O eclipse – fragmentos de um percurso terapêutico

 

(Estratto)

 

“…parecia que também os objetos materiais fossem feitos de amor, parecia, aliás, que o mundo inteiro fosse uma explosão de amor. Eu via amor, ouvia amor e tocava amor. Para mim não existia nada além do  amor…” 

                                                                     Sri Govinda, A Consciência Cósmica    

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Uma luz na sombra

 

Continuarei o assunto abordado no capítulo anterior com a descrição de algumas passagens da terapia de Giacomo; a duração da sua terapia foi de dois anos e meio com a freqüência instável de uma sessão por semana. Estando ciente dos limites intrínsecos que uma exposição verbal deste tipo comporta, sei bem que não posso oferecer um resumo exaustivo do seu inefável caminho interior, mas, na medida do possível,  tentarei descrever os momentos mais relevantes da sua trajetória terapêutica. Nesta minha tarefa contarei com a ajuda de alguns elementos que, embora às vezes não tenham sido transcritos de forma constante, são bastante relevantes. Tenho comigo  alguns sonhos de Giacomo os quais transcrevi após os nossos encontros, a descrição de algumas das suas experiências holotrópicas (somente uma delas foi escrita diretamente por ele) e certas minhas anotações de momentos particularmente significativos da terapia; por fim, posso ainda contar com a minha (ótima) memória.

Giacomo me foi enviado por uma assistente social sendo que, de imediato, a sua condição me pareceu grave e preocupante. Durante a nossa primeira conversa tive algumas dúvidas sobre a possibilidade ou utilidade de uma terapia baseada, sobretudo, na introspecção, na experiência subjetiva, na análise dos sonhos. Não sabia ao certo quanto esse tipo de terapia poderia ajudá-lo naquela específica conjuntura da sua vida. Pensei que talvez uma terapia cognitivo-comportamental pudesse incidir mais rapidamente e drasticamente no seu comportamento que era absolutamente destrutivo e autodestrutivo. Adiei então qualquer decisão sobre o seu destino terapêutico até que tivéssemos tido alguns encontros; mas, já na nossa segunda sessão, diante dos sonhos que Giacomo me trazia (sonhos que já foram descritos no capitolo anterior) eu tomei a decisão de iniciá-lo numa terapia analítico-transpessoal com sessões de respiração holotrópica.

Giacomo era o que se pode dizer  “um homem bonito”, educado e respeitador das regras terapêuticas (horário, pagamento, ambiente). Era possível notar que Giacomo se esforçava para se comunicar num italiano de boa qualidade, sem nuances dialetais ou palavras de baixo calão. Da forma como se apresentava – austero, quase às raias do cerimonioso, bem vestido e perfumado – me dava a impressão que ele interpretasse o local da terapia quase como se fosse uma espécie de “templo” e que a nossa sessão fosse talvez o compromisso mais importante da sua vida. Decididamente Giacomo queria dar “oferecer a melhor parte de si mesmo”.

A sua realidade, fora do ambiente terapêutico, era bem diferente: Giacomo tinha acabado de sair da prisão onde ele estivera por comportamentos de estrema violência e ferocidade, dignos das manchetes policiais. Provinha de uma família de imigrantes do sul da Itália e fazia parte de um ambiente social cujas regras e valores estavam decididamente em contraste com o comportamento formalmente aprovado e compartilhado pela nossa sociedade. Seu pai era um homem poderoso, exercia aquele tipo de poder paralelo para o qual tudo é possível,  pois age fora das normas da lei. Eu o observava, às vezes de forma incrédula e perplexa, quando, com uma expressão serena, mas que traía um orgulho não muito velado, ele me contava certos fatos terrificantes de inaudita violência dos quais, muitas vezes, o personagem principal era ele próprio.

Paralelamente aos seus relatos, os sonhos não davam trégua e, incondicionalmente, se apresentavam com imagens simbólicas que expressavam preocupações existenciais numa direção bem diferente da urgência e gravidade dos seus problemas; não pareciam, em suma, minimamente relacionadas aos problemas concretos da vida de Giacomo. Tenho em mente uma frase de Jung na qual ele afirmava que quanto mais intensa e luminosa é a luz de um homem, mais profunda e escura é a sua sombra. O mesmo princípio era válido para o caso de Giacomo, só que às avessas: no caso dele, nos deparávamos com uma vida sombria, tenebrosa e um inconsciente que, pode-se dizer, resplandecia de luz própria.” O confronto com todos os elementos que são removidos ao longo da nossa vida, com a “sombra”, luminosa ou tenebrosa que seja, “desentrava o caminho”, favorece a derrubada do dique que nos separa da nossa “nascente”. Esta barragem é composta de experiências traumáticas jamais elaboradas, emoções e energia “congeladas” que não fluem mais, sem ter, portanto, acesso à consciência.

