquanto mercadoria; a transcendência que também pode ser adquirida através do dinheiro. No caso de Sonia, dinheiro ganho através de um atentato violento contra si mesma, através de um corpo separado, o destino desviado, a Verdade negada. Atentado, este que – como uma espada – ceifa as próprias raízes da terra, o corpo da alma, acentua e exaspera, levando às últimas conseqüências a síndrome do nosso tempo: a desarmonia entre espírito e matéria, entre interior e exterior que, uma vez amplificada, se transforma em cisão. Tudo é posto de cabeça para baixo, os espaços da alma são subvertidos. É como se tivesse ocorrido uma série de inversões: o centro deu lugar à periferia, a profundidade à planície e a alma perdida e desorientada é incapaz de reencontrar a sua morada. Em casos assim, o percurso natural dos fatos é interrompido e passa a ser canalizado artificiosamente para a obtenção de um meio o qual, por sua vez, é empregado na aquisição de outros meios… e assim por diante, infinitamente. Neste caso emblemático, dinheiro, sexo e espiritualidade se fundem e se confundem como numa poção envenenada, por poluição ou maldição.

Dinheiro e sexo sempre estiveram intimamente ligados, mas a sensualidade na sua expressão mais elevada é espiritualidade:

 

“…é a realidade do mais profundo e completo orgasmo sexual, da grande experiência  religiosa e do meravilhar-se com a primavera e o nascimento. É a realidade que resvala os mistérios da vida…” .

 

Eros está na raiz de toda criação e beleza, de tudo aquilo que é divino: o samadhi é a expressão suprema da energia sexual. Na literatua espiritual do Oriente, no Tantra, por exemplo, o divino é considerado algo de extremamente erótico e a sexualidade é reabilitada no interior de uma dimensão sagrada, analogamente a quanto já ocorria junto a muitas antigas civilizações. A prática do Tantra, cuja filosofia exprime um assenso incondicionado à vida em todas as suas manifestações, tem como princípio fundamental a existência de algo muito mais elevado na natureza humana, cuja plena realização é beatitude.

Como sublinha Simmel, existe uma semelhança psicológica entre a idéia de Deus e a representação do dinheiro na nossa cultura. Segundo o autor, o pensamento de Deus encontra a sua essência mais profunda no fato que todas as diversidades e contradições do mundo encontram no dinheiro a própria harmonia e conciliação, a unidade de todos os contrastes (coincidentia oppositorum). Desta unidade e dos seus símbolos derivam a paz, a segurança, a riqueza. Estes são os mesmos sentimentos de certeza e tranquilidade que levam a procurar o dinheiro cuja característica principal é se transformar, cada vez mais, na expressão e no equivalente de todos os valores; essa transformação o conduz a um nível de abstração tão grande que o dinheiro é capaz de transcender a multiplicidade dos objetos e se tornar, ele próprio, “o centro”. 

A afinidade psicológica que existe entre a representação do divino e as sensações suscitadas pela posse do dinheiro, assim como a confiança na sua onipotência enquanto princípio supremo que atende todas as necessidades e realiza os nossos sonhos, faz do Dinheiro o deus do nosso tempo. Um Deus sempre presente nos nossos pensamentos que acaba por se transformar no fim absoluto e o estímulo mais potente à atividade: a nossa máxima aspiração… a roda perpétua da vida.

Assim, segundo Simmel, o desejo ou a falta de dinheiro se tornam o estado permanente da alma típica da economia monetária. Por outro lado, o amor pelas coisas que podem ser compradas com o dinheiro, lentamente se transforma no esforço perpétuo para controlar os fatos, para ter segurança contra a morte; o amor se transforma na fuga das pessoas e naquilo que as “separa”: Eros ao contrário, isto é, a sua perversão. O dinheiro se torna então um substituto para algo que não pertence ao mundo material, um substituto para o relacionamento: um pseudocortejar, uma falsa história de amor. E, no caso de Sonia, uma falsa liberdade. 

Lembro-me de um episódio relacionado ao marido de uma minha analisanda, o qual, incapaz de amar, tendia a acumular muito dinheiro. Era apaixonado por carros caros e gastava muito dinheiro em motores. Mas, uma vez adquirido o carro, não conseguia usá-lo porque, sendo um objeto muito precioso, não quia correr o risco de estragá-lo. O carro ficava, portanto, bem coberto na garagem onde o nosso amigo ia visitá-lo todos os dias; quando, porém, devia sair de casa, se servia de um carro velho e sem glamour, pois asssim, caso acontecesse algo, o prejuízo não seria elevado. Quando a habitação do casal foi reformada, também naquela ocasião se gastou muito dinheiro, mas a nova casa se transformou num local invisível: marido e mulher não podiam se sentar no sofá porque o estragariam; comiam na casa dos pais para não sujar a cozinha; a banheira hidromassagem não devia, de modo algum, ser utilizada, e nem mesmo os tapetes podiam ser pisados. Por fim, as proibições se estenderam também à mulher, a minha analisanda. Desta forma, a convivência naquela casa se tornara um verdadeiro inferno e o casal era obrigado a se privar de todas as comodidades conquistadas a caro preço. Como consequência de tão grande desconforto eles acabaram se mudando para a casa dos pais. Depois de algum tempo, o casal, nutrido de vaziez e aridez, se separou; a separação foi causada também por ulteriores problemas de convívio com os sogros, e pelo fato que a mulher devia ir todos os dias até a casa reformada para regar as plantas, limpar e cuidar da habitação que parecia ter adquirido vida própria, tornandos-se, naquela altura dos acontecimentos, um verdadeiro templo. 

Em casos extremos como este, os objetos de consumo – transformados em valor absoluto, em verdadeira divinidade – se voltam contra o casal; manifestando toda a valência mortal do Eros corrompido, os objetos destruíram a relação que existia entre o casal, a qual era o único elemento humano num cenário de extrema aridez e desolação.

O Eros, a energia sexual que flui em nós é a enegia potencial da nossa evolução humana e espiritual, energia valiosa e elemento transformador por excelência. Sem dúvida alguma, um genuíno contato amoroso, o enamoramento, é dotado de grandíssimo potencial transformador para o indivíduo e para toda a coletividade. Toda vez que se impede a Eros de seguir o seu curso, o fluir na direção de outro ser humano, se envenena dentro de nós a própria nascente da vida, a semente do nosso potencial humano que, uma vez descortinada, deveria nos conduzir aos cumes mais altos da nossa consciência e evolução.

Para Wilhelm Reich, a Verdade, enquanto espressão do contato mais profundo que o homem pode ter consigo próprio, está inextricavelmente ligada ao corpo, ao fluir da Vida em nós e à sua percepção. É o pleno, imediato contato entre o vivente que percebe e a vida que é percebida; não é, portanto, como estamos habituados a acreditar, um ideal ético. Segundo Reich, ele se transformou nisso quando a verdade se extinguiu com a perda do paraíso, uma perda que representa o malogro deste contato e da sua livre expressão.

A supervalorização da racionalidade e do intelecto e a rigidez dos limites do ego, típicos do nosso atual nível de consciência coletiva, conduziram à negação da verdade do corpo, das emoções encarnadas. Para o ego, o corpo é algo que deve ser “domesticado” e colocado ao próprio serviço através do controle das suas funções. Mas, quando este controle é exasperado e passa a considerar o corpo uma verdadeira máquina de produção – como no caso extremo da prostituição – perdemos de vista a única verdade que nos pode salvar, a única bússola com a qual podemos contar nas imprevisíveis tempestades da vida.

A tal propósito são emblemáticas as palavras de Jung: 

 

“Se estamos ainda presos à antiga idéia de uma antítese entre mente e matéria, nos encontramos de frente a uma intolerável contradição que pode nos alienar de nós mesmos. Devemos nos reconciliarmos com a misteriosa verdade que o espírito é o corpo vivente visto do interno, e o corpo é a manifestação exterior do espírito vivente – e corpo e espírito são na realidade um único todo; só assim poderemos entender porque a tentativa de transcender o atual nível de consciência deve atribuir ao corpo o seu devido valor.”

 

 A redução do corpo à mercadoria poderia ser comparada à “suprema perversão” da qual fala Goethe: uma escolha de morte em plena vida. Uma escolha na qual o corpo, obrigado a se calar, se aprisiona, torna-se triste e silencioso; um corpo mudo ao qual se nega a expressão autêntica. O corpo pertence à natureza, é onde nascem as sensações e o desejo, dentro do qual um coração vivo pulsa de coragem, fogo e paixão; a razão não é capaz de compreendê-lo ou controlá-lo. Segundo Reich, inevitavelmente sobrevém “o assassinato de Cristo” toda vez que a nossa íntima verdade é negada e impede-se o contato com a totalidade do ser; assassínio que se cumpre toda vez que o homem renuncia ao paraíso, isto é, ao sentimento e a possibilidade de Deus no próprio corpo. 

 

 “É aqui, neste corpo, que correm os rios sagrados. Aqui coexistem o sol e a lua bem como todas as metas de pelegrinagem. Nunca vi um templo tão luminoso como o meu corpo.”

                                                                                (Saraha, maestro tantra)

Os exuberantes nomes dados aos órgãos sexuais masculinos e femininos na China Antiga, tão diferentes dos nossos correspondentes “vulgares”, são indicativos  de quanto a antiga cultura chinesa conferisse honra, beleza e sacralidade à sexualidade. O órgão sexual masculino era chamado de: araldo, pássaro carmíneo, flauta di jade, cetro di jade, arma do amor, cume positivo, come do yang etc… Os nomes dados à genitália feminina eram ainda mais preciosos: anêmona do amor, caverna, lingua de pintinho (clitóris), fenda vermelha, concha, porta da vida, crisol feminino, entrada dourado, gruta, coração de peônia, nodo íntimo, corrente interna, caverna de jade, jóia incrustada, gruta do amor, caverna misteriosa, gruta do prazer, crisol precioso, pedra preciosa, pérola vermelha, caverna secreta, cordas da lira (grandes lábios), morada do prazer.

No seu livro O Assassinato de Cristo Reich analisa a vida de Cristo e o mistério da paixão e morte, mistério que, segundo o autor, sendo símbolo vivente da “ressurreição da carne”, desperta emotivamente em cada um de nós o renascimento do “Verdadeiro” e originário amor físico: o fluir do Amor e da Vida nas nossas articulações e tecidos, no sangue que escorre e no ar que respiramos. 

Durante os nossos encontros, Sonia normalmente evitava aprofundar-se no polêmico mercenarismo da sua sexualidade; ela me dizia que, no futuro, desejava fazer uma análise profunda desse assunto, mas no atual momento não se sentia preparada para isso. Embora eu não tenha muita certeza até que ponto ela realmente conhecesse a verdadeira dimensão do problema, ela se dava conta que trazia em si cicatrizes profundas provocadas pela sua parodoxal ideia de “liberdade” (quantas coisas absurdas são justificadas em nome da liberdade!). No seu rosto pairava uma sombra e a expressão era de cansaço, talvez sinais indeléveis da agonia que perpassava o seu corpo, mas ela preferia não falar disso. É a agonia do assassinato da vida dentro de si, teria dito Reich, o veneno e a espada: “uma experiência que aparenta e une cada homem a Cristo”. Não sei o quanto Sonia soubesse que atravessava e revivia cotidianamente um novo Getsêmani e um novo Gólgota.

Ângela

 

Ângela tem 28 anos e não é uma prostituta no sentido que damos habitualmente a tal  palavra, mas psicologicamente está muito próxima desta condição. Sua mãe fez carreira no ramo e, sucessivamente, se tornou uma mulher de negócios no business da prostituição; quando Ângela tinha 14 anos de idade, a mãe lhe entregou a chave de uma de suas “casas” dizendo-lhe que, a partir daquele momento, não a sustentaria mais; Ângela agora tocaria o seu  próprio negócio.

Procurando seguir o caminho que a mãe lhe traçara, Ângela se esforçou muito e enfrentou enormes dificuldades, mas os resultados foram escassos e frustrantes. A orientação sexual de Ângela tornava a situação ainda mais difícil, pois ela era decisivamente e exclusivamente homossexual.