Giacomo não gostava do seu trabalho cujo horário era longo e o salário baixo. Não satisfeito com a sua condição profissional, ele se matriculara num curso intensivo para obter o diploma de segundo grau o que daria acesso a um tipo de trabalho mais gratificante; porém, Giacomo não conseguia freqüentar as aulas e levar adiante o seu projeto. Mesmo sem diploma, o seu atual emprego era um trabalho registrado o que lhe dava segurança e garantias; a estabilidade que Giacomo tinha no trabalho era para mim motivo de alívio, pois eu temia uma situação de desemprego durante as suas repetidas e graves recaídas na dependência e na espiral de violência, agravada pelo uso de estupefacentes. Ao longo dos primeiros meses de terapia, quando Giacomo não comparecia a alguma sessão (o que era bem incomum no caso dele) eu facilmente imaginava onde ele poderia estar: provavelmente num hospital ou numa delegacia de polícia. A causa era sempre a mesma: briga num bar ou numa discoteca onde Giacomo, com a sua imensa raiva e o seu corpo robusto, criava uma série de problemas, destruindo coisas e machucando as pessoas ou ele próprio, e, às vezes, de forma realmente grave.

Geralmente não utilizo na terapia uma modalidade interativa do tipo “diretivo”, pois, normalmente, não dito (nao dito normalamente) regras de comportamento nem prescrições. No caso de Giacomo, porém, a sua extrema agressividade e os repetidos coquetéis de álcool e cocaína (que insuflavam absurdamente o aspecto violento da sua personalidade) exigiam uma intervenção imediata. Depois de conversar bastante com ele, decidimos que seria produtivo matriculá-lo (que ele se matriculasse) num curso de arte marcial japonesa; esta atividade se revelou uma ajuda providencial na evolução da terapia. Já o segundo grande desafio daquele caso – a suspensão do uso de substâncias estupefacentes – exigia uma intensa motivação e força de vontade por parte do próprio Giacomo, demonstrando-se inicialmente uma tarefa extremamente difícil.

Daquele período eu transcrevi entre as minhas anotações o seguinte sonho de Giacomo:

 

Ele, o sonhador, vai até um prédio para obter algumas respostas de uma leitura de cartas. Está vestindo a roupa de ginástica que usa quando faz as aulas de luta japonesa, está cansado. Algumas pessoas lhe contam que uma bruxa foi morta, que cortaram a sua cabeça. Ele vê a cabeça mutilada da bruxa que tem cabelos de serpente (uma medusa); a cabeça afunda no leito de um rio onde se une ao corpo dela que a aguarda lá no fundo. Seguido de outras pessoas, o sonhador é o primeiro a apedrejar a cabeça da bruxa. Ele parte a cabeça com uma espada e continua a cortá-la ao meio. A cabeça se torna cada vez menor até que, de repente, recupera a sua forma integral, com os cabelos de serpente.

Num certo momento ele vê um crocodilo que quer defender a cabeça. O sonhador se transforma num tigre (se sente forte) e enfrenta o crocodilo o qual, por sua vez, se transforma no personagem de um desenho animado. 

 

O que mais me impressionou nesse sonho foi a profundidade do inconsciente e da energia ativada. Giacomo não tem nenhuma familiaridade com a mitologia e ficou realmente fascinado quando lhe falei sobre o mito da Medusa – os seus cabelos de serpente, o olhar paralizante – narrando-lhe as aventuras de Perseu e Pégaso, o cavalo alado. De imediato me pareceu muito significativa a imagem de conjunção da cabeça com o corpo da bruxa: “Ele vê a cabeça mutilada da bruxa que tem cabelos de serpente (uma medusa); a cabeça afunda no leito de um rio onde se junta ao corpo dela que a aguarda lá no fundo. A imagem da medusa, aquela que “transforma em pedra” todos que a fitarem, é uma imagem eloquente do poder paralizante da droga; quando se instaura a relação de dependência, a droga enreda e se apodera de tudo e de todos e o sonhador procura desesperadamente combatê-la e destruí-la: “Ele parte a cabeça com uma espada e continua a cortá-la ao meio. A cabeça se torna cada vez menor até que, de repente, recupera a sua forma integral, com os cabelos de serpente.” A potência ameaçadora do seu mundo interior emotivo – o seu mundo feminino ativado pelo consumo da droga – é representado pela cabeça da bruxa com os cabelos de serpente que, no sonho, se junta ao resto do corpo. Um feminino cindido que se torna maléfico justamente como a Górgona, cujos lindos cabelos se transformaram em  horríveis serpentes, e os dentes se converteram em presas ameaçadoras.

Com bastante frequência as pessoas que sofrem de dependência química comparam as sensações dessa relação durante o período inicial quase como se fosse uma “lua de mel” com a substância usada. Tal fato é particulamente evidente no caso da heroína que é chamada pelos usuários de “mãe”, o que denota uma relação de grande intimidade. No começo da dependência o que se vive é algo parecido com o que se prova quando nos sentimos amados. A experiência espiritual, que é inconscientemente o maior desejo de quem faz uso dessas substâncias, é a máxima espressão, o vértice arquetípico da experiência de “ser amado”, aquele Amor com ‘A’ maiúsculo, que na sua grandeza infinita, nós definimos como sendo “o amor de Deus”.