Entre uma briga e outra com a mãe, terríveis episódios de chantagem e prevaricações, Ângela chegou lentamente ao único acordo que lhe parecia possível: tornou-se  amante de um homem rico e casado e embora as suas exigências sexuais fossem bastante extravagantes, ele sustentava Ângela generosamente e lhe dera de presente um cartão de crédito “ilimitado”. Quando deu início à terapia, Ângela vivia este relacionamento já há alguns anos.

A sua voz era baixa e fraca, o olhar era apagado, e somente após algumas sessões conseguiu me confidenciar a sua real situação. Ela temia – como temera durante toda a vida – alguma denúncia ou represália em função dos negócios da mãe. Ângela é uma mulher muito bonita, esbelta com algumas graciosas sardas no rosto e cabelos crespos. Não me olhava nos olhos, mantinha-os abaixados para evitar o meu olhar. Eu, porém, podia ver nos seus olhos muito medo, abatimento, desespero.

O percurso terapêutico de Ângela é muito profundo e articulado. O relacionamento com Francesco (o amante) é complexo e ambivalente: ele afirma ser perdidamente apaixonado por Ângela, podendo deixar a mulher para desposá-la no momento que ela quiser. Ângela não o ama, mas sente por ele uma profunda gratidão e o considera “o porto seguro”, a única referência da sua vida. Graças ao seu apoio moral e econômico, Ângela havia podido retomar os estudos e, agora, estava quase se formando. Projetavam abrir uma boate em sociedade o que a tornaria economicamente independente, e isso, ao ver de Francesco, era prova do amor verdadeiro que ele sentia por ela. 

Já que Ângela era homossexual, relacionar-se sexualmente com Francesco era para ela uma verdadeira tortura. Embora não renunciasse às suas várias relações homosexuais, a jovem devia vivê-las na clandestinidade, para evitar as cenas de ciúmes de Francesco. Francesco não via de bons olhos o fato que Ângela fizesse terapia, e assim, tentando “boicotar” tal iniciativa ele me procurou em várias ocasiões, pois queria participar das sessões; todas as vezes que ele me procurava eu referia o episódio a Ângela.

Um aspecto importante do percurso terapêutico de Ângela foi o despertamento da sua espiritualidade, ou melhor, de um impulso na direção da transcendência; foi um lento despertar que, inicialmente, se expressava através dos sonhos para, sucessivamente, graças à sua primeira experiência holotrópica, fortalecer-se. Durante a experiência holotrópica, emergiram alguns elementos transpessoais em conexão com experiências biográficas que se associavam a imagens mitológicas pertencentes à sua cultura de origem, aos ritos e ao culto de Oxum, uma divindade feminina. Ângela é estrangeira, e no seu país de origem, há o culto de uma religião animista cujo panteão de divindades faz referência às forças da natureza.

Este e outros aspectos do percurso de Ângela não serão aprofundados aqui, nos deteremos em alguns episódios relacionados ao tema de nosso interesse. Semearei alguns sonhos ao longo do relato sem adentrá-los posteriormente: um pano de fundo de imagens acostadas aos momentos descritos.

 

Está no seu país de origem, no seu bairro, um bairro muito pobre, num carro Mercedes Benz. Chega um homem vestido só de paletó e cueca. A sonhadora se assusta e foge.

 

O ato de se prostituir é definido no dicionário enciclopédico italiano como o ato de se prostituir: “Mercadejar, ceder às vontades alheias, por lucro, aquilo que deveria ser zelosamente guardado” (“Far mercato, cedere alle voglie altrui, per lucro, ciò che dovrebbe essere gelosamente custodito”). E “lucro” no dicionário Garzanti da língua italiana significa genericamente “ganho material” (“guadagno materiale”). Poderiam ser incluídos neste  “mercadejar” tanto os casamentos de conveniência, baseados somente em vantagens econômicas, como todos os casos em que, mesmo acabado o amor, as pessoas permanecem juntas por causa do status social, interesses materiais, impossibilidade de se sustentar ou ainda por causa dos preços elevados dos imóveis.

Ângela  entregava o seu corpo a um homem, fazia-se violentar às segundas-feiras e às sextas-feiras, fechava os olhos e engolia em seco, mas não abria o coração que pertencia somente às mulheres. Assim, ela continuava a aguardar o dia da libertação que seria quando a boate ficasse pronta. Francesco ama Ângela e ela lhe quer bem, tem gratidão por ele, por tudo o que lhe deu: “o que há de mal nisso?” Ela afirma ser diferente da mãe que “é prostituta porque é depravada e tem sede de dinheiro”. Ângela ainda não tem coragem de encarar a verdade. 

 

Está no seu quarto e começa entrar água. O nível da água sobe cada vez mais até que inunda o quarto todo e começa a sufocá-la.

 

Angela é inteligente e vivaz, mas, ao contrário da sua inteligência, o nível ético em que se encontra não é elevado. É evidente em Angela a carência conceitual e a indiferença ética derivadas – acredito eu – de uma absoluta falta de estimulação por parte do contesto familiar. O conceito de dignidade humana, de difícil compreensão para Ângela, jamais chegou a resvalá-la, mas a sua profunda e delicada sensibilidade não tarda em se manifestar e a “obriga” a reelaborar o inteiro embasamento cognitivo. Ela sabe que se sente mal, sabe que não sabe quem ela é, que se perdeu e não sabe bem onde foi que isso aconteceu… ela não pode nem mesmo repetir o próprio nome sem que começe a chorar. Durante um “exercício” em que eu lhe havia proposto de repetir algumas vezes o seu nome (antes a palavra “eu” e depois a frase “eu sou Ângela”), a jovem não consegue e se põe a chorar. Ângela conseguiu dizer o seu nome enquanto andava de moto a 100Km por hora porque assim não ouvia a própria voz e se sentiu muito confusa. Depois o repetiu no seu idioma natal e sentiu um grande vazio.

Cada vez que sofremos, de forma condescendente ou não, uma invasão na nossa integridade física, sexual, psicológica/emotiva ou espiritual, uma intrusão ativa nas fronteiras que nos definem como seres humanos, cada vez que o corpo é violado no que possuímos de mais íntimo, a solidão existencial que já nos caracteriza enquanto seres humanos se torna sempre mais profunda e dolorosa, trazendo sofrimentos e aflições dificilmente suportáveis. Desta forma, usurpam-se as fronteiras que confirmam a nossa identidade e nos delimitam do resto do mundo, embaralham-se as fronteiras que determinam também a nossa relação conosco mesmos, com as nossas raízes espirituais e com quanto nos circunda.

 

Vai ao seu país de origem, e num quarto escondido vê todos os objetos da sua infância: construções de papelão, a boneca adorada, a bicicleta. Sentada no assoalho, chora profundamente.

 

Ângela justificava a auto traição e a sua comprometedora condição de vida alegando motivações econômicas. Este era o álibe que não a deixava ver a sua incapacidade de crescer e de ser artífice da própria existência.  Durante a terapia, jamais expressei qualquer tipo de  opinião sobre “retidão” ou  ainda menos sobre ética e moral a propósito do seu modo de ganhar a vida, mas certos elementos indiscutivelmente extrapolavam o aspecto moral  da prostituição: não fora Ângela a escolher tal destino para si, mas sim a mãe; era patente o  doloroso sacrifício do seu corpo humilhado e ferido.

Vítima da ambição materna que lhe impunha projetos e desejos que não lhe pertenciam, cada vez que Ângela tentava sair de um tipo de violência entrava num outro tipo da mesma violência. Mas a sua alma despertara, e com as vísceras que se contorciam, ela sentia ondas de náusea, desprezo, horror… “Meu Deus! Não sei o que eu tenho… algo horrível quer sair de dentro de mim, não aguento… está doendo muito”.

 

Ela e uma multidão de pessoas tentam atravessar uma ponte altíssima sobre um rio. A ponte, feita de madeira e cordas, se parte em duas.

 

Quando nos sentimos violentados psicologicamente (também no âmbito profissional), a sensação de precisar “se vender” para poder sobreviver – de “se sacrificar” pelo pão de cada dia – se associa ao sentimento de absoluta falta de sentido no que estamos fazendo. Tais vivências tão dolorosas acentuam e exasperam ao limite extremo o sofrimento tipicamente humano, descrito por Alan Watts como sendo a sensação de “aprisionamento dentro da própria pele”. São momentos dolorosos, mas, ao mesmo tempo, podem favorecer o despertar dramático e propulsivo do dragão dormente dentro de nós; podem fazer emergir do profundo da alma a grande, a extrema “rebelião”: a fuga da prisão por meio tanto da transcendência dos confins quanto da experiência da unidade. Uma forma de compensação natural e arquetípica, um verdadeiro “peso morto” no qual dolorosamente se transformou o nosso corpo. 

 

Sonha que está na cama e ouve uma voz feminina que lhe diz de enrolar-se na cama e se soltar. Ela obedece e cai num abismo, cada vez mais para baixo… se sente livre e leve como uma pluma.

 

Este sonho lhe causou uma sensação forte de liberdade e bem-estar.

Ao mesmo tempo em que o relacionamento com Francesco vai ficando cada vez mais intolerável, ela tem dificuldade em expressar os seus sentimentos no idioma italiano. Ela gasta exageradamente, esbanja apressadamente com os cartões de crédito o dinheiro que Francesco lhe dá, como para se livrar dele. Combinamos que, dali por diante, ela falaria comigo somente no seu idioma de origem, idioma que com um pouco de atenção e adaptação ao sotaque e Ângela, eu era capaz de entender bem. Ela chorou muito e foi na sua língua materna que me falou pela primeira vez da relação com a avó (a quem chamava de mãe); quando sua mãe partira a trabalho para o exterior, Ângela – ainda pequena – fora confiada aos cuidados da avó que a criara desde então como uma verdadeira mãe.

O relacionamento com a avó é descrito como uma relação muito intensa, amálgama (dormiam abraçadas). Quando um derrame confinou a avó na cama, a paralizia lhe permitia qualquer tipo de comunicação somente abrindo e fechando um olho. Ângela sentia todo o sofrimento da avó que “não podia morrer para não deixá-la sozinha” (embora agora, diante das circunstâncias, fosse praticamente Ângela quem cuidava dela). Um dia a neta perguntou à avó se era verdade que ela continuava a viver só por causa dela e a mulher respondeu que sim. Diante do que ouvira, Ângela lhe disse que podia morrer, pois seria capaz de cuidar de si mesma. Naquele exato momento a avó fechou os olhos e morreu. Ângela sentiu um frio gélido que lhe percorreu o corpo todo e, então, desmaiou. Tinha 14 anos. 

 

Está numa floresta tenebrosa com a mulher que ama. Vê uma jovem irrequieta que aparece e desaparece, ela está vestindo uma camisola branca comprida. Percebe que a adolescente, que tem 14 anos de idade, está morta porque os seus pés não tocam o chão.

 

Era a primeira vez que contava o episódio a alguém; a lembrança da avó, bem como a sua morte e o pedido de morte, tinham sido completamente removidos da sua mente. Ângela jamais conseguira chorar pela sua passagem e nem fora visitar o seu túmulo, nem mesmo quando regressava ao seu país de origem. Embora quisesse muito fazê-lo, aliás, sentia realmente necessidade de ir até o túmulo da avó, ela dizia não conseguir, não tinha forças para tanto.

 

 Uma cena sado-maso grupal. Várias pessoas a estupram. Os seus pulsos estão amarrados. Vê um cachorrinho de coleira que está sendo puxado por alguém. Em seguida, ela própria caminha com as mãos presas a uma corrente controlada por alguém que está atrás dela.

 

Escreve Alan Watts: “é importante recordar que a experiência da unidade aflora inicialmente do estado mental da total absurdidade”. A lúcida compreensão da radical impotência do eu, reduzido a peso morto, a um esforço totalmente inútil, nasce justamente da circunstância que se faz cada vez mais ostil, invasiva, violenta e da impossibilidade de encontrar uma via de saída para o impasse existencial. De repente, como por milagre, é possível perceber que as rígidas fronteiras entre si mesmo e o resto do mundo inesperadamente desapareceram… a vida pela primeira vez parece fluir livremente, e assim livres sentimos de pertencer a um Todo, participamos, em suma, de um projeto existencial mais amplo.