Conforme avançam as sessões e se aprofunda a relação analítica, o recipiente terapêutico age como um catalisador que, mobilizando a energia psíquica, a canalisa na direção da percepção ou da experiência subjetiva que, ao seu tempo, foi negada, contaminada ou ignorada. Assim, quando este “espaço interior” removido – que é uma verdadeira e própria ilha de mundo subjetivo – entra em contato com a consciência,  poderá se juntar ao fluxo contínuo do seu percurso evolutivo (o leito do rio); caso isso não ocorra, o espaço interior removido permanecerá alienado, amarrado num nó cego, ou, poderá ainda, tentar ser resgatado por meio da dor e sintomas – os dois únicos indícios do seu confinamento. O encontro (ou reencontro) dos aspectos cindidos ou ignorados, que foram ativados pelo contexto terapêutico, permite que eles sejam, usando a terminologia de Wilber, diferenciados (transcendidos) e integrados (incluídos) em ondas progressivas da consciência em expansão: “Na grande migração morfogenética da matéria para o corpo, a mente, a alma e para o espírito, partes da consciência podem ser separadas, distorcidas ou relegadas em cada uma das seguintes ondas: partes do corpo podem ser reprimidas; elementos da mente podem ser transtornados; aspectos da alma podem ser negados; o chamado do espírito pode ser ignorado. Em qualquer um desses casos, as partes alienadas permanecem como “pontos de estagnação”.  

A psicologia integral de Ken Wilber é definida “uma psicologia de espectro total” que une a psicologia tradicional do profundo (Freud, Jung) àquela extraída das antigas tradições sapienciais do Oriente: a psicologia do “superconsciente”, dos “áticos” da personalidade e dos cumes evolutivos. A psicologia de Wilber descreve dez níveis de desenvolvimento, do mais baixo ao mais alto, isto é, do material ao espiritual. A evolução humana é vista como a elevação da consciência que parte do inconsciente na direção do consciente até atingir o superconsciente.

A personalidade de Giacomo e a sua história pessoal me levaram a  pensar muito no que realmente somos e no que realmente se baseiam princípios como a dignidade, a beleza e o valor de um ser humano. Giacomo sabia “cativar as pessoas”, parecia ter uma força pessoal que o enobrecia,superando o seu próprio comportamento e a sua vida desregrada e violenta. Possuía algo que, num certo sentido, transcendia as suas ações individuais, era certamente algo de muito singular e de difícil descrição. Eu estava sempre atenta às minhas reações emotivas  em relação a ele; eu sabia, portanto, que ele me despertava sentimentos positivos, de estima, tranqüilidade e confiança, como se os papéis que ele decidira interpretar na vida, isto é,  as suas ações violentas e perigosas, não pertencessem a ele, na realidade.

Um dia, Giacomo me relata o seguinte sonho:

 

Ele está sobre os rochedos, o mar está agitado. Sua irmã mergulha com a roupa de mergulhador. Ele também precisa mergulhar. A situação é um pouco confusa, há  muita gente dentro da água e entre os rochedos. Vê no céu um abutre branco (um abutre “lixeiro”, que “devora lixo”) que está arrancando com o bico as balas  (de uma espingarda, revólver…) que estão cravadas na sua carne.

 

Resolve mergulhar, mas não ali no meio da multidão, quer mergulhar sozinho, distante, num lugar afastado, mais profundo e perigoso. Depois do mergulho,  emerge e abre os olhos: vê uma mulher muito pálida com um nariz aquilino, o rosto de cera e os braços cobertos de pena branca. O seu rosto é muito triste e esta visão o toca profundamente (chora enquanto me conta). Associa esta imagem a um anjo branco que lhe traz à memória a imagem de sua mãe.

 

Na sessão anterior Giacomo me contara um episódio da sua infância: numa certa ocasião, seu pai, tomado de uma fúria raivosa, surrara tão violentamente sua mãe que a jogara dentro de uma caçamba de lixo. Os olhos tristes da “mulher abutre” lhe recordavam os olhos de sua mãe naquele dia.

As imagens neste sonho dispensam ulteriores comentos.  Em casos como esse, mais do que analisar as imagens, eu prefiro acercá-las, observá-las e deixar que se mostrem sob vários ângulos e perspectivas até que aconteça um “click” e a mensagem penetre de modo profundo.