 

Ela se distancia da multidão e se envereda por uma floresta muito densa em busca de algo. Ali, encontra um unicórnio. Ela o monta e o unicórnio a leva a um lago escuro de lama: no lago, ela  encontra Morfeu, o seu ursinho de pelúcia. Ela o tira da lama e fala com ele,  perguntando-lhe o que está fazendo ali e depois desperta.

 

Na primeira experiência de respiração holotrópica que Ângela fez (experiência que, para minha sorpresa, ela me disse querer anotar), ela entrou em contato com uma divindade da sua cultura de origem: Oxum, a deusa africana das águas doces, rios, cascatas e riachos.  Ângela era devota de Oxum, muitos anos antes, no seu país de origem, tinha sido iniciada no seu culto. Enquanto estava em estado holotrópico ela realizou um verdadeiro ritual de gestos, postura, movimentos articulados e murmurou palavras incompreensíveis, uma autêntica celebração da divindade. Ela própria se impressionou com a experiência e com as fortes emoções que a acompanharam: “Sinto a vida que canta… e freme dentro de mim”.

Alguns dias depois da experiência holotrópica, telefonando a um sacerdote do culto, na sua terra natal, Ângela lhe falou do sentimento de culpa que tinha por ter se distanciado do culto, por ter se afastado da divindade a qual era devota. Visando placar a ira da deusa, pedindo perdão por ter se afastado dela, Ângela providenciou que, naquelas paragens distantes, fossem sacrificados doze bodes e assim, através daquele sangue versado, ela expiaria a sua culpa. 

No encontro que tivemos após a experiência holotrópica, Ângela me disse que pretendia fazer um altar na sua casa e, homenageando a divindade o montaria com os símbolos da mãe divina, com as suas cores e pratos preferidos: uma cumbuca com água, comidas, rosas amarelas e uma vela azul. Tomou banhos ao ar livre, nas cascatas e no rio… e decidiu que, de agora em diante, ela manteria vivo o altar de Oxum, sua mãe divina, com ofertas diárias. Diante do altar, num momento de profunda instrospecção, Ângela entrou em contato com a divindade e recebeu dela algumas revelações importantes. Abaixo, segue o sonho que Ângela teve na noite em quel montou o altar:

 

 Está na floresta com a mulher que ama. Vê uma cascata, ela conta para a companheira que aquele é o lugar onde encontrara o unicórnio.

 

Francesco requisita Ângela para prestações sexuais cada vez mais complexas e especiais. Sexo a três… jogos de penetração com brinquedos e aparelhos comprados em sex shops, como, por exemplo, “a chuva dourada”. Ela o acontenta, mas teme que estejam indo por um caminho perigoso. Eu compartilho do seu temor e receio por ela. Francesco diz que a ama, ma tem necessidade de pagá-la, somente assim pode dominá-la; é o desejo atávico de subjugar a fêmea antiga que ainda vaga pelos meandros do nosso mundo moderno, uma fêmea que, por séculos, sem autonomia econômica, foi obrigada a “se dar”, também em âmbito matrimonial, em troca de segurança e proteção. 

A moça associa essa escalada de exigências e violências de Francesco (violências  que se fazem cada vez mais presentes neste tipo de relacionamento) àquelas de sua mãe e, enquanto adquire cada vê mais consciência da sua feminilidade, se dá conta que “se esquecera completamente de quem era ela própria”.

 

Alguém bate à porta de casa trazendo um presente para ela: um mapa mundo antigo muito bonito! Olha e não vê as fronteiras limítrofes de cada região… olha mais uma vez e vê um ponto no meio do oceano Pacifico e diz: “É aqui que se encontra o segredo do mundo!”

 

Ângela estabeleceu comigo uma relação terapêutica emotivamente muito intensa. A imagem de uma mãe “boa” e aconchegante vai abrindo caminhos lentamente: um rosto e olhos nos quais finalmente se espelhar e se reconhecer. Uma mãe benévola, na qual é possível confiar, cúmplice da sua nova e consciente dignidade; a gradual introjeção desta nova imagem materna favorece uma profunda “reconciliação”. Ângela me falou muito timidamente (tinha vergonha porque se sentia inadequada) de uma antiga aspiração que, ao longo dos anos, ela engavetara: ter um diploma universitário, o diploma de psicologia

 

Está num bosque onde há um poço profundo. Alguém tira água do poço e descobre uma cidade subterrânea. Repentinamente ela se vê num ambiente do século XIX, depois num ambiente mais antigo… e tantos outros ambientes, cada vez mais antigos…

 

Durante uma viagem no seu país de origem, Ângela consegue finalmente ir ao cemitério onde estava enterrada a avó. Providenciou para que o túmulo fosse aberto e, então, exumou os ossos da querida avó: olhou para ele, os tocou e até tirou fotos (ela me mostrou várias dessas fotos). Providenciou também a construção de um novo túmulo para a avó. Tal experiência teve um forte impacto emotivo sobre Ângela, elemento propulsor que a fez progredir no seu percurso terapêutico. Diferentemente de antes, quando não conseguia chorar, desta vez o pranto versado pela morte da avó brotou de modo desesperado; chorou sobre o túmulo daquela que a criara e continuou a fazê-lo durante o nosso encontro, quando me contou o episódio todo. Era um pranto reparador e desafogado, pois jamais tal perda fora pranteada e assim chorou como se tudo tivesse acontecido naquele momento. A Ângela que  emergiu deste sofrimento todo era uma nova Ângela, mais forte, consciente, e, pela primeira vez, artífice do seu próprio destino, uma Ângela que não tinha mais 14 anos. 

 

É atraída para dentro de uma fonte luminosa  e “aterrissa” numa grande sala onde algumas pessoas falam sobre Karma. Vai abrindo várias portas e chega numa outra grande sala cheia de quadros que representam as suas vidas passadas. Há alguns rostos conhecidos.

 

Era domingo e eu acabara de voltar das férias de verão, uma viagem à Índia, quando um amigo de Ângela me telefonou; o amigo, que eu conhecia, pois também fizera terapia comigo,  me disse que Ângela estava muito mal. Tentei falar com ela por telefone, mas do outro lado do aparelho se ouviam somente soluços. Marcamos um encontro para o dia seguinte. Logo depois, fui chamada novamente para que a encontrasse “imediatamente”.

Quando nos encontramos uma hora depois, Ângela me abraçou soluçando. Durante a minha ausência ocorreram alguns fatos graves e significativos nos quais, tendo em vista o atual contexto – por motivo de espaço e privacidade – não me aprofundarei.

Contudo, um sonho em particular me impressionou bastante; Ângela teve esse sonho enquanto eu viajava e ela nada sabia sobre a minha viagem:  

 

Vejo Virginia (a analista) com roupas indianas entre as montanhas que separam a Índia do Tibet (era exatamente o lugar onde eu passara as férias).

 

O funeral de sua mãe 

 

Ela resolve deixar Francesco, mas teme pela sua segurança econômica.

 

Uma menina lhe pergunta o seu nome, e ela o pronuncia comovida, como jamais se sentira antes. As duas se abraçam. Ela diz: “Agora posso ser eu mesma.”

 

Abre a janela do seu quarto. Lá fora está escuro, mas ela vê que o sol e também a lua. Pensa que os dois estão se aproximando cada vez mais.

 

Atravessando uma gruta, ela e outras pessoas começam a explorar uma imensa montanha. Cada uma daquelas pessoas estava encarregada de “embocar a trilha justa”. A ela cabia ler numa parede a história de Jesus: mas a história era diferente de como ela conhecia. Jesus tinha sido sacrificado não para nos salvar, mas sim porque era homossexual (pensa na mãe que sempre “joga na cara dela” a sua homossexualidade assim como “o próprio sacrifício” para criar as filhas). No final do caminho ela precisa dar um grande salto.

 

Fala comigo na sua língua materna.

 

Depois de ter terminado com Francesco, quando a boate que ambos tinham em sociedade ficou pronta, Ângela não se sentia bem, não conseguia ficar contente e nem aproveitar a concretização do sonho e a liberdade adquirida.  

 

Estava em casa com ele, sai na calada da noite vestindo uma calça de ginástica camuflada militar. Carrega debaixo do braço um grande canhão com o qual atira na boate que explode.

 

Pouco tempo depois, por brigas internas, a boate é fechada.

Um sogno sucessivo:

 

Ela mata Francesco, e juntamente com outras pessoas, o corta em pedaços.

 

 Faz sexo com a mulher que ama e tem um grande pênis (pensa no pênis de Francesco). Prova  intensas sensações-emoções que  jamais experimentara antes.

 

Bem sabendo dos seus limites e incompletude, concluo aqui este meu potpourri di episódios e sonhos significativos do percurso terapêutico de Ângela o qual foi adiante por mais algum tempo. Ela precisou de todas as suas forças para enfrentar corajosamente ulteriores  dificuldades e sofrimentos; precisou reapropriar-se de todas as etapas da sua vida e dos momentos que lhe haviam sido roubados, para dar duramente novas braçadas e não imergir no vasto mar da vida.

André

 

Segue o relato de André, um analisando de 35 anos de idade, dotado de grande sensibilidade com algumas dificuldades na interação com o mundo feminino. No relato que André intitula “Contato” ele nos descreve um relacionamento nascido num contexto onde não seriam previstos relacionamentos desse tipo: André nos fala do seu encontro com uma prostituta.

 

Eu a via todas as noites. Cada noite e cada dia que Deus criou na Terra. Ela estava ali, entre as árvores de uma travessa secundária e oferecia seu corpo a homens solitários de uma grande cidade. Às vezes, eu parava o carro por ali, na calçada em frente ao seu ponto; torcia para que ela atravessasse a rua e viesse falar comigo, quem sabe para me propor algo. Porém, isso não só nunca aconteceu, como sempre chegava algum outro carro que a levava para longe de mim, para uma permuta veloz: sexo por dinheiro.

Mas, uma noite, decidi que seria eu a dar o passo em sua direção: parei o carro na frente do seu ponto, abri a janela do carro, ela me disse o preço, eu fiz de conta que avaliava a oferta (quanto vale uma mulher?), e, enfim, lhe disse para entrar no carro. Demos algumas voltas, mas logo em seguida, estacionei o carro alguns metros de distância de onde eu a havia pegado. Eu estava tão nervoso que não me lembrava mais a razão de estarmos ali juntos, o que estava para acontecer… ela percebeu o meu nervosismo e se encarregou de tudo. Acabou logo, sem prazer nem alegria; pelo que me diz respeito, lembro-me somente das suas pernas mortalmente frias… talvez o seu coração não quisesse descer a um nível assim tão baixo. Eu voltei para casa, mas não podia dormir, e, como fazem as crianças quando combatem o sono, fiquei rolando na cama por um bom tempo; era como se eu me esforçasse muito para entender – ou para expelir – algo que me corroia por dentro. Depois dessa longa tentativa, cai num sono sem sonhos.

Com aquele primeiro encontro, a barreira que me separava dela se rompera e eu voltei a procurá-la alguns dias depois. Ela não me reconheceu, acariciei os seus cabelos e disse-lhe alguns elogios inúteis. Quando eu perguntei por que ela não me olhava nos olhos, ela me disse que não conseguia (por quê? o que há nos olhos?). Deixei o calor do seu corpo, muito antes de obter algum prazer.

A terceira vez que estive com ela, fui logo dizendo que não queria fazer nada. Eu a levei para um canto escuro, e para grande surpresa de ambos, nós trocamos somente algumas frases. Depois a devolvi à sua carcereira, a Rua.

Vieram outros encontros. Eu não conseguia mais tocá-la, somente olhá-la e falar com ela brevemente. Ela era jovem, mas tinha o olhar duro, decidido, desiludido; o olhar de quem está convencido de ter intuído o engano da vida e do amor.

Estava na hora de acabar. Precisava acabar… sexo por dinheiro… Então, eu paguei e fui ter com outras mulheres, desta vez pensando somente no meu prazer físico. A fratura dentro de mim aumentava num crescente, e eu estava quase feliz que isso acontecesse: agora, como todos os demais, eu também era capaz de, finalmente, separar o amor do sexo. Talvez agindo assim eu perdesse os dois, mas é desse jeito que funciona para todos e eu sou como todos. Levantava o meu punho para o céu, sou um Homem, eu gritava. Contudo – e não sei dizer o porquê –  fui procurá-la mais uma vez. Aliás, eu sei bem o motivo: sentia falta dela.