A mãe de Giacomo, figura importantíssima na sua vida, foi “redescoberta” e reavaliada somente durante a terapia. Identificado completamente com a figura paterna, com um pai “duro” e poderoso, Giacomo desprezava e horrorizava tudo aquilo que, segundo ele, era sinônimo de fraqueza – em qualquer uma das suas manifestações – e, obviamente, para ele, o mundo feminino orbitava esse universo de fraquezas. Dos sonhos e lembranças que ele tinha de sua mãe, emergia lentamente a imagem de uma mulher dotada de grande sensibilidade; não obstante uma vida de sofrimentos, violências e opressões, a mãe de Giacomo tinha conseguido agir de forma digna no minúsculo espaço de possibilidade espressiva que lhe fora concedido, dedicando muito do seu tempo a obras de caridade e ao voluntariado. No inconsciente de Giacomo a imagem materna emergia  muitas vezes carregada de “numinosidade”, como se, aos olhos do filho, ela encarnasse o arquétipo da “mulher santa” (sóror mystica). Representava uma ilha feliz, um lugar incontaminado no seu vasto mundo subterrâneo, que, paulatinamente, vinha à tona como um “lugar ao qual retornar”, um ponto de apoio e uma esperança na sua vida atormentada, feita de violências e transgreções.

Grande parte da raiva de Giacomo tinha relação com as cenas de violência paterna que ele presenciara na infância, cuja vítima passiva e indefesa era sempre sua mãe. Ele pôde constatar isso de forma muito clara durante as suas primeiras experiências de respiração holotrópica.

Não foi fácil prepará-lo para a primeira experiência holotrópica, pois, se queríamos que o trabalho não falisse antes mesmo de começar, era necessário que Giacomo ficasse sóbrio por um período relativamente longo; do contrário, o trabalho poderia se tornar inoperante, o que obviamente desmotivaria e frustraria as suas espectativas. Na tentativa de mantê-lo sóbrio, o maior perigo a ser vencido era uma “incumbência” diária que cabia a Giacomo: comprar a dose diária de cocaína que o seu pai consumia. Tal “tarefa” o punha em contato com a droga e com o seu mundo, o impelia  a “não poder resistir à tentação”. Aquele foi um “rochedo” muito difícil de ser galgado, e, num certo momento, eu achei mesmo que fosse intransponível, especialmente por causa da total indiferença paterna, pois, embora Giacomo implorasse ao pai que o desobrigasse de tal “incumbência”, o seu pedido jamais foi atendido.

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O coração aprisionado

 

Quando finalmente Giacomo se manteve sóbrio pelo tempo necessário e foi capaz de participar de um grupo de respiração holotrópica, a  sua primeira experiência foi, sobretudo, física. Transcrevo algumas anotações que fiz na ocasião: “todos os músculos do corpo estavam rígidos e contraídos, a mandíbula estava imobilizada, completamente retesada, ele rangia os dentes numa careta de raiva e dor. Emitia sons que se assemelhavam mais ao “rosnar” de um animal do que aos sons humanos. Continuamente ele levava uma mão ao coração. Eu intervi pressionando levemente o tórax com um travesseiro e, no esforço de inspirar, Giacomo gritou; no começo o seu grito foi acanhado, dificultoso, mas, em seguida ele gritou cada vez mais forte, expressando, assim, muita raiva. Quando mais tarde falamos sobre a experiência ele relatou ter revivido cenas horripilantes nas quais seu pai espancava violentamenteele e sua mãe. Numa outra ocasião, ele fora surrado enquanto tentava proteger sua mãe. Toda a sua raiva – e ele a identificou como a “Raiva” que o acompanhara sempre – era dirigida ao pai. Tomar conhecimento de tal fato foi para Giacomo uma verdadeira “revelação”. Ele falou também sobre uma dor no peito e sobre a sensação de ter o coração aprisioando em algo “sombrio”; era parecido com uma gaiola que o mantinha confinado.

O coração aprisionado numa “gaiola”, ou “em algo sombrio”, é uma imagem (que, ao mesmo tempo, é também uma experiência física) relativamente comum  durante as sessões holotrópicas, sobretudo nos experienciadores do sexo masculino. Experiência física e imaginal que reflete e expressa de modo intenso a forte remoção da alma, da dimensão afetiva. O “coração” não é somente símbolo do amor nas propagandas e sugestões de presentes para o dia dos namorados, mas é realmente o lugar de todos os sentimentos positivos para com os outros seres humanos, não somente num relacionamento romântico, mas também na amizade, na irmandade, na maternidade. É o lugar do afeto, da com-paixão e do mais sublime sentimento religioso. O coração aprisionado é sempre associado a uma certa rigidez torácica que, oprimindo o peito, impede a respiração plena e forma “a couraça torácica”; essa verdadeira armadura retém o coração que pulsa e o sangue que escorre nas veias, o que, por sua vez, estagna e limita o fluir da vida verdadeira, a plena expressão das próprias emoções.