Conversamos, sim… sobre o meu trabalho, sobre o seu; sonhos, projetos, realidades diferentes. Os nossos corpos não se tocaram. Foi então que eu senti algo diferente: talvez tivesse acontecido no silêncio entre uma palavra e outra, suspenso, dentro de um sorriso embaraçado, um instante de liberdade. Senti um calor profundo que nascia das profundezas do meu ser, emanava de mim e seguia na direção dela… dava a impressão que eu fosse uma estranha espécie de corpo estrelar que irradiava ao seu redor a sua natureza mais íntima.

Naquele breve átimo, pensei que dentro do nosso corpo havia outro corpo, escondido… dourado … como aquele de uma criança, ou de um anjo… um corpo que não tem preço, não tem nem mesmo uma realidade em si, até que, de repente, se revela. Eu não podia saber se isso aconteceria e como seria… mas ali, naquela noite, perto dela, esse corpo se manifestou; numa espécie de metáfora lúdica ele se mostrou exatamente da mesma forma que acontecia, quando, durante a nossa infância, estavámos acostumados a fazer quando brincávamos de esconde-esconde: numa tempestiva corrida ele saira de trás de uma árvore, e, desviando dos obstáculos, saltitava no espaço para alcançar o muro antes que os colegas o fizessem, e assim fazendo, pudesse ser o primeiro a gritar:  “Pique salva todos!”.

Eu a tocara assim, como um álito de vento. Mas havia a Rua, a Rua de todos, que espreitava, aguardava… Eu a levei até ela, onde queria permanecer, fácil presa dos próprios sonhos de riqueza e dos homens que ela desprezava e chamava de maníacos. “É bem possível que talvez o único Homem, a única Mulher, ainda estejam brincando de esconde-esconde, dentro de nós”.

 

 

“O único Homem, a única Mulher, ainda estejam brincando de esconde-esconde, dentro de nós”. Esta frase final do relato de André espressa tristemente a profunda cisão interior entre consciência e inconsciente, corpo e alma tão típica e emblemática do homem moderno.

 

Maria Madalena

Os psicólogos do profundo conhecem muito bem o poder evocativo e a força psicológica da linguagem imaginal (a linguagem do eros), muito mais potente e iluminante do que qualquer teoria ou teologia e do que qualquer discurso racional (logo). No âmbito religioso, por exemplo, cabe muito mais à imagem do que à verdadeira doutrina a criação do poder sedutor e persuasivo de uma religião. Por mais que possamos interpretar simbolicamente cada imagem, o aspecto realmente importante é que vivemos e “respiramos” na atmosfera que elas evocam e, ao mesmo tempo, “impregnam”.

 

Imagem recorrente na nossa iconografia religiosa é a imagem da Virgem Maria no ato de matar a serpente que esta sob os seus pés. Em algumas representações Nossa Senhora parece sorrir vitoriosa; em outras ela tem o semblante triste ou fatigado decorrente da árdua batalha em manter a serpente debaixo dos seus pés (depende do ponto de vista pessoal e da “sensibilidade erótica” do artista!). O caduceu (bastão de ouro com duas serpentes defrontadas e enroscadas em torno dele) do Hermes grego, o mercúrio na Alquimia, o elemento “tentador” da tradição bíblica: se observarmos melhor os movimentos sinuosos da serpente, eles se revelam justamente como elemento dinâmico apto a desenvolver, a tornar móvel, a “dominar o caos”, a aumentar e transformar. Presente em muitas culturas, o símbolo da serpente nos antigos cultos do divino feminino representava a própria deusa em toda a sua potência geradora e é uma imagem sempre presente no inconsciente com relação às experiências de iniciação nos processos evolutivos suprapessoais. Na Índia, a Kundalini – a energia sutil que, vivendo latente na região pélvica, aguarda para ser despertada – é representada como uma serpente enrolada. Através de práticas de meditação, esta energia é despertada, e então, percorrendo a coluna vertebral até a cabeça, ocorre a iluminação; esta experiência doa ao ser humano o êxtase, a máxima liberdade e sabedoria à qual a alma pode aspirar.

 

Escreve Jung:

 

Do ponto de vista do sistema cósmico dos chakras, podemos nos dar conta de estarmos ainda muito embaixo, que a nossa cultura é uma cultura no nível de mũlãdhãra (que se encontra no primeiro e mais baixo chakra, situado na pélvis, e é a nossa realidade. N.d.A.), somente uma cultura pessoal na qual os deuses ainda não foram despertados do seu sono. Devemos por isso despertar  Kundalini para tornar manifesta a luz dos deuses na centelha de consciência individual.[1]

 

O Gnosticismo (de gnòsis, termo grego que significa conhecimento) era uma complexa doutrina erética do cristianismo. O fim último dos gnósticos era a experiência direta do divino. Tal doutrina reconhecia o aspecto feminino de Deus, chamando-o de a “Grande Mãe” ou “Sophia” (que na sua versão “tenebrosa” aparece como “Lilith”, filha ou emanação de Satanás), sendo que  eram dedicados a ela numerosos cultos. Em tais contextos, as “núpcias sagradas” (hieros gamos) representavam a união da suma-sacerdotisa com o rei santo. Muitos destes cultos são ainda hoje desconhecidos para a  maior parte das pessoas.

 

Nos mitos gnósticos Eva, a nossa “pecadora”, não era considerada a culpada pela queda da humanidade; contrariamente às nossas crenças, foi justamente a serpente (considerada por algumas tradições esotéricas a mais espiritual entre os animais) que ofereceu a Eva a possibilidade do conhecimento do Bem e do Mal e da imortaldiade, conhecimento que poderia salvá-la e consentir-lhe de se tornar semelhante a Deus. Nas antigas religiões pagãs o lado feminino de Deus tinha um tríplice aspecto: a virgem, a jovem apaixonada (aquela que carrega o fruto da vida) e a velha (a sábia). Na nossa iconografia, Maria encarna ao mesmo tempo a virgem e aquela que carrega o fruto – um papel impossível, inacessível a uma mulher mortal. As mulheres (às quais é apresentado este arquétipo religioso da Deusa Virgem e que, num certo sentido, o “respiram”) são de qualquer maneira separadas da própria sexualidade, condição que provoca também nos homens tal separação. Maria que mata a serpente debaixo dos seus pés representa o princípio feminino que suprime a própria sexualidade.

As divindades pagãs que representam a força da natureza em nós, como o deus grego Pan, por exemplo, foram demonizadas pela propaganda eclesiástica; da mesma forma, a Igreja considerou Maria Madalena uma meretriz, embora o Evangelho jamais tenha mencionado o seu nome nos episódios em que Jesus se dirige a uma prostituta. A negação do aspecto feminino de Deus ou – ainda mais grave – a negação do corpo e da sexualidade, típico das religiões patriarcais, leva à criação de uma doutrina religiosa incompleta e, por certos aspectos, perniciosa. Quando um Estado é capaz de controlar a sexualidade do próprio povo através da religião e remetê-la a outras metas (o dinheiro, por exemplo), do ponto de vista psicológico isso significa que o controla de forma absoluta. A nossa religião, prevalentemente masculina, jamais sondou os mistérios do divino feminino e da sexualidade-espiritualidade, nem jamais considerou de forma devida a emancipação da mulher, pois isso requer uma representação metafísica adequada ao novo modelo feminino emergente. A paridade dos direitos reinvindica de fato uma nova imagem arquetípica de “mulher divina”, uma mulher não mais virgem, uma mulher sexualizada.

Em Resposta a Jó Jung interpreta a decisão de Javé de se tornar homem um símbolo de evolução que terá início quando o homem tomará consciência da imagem de Deus com a qual até agora se confrontou. Este Deus age através do inconsciente do homem e o impele, através da união e da integração, a reapropriar-se das forças “opostas” que, ameaçadoras jazem no fundo da consciência. “O rosto feminino de Deus”, a “virgem nera” partence ainda hoje a outro mundo, a um mundo subterrâneo, um mundo futuro.

 

“Aquilo que importa agora é saber se o homem é capaz de se elevar a um degrau moral mais alto, a um nível superior de consciência que o faça estar à altura do poder sobre-humano que os anjos caídos … depositaram nas suas mãos.”[2]

 

Jung considera Nossa Senhora (também na correspondente demoníaca, “Lilith”, a  Sophia satânica) o quarto elemento que tornaria completa a trindade cristã:

 

“Há muito tempo se sabe que o coração das massas é inflamado pelo profundo desejo que a intecessora e mediadora dos homens ocupe o seu devido lugar perto da Santíssima Trindade e seja recebida como ‘rainha dos céus e esposa na corte celeste’… e já sabemos pelo Antigo Testamento que Sofia se encontrava perto de Deus ainda mais cedo do que a criação… desde a pré-história se sabe que o ser divino primordial traz em si um componente masculino e um feminino. Mas, uma verdade deste tipo se revela no tempo somente quando é proclamada solenemente ou quando é redescoberta” [3]

 

Nos últimos anos tem-se manifestado no âmbito geral uma tendência à recuperação, à reapropriação no contexto religioso de uma figura metafísica feminina dotada de sexualidade, figura que emerge nos nossos sonhos, mas também na arte e na literatura. Como exemplo disso, temos a figura de Maria Madalena como se vê no filme “O código Da Vinci”, baseado no homônimo livro de Dan Brown. No meu ponto de vista, embora tais tentativas sejam às vezes ineptas ou até mesmo grosseiras, do ponto de vista piscológico, elas são extremante positivas, pois funcionam como uma ‘chacoalhada’ nos símbolos do nosso tempo; embaralhando-os somos levados a pensar, a refletir sobre eles e, portanto, a transformá-los significativamente (uma verdadeira “metamorfose dos deuses”). Desta forma, no caso aqui específico, se observará uma transformação da mulher inconsciente, arquetípica, dentro de nós, e o advento da sua nova imagem metafísica. Tudo isso é naturalmente digno de interesse para os psicólogos do profundo.

 

 Jung assim exprimia a urgência da “transformação dos símbolos”:

 

“Estamos vivendo o que os gregos chamavam de Kairos, o momento certo para uma metamorfose dos deuses, dos princípios e símbolos fundamentais. Esta peculiaridade do nosso tempo, que certamente não é uma escolha nossa, é a expressão do homem inconsciente dentro de nós que está mudando. As gerações futuras deverão levar em consideração essa importante transformação…”[4].

 

A imagem de Maria Madalena poderia ser uma imagem arquetípica mais moderna de uma mulher divina escolhida para se unir à trindade na completação do quadro divino? Uma Maria Madalena não mais “prostituta”, mas sim no novo papel de “esposa de Cristo”? Seri ela um novo ícone feminino, um ícone mais adequado a representar a nova mulher emergente, sexualmente mais completa, uma mulher que tende a libertar a serpente que está debaixo dos próprios pés?

Cada nova imagem exprime uma renovada esperança de suavização da tensão ameaçadora e desestabilizante da alma humana no que lhe é mais íntimo; como o aplacamento desta tensão nos ajudará a realizar o salto evolutivo na nossa consciência, a esperança da qual se fala, significa convergência para um fim comum: paz, harmonia e equilíbrio entre os opostos.

[1] JUNG, C. G. La psicologia del kundalini-yoga. Torino: Bollati Boringhieri, 2004, p. 114

67 JUNG, C. G. Resposta a Jô. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1986, p. 103. Tradução livre.

68 Ibidem, p. 104

[4] JUNG, C. G. Opere 10**, Dopo la catastrofe. Torino: Bollati Boringhieri, 1986, p. 47

 

 


Note

1 Simmel, G., Il denaro nella cultura moderna, Armando Editore, Roma, 2005, p. 82..

2 Lowen, A., Il linguaggio del corpo, Feltrinelli, Milano, 2005, p. 293.

3 Watts, A., La via della liberazione, Astrolabio, Roma, 1992, p. 27.

4 Jung, C. G., La psicologia del kundalini-yoga, Bollati Boringhieri, Torino, 2004, p. 114.

5Jung, C. G., Resposta a Jò, Editora Vozes Ltda, Petropolis, RJ, 1986, p. 103, T.d.a.

6Ibidem, p. 104.

7 Jung, C. G., Opere 10**, Dopo la catastrofe, Bollati Boringhieri, Torino, 1986, p. 47.