A tradição oriental chama a abertura do coração de “o chacra do coração” (Anãhata) o qual, segundo estas antigas tradições sapienciais, é um verdadeiro e próprio ponto cardeal na evolução da consciência, determinando o emergir de duas qualidades essenciais: a empatia e a com-paixão (qualidades imprescindíveis para quem exerce a profissão de psicoterapeuta). Nesta etapa, o eu começa a transcender os próprios limites egóicos e a descobrir a sua unidade com a dimensão interior coletiva da humanidade como um todo. A necessidade do outro é superada, abrindo-se para o amor pelo outro e para a possibilidade do amor universal (ágape) que é uma expressão mais elevada do eros: o amor espiritual. Nesta etapa, a consciência reelabora tanto a verdadeira relação com o mundo, com os outros, quanto o sentido profundo da vida que o eu, fundamentado na razão, ignorou.

A mandíbula e os dentes fazem pensar imediatamente na raiva. Na versão de nós mesmos mais atávica e instintiva, no mundo dos quadrúpedes, é, sobretudo, através do morder e do dilacerar que se exprime um instinto tão primitivo e essencial como o é a raiva. Quando o corpo fala durante as sessões holotrópicas e fala sobre a raiva, a linguagem mais comum é o ato de morder e a mandíbula contraída, retesada, dentes apertados, cerrados, que rangem. Mandíbula, dentes e também os punhos são os principais receptáculos da raiva no  nosso corpo, de toda aquela raiva e agressividade que durante a nossa vida jamais foi expressa.

Depois da sua primeira experiência holotrópica Giacomo foi invadido por um sentimento de grande tranquilidade e de liberação. Em seguida, houve um período de leve melhora que foi interrompido por recaídas na espiral da dependência-violência, uma das quais marcou a sua “falência espiritual”. Naquela ocasião, Giacomo não compareceu ao nosso encontro e nem mesmo me avisou que não viria. Passados alguns dias deste episódio, eu, finalmente, tive notícias suas; ele me telefonou do hospital onde estava internado: a polícia o “recolhera” das ruas onde ele se encontrava totalmente  inconsciente;  Giacomo só recobrou os sentidos no dia seguinte, num leito de hospital, e do seu triste fim, jogado na sargeta, não tinha a menor lembrança. Ele soube depois, lendo o relatório da polícia, que ele quase destruíra uma discoteca, tendo machucado muita gente (inclusive ele próprio).

Conforme vai crescendo o envolvimento com a substância (no caso de Giacomo, o álcool e a cocaína), até chegar ao estágio de dependência, a pessoa se vê diante de uma série de dificuldades e desafios. Este verdadeiro duelo arrasta a pessoa  ao limite extremo de sofrimento e perda de esperanças até que, num certo momento, ela se vê obrigada a depor as armas e se render (“falência espiritual”). É um doloroso momento de solidão, seguido pela tomada de consciência (daquele tipo de entendimento que é emotivo, não racional) que, contrariamente ao que se pensava, tanto a substância quanto o relacionamento ou o comportamento em questão não são a fiel expressão do cobiçado “objeto” do próprio desejo. Jung descreve bem a solidão que acompanha este momento tão particular: Para poder descobrir o que lhe dá suporte, quando ele próprio já não é o seu esteio, o paciente deve ficar sozinho. Somente esta experiência poderá lhe dar a base sólida e indestrutível.” 

Pensando na minha experiência, não concordo com as teorias psicológicas que são a favor da distância e da “neutralidade” do analista, que defendem a idéia do analista-espelho de tradição freudiana. No caso de Giacomo, em específico, o meu envolvimento e o meu conhecimento a propósito caminhavam de mãos dadas; não foram poucas as ocasiões em que, ao invés de empregar uma técnica ou lançar mão de uma “estratégia terapêutica”, eu me deixei guiar pelos meus sentimentos, por aquilo que se conectava com o meu interior. Hoje estou convencida que, o progresso do analisando ou a sua “cura” (palavra em desuso, mas que em alguns casos pode também ser utilizada) estejam diretamente relacionados com a empatia e o investimento afetivo do terapeuta na relação. Alguém poderá afirmar que não há nada de novo nisso, trata-se somente da velha história da cura através do amor. Num certo sentido, no momento específico da terapia creio ter vivido, empaticamente, uma batalha psicológica parecida com a que Giacomo viveu. Foram momentos de grande preocupação, desconforto e desesperança, momentos nos quais coloquei em discussão a minha opção por aquela terapia específica. Eu mencionei o meu sentimento de impotência a Giacomo, sobretudo no que dizia respeito às suas frequentes recaídas, e como um ponto de apoio à terapia, eu pedi a ele que começasse a freqüentar os alcoólicos anônimos. Acolhendo o meu pedido, Giacomo fez uma entrevista com o pessoal dos alcoólicos anônimos, mas não voltou para levar adiante o percurso dos doze passos. A falta de tempo foi a justificativa dada.

Em seguida, conforme a terapia evoluía as suas “recaídas” foram diminuindo, e algum tempo depois, tomei nota do seguinte sonho de Giacomo:

 

 Um mar manso, muito calmo, (sente-se muito bem). Passeia com Maria e deseja pescar. Ele tem a vara, mas não as iscas. Encontra uma amiga de Maria que está pescando, ela lhe dá as iscas. Ele as coloca no anzol e se prepara para começar a pescaria.

 

No sonho lhe é dado o que falta para começar a pescaria: a isca. “A pesca” é uma imagem simbólica arquetípica do relacionamento com o mundo emotivoque prosseguia em sintonia com o aprofundamento da terapia e com a redescoberta da figura materna; através da  “recuperação” de um universo feminino carregado de numinosidade, ele resgatou também o seu próprio mundo feminino interior.

Na realidade, quando Giacomo era criança, ele normalmente ia pescar com um tio; esta lembrança era ainda muito forte, e perdurava como uma das maiores alegrias da sua infância. Houve outros sonhos sobre a pesca que lhe lembravam a experiência da infância e que despertaram o desejo de reviver os momentos de silêncio transcorridos na margem dos lagos ou dos rios, os odores do campo e da terra úmida pela manhã. Ele queria voltar a pescar; há muitos anos abandonara esse passatempo, mas agora ansiava pelo contato direto com a natureza, sentia falta disso. Graças às  aulas de luta japonesa Giacomo estava fascinado pela visão da natureza e dos princípios da filosofia “zen” que lhe haviam sido explicados pelo seu maestro; assim sendo, ele também começou a ler alguns livros de filosofia oriental. Depois deste sonho, Giacomo voltou a ter em suas mãos, realmente, a vara de pescar.

Maria (naturalmente este não é o seu nome verdadeiro) era a namorada que Giacomo amava e com a qual tivera um filho; naquela época o menino tinha um ano de idade. Maria e Giacomo haviam se separado por causa das violentas e contínuas cenas de ciúme que Giacomo fazia quando estava sob o efeito do álcool. Por causa do seu curriculum pouco recomendável tinham sido banidas da vida de Giacomo as duas coisas que ele mais amava no mundo: ele estava proibido de se aproximar do filho e de assistir aos jogos de futebol (o ingresso ao estádio lhe era negado por causa de um grave caso de violência entre torcedores). Algumas vezes, Maria acompanhava Giacomo à terapia, e assim eu pude conhecê-la.  Embora ela o amasse, considerava definitivamente encerrado o relacionamento entre eles, só muito depois, quando Giacomo se distanciou do álcool, Maria permitiu que ele ficasse com o filho. Maria tinha feito faculdade e provinha de um ambiente social muito diferente do ambiente de Giacomo. A história de amor vivida com Giacomo e a criança nascida desta relação geravam um eterno conflito com a própria família. Ela e o filho eram para Giacomo o seu verdadeiro refúgio, a paz e harmonia que ele sempre desejara; ele sofria terrivelmente por causa desta separação.

Passados alguns meses, tendo em vista que Giacomo continuava sóbrio, ele fez a sua segunda experiência de respiração holotrópica. Segue a minha descrição: “experiência particularmente física; muito semelhante, mas mais intensa do que a anterior. Mandíbula retesada e travada, punhos fechados, tremores e espasmos. Giacomo range os dentes, gesticula e se movimenta como se travasse uma intensa luta corpo a corpo. Dá socos no ar e no chão, se remexe de forma violenta, com articulados e imprevisíveis movimentos do corpo todo. Os assistentes colocam travesseiros debaixo dos seus pulsos visando proteger as mãos; às vezes, devem segurá-lo com força para que, na fúria exasperada dos seus gestos, não se machuque durante aquelas três horas que, eu poderia definir, “de pura raiva”. Ele grita, insulta e fala palavrões, diz coisas incompreensíveis entre os dentes cerrados e, insistentemente, leva a mão ao coração. Ao final da experiência, Giacomo está exausto, mas relaxado e sereno. Ele diz ter sentido aquela que ele chama de “a grande Raiva”, fortíssima, alastrante. Conta ter lutado com seu pai, a quem insultava e dizia palavrões. Fala da dor no peito “aprisionado” e descreve a sensação experimentada: era como se “a gaiola tivesse sido despedaçada”. 

Segundo a psicologia de Reich, Lowen e Gaiarsa, a cada emoção corresponde uma preparação orgânica (muscular, cardíaca, respiratória), apta a externá-la, prevendo uma ação do corpo. A cada remoção corresponde, portanto, um “aprisionamento” da ação ou do gesto não manifestados que dão lugar a uma série de contrações musculares e restrição respiratória. Estas tensões formam o que Reich chama de “as couraças musculares da índole” que travam e impedem o livre fluir das emoções, da auto-expressão, da espontaneidade. Tal “rigidez de temperamento” esta enxertada na origem de muitos distúrbios psíquicos e de doenças psicossomáticas.

A ativação do inconsciente durante este tipo de experiências de autoexploração profunda provoca o despertar da memória corpórea e das experiências a ela associadas, comunemente não acessíveis à linguagem verbal. Estas reações físicas ativadas durante a sessão holotrópica possuem uma estrutura psicossomática muito complexa e têm as suas origens não somente no inconsciente pessoal, mas também no inconsciente arquetípico ou transpessoal. Algumas vezes representam as tensões e as dores da vida cotidiana do experienciador de modo ampliado; outras vezes, pelo contrário, estão ligadas à antigas vivências ou traumas pertencentes a estágios anteriores da sua vida. Outras vezes, ainda, comunicam – por meio da linguagem do corpo e das emoções ou imagens associadas a tais comoções – uma mensagem importante para aquela pessoa: uma profonda compreensão de algum fato significativo da sua vida ou de temas filosóficos ou existenciais de mais amplo respiro, universais, que – naquele determinado momento – se tornam atuais e requerem maior clareza.

A tensão física pode ser diluída de dois modos: o primeiro modo se dá através da catarse e da ab-reação (já muito conhecida por S. Freud e J. Breuer) onde a energia é liberada por meio do pranto, movimentos, tremores, espasmos, gritos, vômito. O segundo modo oferece uma diferente compreensão e representa um novo desenvolvimento na psicoterapia: as tensões que vêm à tona são “consumidas” por meio de “contrações musculares transitórias de duração variada”, liberando assim o organismo de modo realmente surpreendente, e eu diria muito eficaz. Estas manifestações físicas  são normalmente seguidas de um profundo relaxamento.

Após a segunda experiência de respiração holotrópica, as recaídas de Giacomo na espiral da dependência diminuíram significativamente, se reduziram também, de  forma notável, as manifestações de violência que o acompanhavam. Aquele período foi ainda marcado por outra mudança importante: Giacomo retomou o projeto do diploma de segundo grau; começou então, a estudar seriamente, sem interrupções, coisa que no passado não fora possível.

É desse período o seguinte sonho:

 

Uma casa (a dele) no meio do campo, onde há a sua estante de livros. Ele (Giacomo) vê um dos traficantes, um ex fornecedor de cocaína, que foge levando consigo alguns dos seus livros, Giacomo fica muito aborrecido.

 

 Este sonho é um marco importante no interior do seu percurso, pois representa a  conscientização sobre o verdadeiro significado da sua dependência e uma mudança na sua relação com a droga. Os livros entraram na vida de Giacomo juntamente com a terapia e simbolizam uma nova forma de conhecimento, ou seja, o entendimento emotivo que nasce do reencontro com ele mesmo. O efeito da droga tinha falseado, contaminado o contato de Giacomo com o seu mundo interior.

A abordagem psicológica transpessoal, cujas origens se encontram no modelo humanístico, centra a sua atenção especialmente na fragilidade e na insignificância da existência humana derivadas da separação do pequeno “eu” do “eu mais profundo, o Si-mesmo”, o centro espiritual interior que transcende o indivíduo.

Quando somos identificados com o nosso eu biográfico, a vida nos parece terrivelmente árida e vazia, priva de significado e de contato com os valores e princípios universais. O sintoma se torna então a resposta natural à falência do projeto existencial centrado no ego, na “separação”. Neste contexto, o processo evolutivo exige que se ultrapassem os limitados confins da lógica egocêntrica e que se abandonem as modalidades defensivas do eu a favor de uma crescente abertura na direção do mundo interior e da dimensão sagrada da existência.

Proseguindo na direção de uma consciência mais profunda de nós mesmos e do próprio sentir nos vemos diante de momento crucial: a rendição – sem a qual, sem que haja a entrega de si próprio, não pode ocorrer a transformação. 

Neste instante o que morre é a parte de nós mesmos que se identifica com os confins da nossa pele, aquela parte separada do resto do universo que age come fosse a protagonista absoluta da vida. Aquilo que morre é a percepção de nós mesmos como “entidades separadas”, abrindo alas para todos os elementos que, até aquele exato momento, haviam sido “estranhados” de nós mesmo. Somente quando abdicarmos do ego com as suas identificações, papéis e velhas seguranças poderemos nos abrir a esta nova consciência e entrar em contato com a “vida que flui dentro de nós” em toda a sua potência propulsiva e criadora. Este é o momento fundamental do processo de morte e renascimento descrito por Grof. 

Assim … para sempre

Na seguinte experiência holotrópica de Giacomo, escrita de próprio punho, emergem símbolos universais e intensas emoções que o tocaram  profundamente: 

 

A minha primeira visão foi de um órgão humano ensangüentado (cérebro). Em seguida aparece a imagem de um eclipse solar (total) que me turbava e incomodava. Vendo que o eclipse não desaparecia, primeiro comecei a praguejar contra ele e depois me pus a rezar para que ele fosse embora. Na próxima fase do eclipse total, o sol se transformou quase numa fenda, se limitava a um fio de luz; naquele momento começaram as “aparições”: Buda, Maomé, Nossa Senhora, um deus cabeça de elefante e outros tantos… eu sabia que devia continuar rezando para que as coisas seguissem o seu rumo.

De repente, eu senti uma força que, saindo da minha barriga ia subindo e me oprimia o pulmão; deixei que a força continuasse a subir e senti necessidade de massageá-la, o que me trouxe um grande bem-estar que não sei descrever ao certo; aquela sensação agradável se espalhava pelo corpo todo e intui que não precisava continuar rezando, pois eu era Nossa Senhora, Buda, Maomé, e, ao mesmo tempo, todos ele eram a minha pessoa, e não somente: eu era Tudo: Ar, Água, Terra, Cosmo, o Mal, o Bem, a Alegria e a Dor. O fato realmente curioso é que eu não procurava explicações, para mim não havia nada de estranho nisso tudo, pois em algum lugar dentro de mim, eu já o sabia. Há uma lei simples e natural que está escrita dentro de nós. Assim deve ser, assim foi e sempre será.

Procurei transformar em palavras tudo o que eu senti, mas é muito complicado; para entendê-lo vocês deverão sentir também, somente quando o experienciarem, saberão que eu tenho razão, pois tudo isso está dentro de cada um de nós, está dentro de tudo o que existe, sem que haja necessidade de outros esclarecimentos; já está tudo escrito em alguma lei universal.

As experiências holotrópicas jamais demandam uma ulterior análise ou interpretação, pois, considerando a grande profundidade destas vivências, qualquer tipo de interpretação  reduziria e limitaria o próprio fluir do processo psicológico. Às vezes pode ser de ajuda a amplificação de tradição junguiana, como, por exemplo, o relato de temas mitológicos análogos ou evocativos. O efeito desta experiência foi para Giacomo uma verdadeira revelação, uma experiência que o marcou profundamente, sendo prenúncio de uma verdadeira e própria transformação na sua vida.

Deus na forma em que O concebemos

 Após a última experiência respiratória lhe vieram em mente algumas lembranças: quando ele tinha cerca de oito anos de idade, queria que Deus lhe enviasse um sinal da sua existência. Pedia fervorosamente que Deus lhe deixasse algo na caixa do correio ou, então, que se fizesse sentir abrindo o portão. Dado que nada disso acontecia, ele se punha a blasfemar. Pensando àquele episódio, ele entendeu que não havia sido Deus a abandoná-lo, ma que fora ele a abandonar Deus.

No programa dos doze passos utilizado pelos Alcoólicos Anônimos, o terceiro passo – “Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebemos”– fala da imprescindível necessidade de se abrir mão do controle, de se abandonar, rendendo-se incondicionalmente a um Poder Superior.

Este passo abre as portas ao “eu mais profundo”, ao “Poder Superior”, a “Deus,  assim como o entendemos/o concebemos”. Esta expressão “Deus na forma em que O concebemos”, empregada no programa dos doze passos, enfatiza a unicidade de cada uma das experiências do divino, a importância da experiência que cada ser humano tem do Eu profundo, o Si-mesmo.

Esta experiência foi um grande estímulo para que Giacomo prosseguisse na leitura de alguns livros de filosofia oriental, tema que em parte ele conhecia através dos princípios da arte marcial. E foi a partir desta perspectiva, no fértil terreno da filosofia oriental, que Giacomo elaborou a sua experiência de transcendência dos limites do eu. O tema lhe interessa cada vez mais e será sempre um elemento importante do seu difícil percurso evolutivo. Como a pesca, a luta japonesa e a filosofia oriental já fazem parte da sua vida. Os encontros com Maria e o filho são cada vez mais frequentes e o comportamento violento parece pertencer ao passado. Ele não usa mais cocaíca e a atração pelo álcool diminui de forma considerável depois desta última experiência. Acredito poder afirmar que a experiência feita por Giacomo durante o trabalho de respiração foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para fortalecê-lo; nada mais “natural” e terapêutico do que as vivências que o seu “curador interno” selecionou e ativou no interior do seu vasto mundo subterrâneo, fazendo-as emergir sob forma de experiência emotiva, física e espiritual.

O período sucessivo na trajetória de Giacomo foi particularmente sereno, sendo assim, as sessões se limitaram a um encontro quinzenal. Giacomo frequenta com assiduidade a escola noturna, e atualmente está estudando para os exames e está preparando o trabalho de conclusão de curso. O episódio que, certamente, concluirá com chave de ouro essa etapa na vida de Giacomo é a obtenção do almejado diploma de segundo grau.

Segue a descrição, extraída das minhas anotações, da sua última experiência holotrópica:

Vê uma luz amarela. Tem a forma de uma esfera alongada, uma forma que lembra um olho. Pensa no eclipse da respiração anterior. Depois olha dentro de um pontinho vermelho que imediatamente se ramifica num infinito tracejado vermelho. É um ovo que lentamente se transforma num pintinho e ele é o pintinho: sente ao mesmo tempo sua própria fraqueza e a força que o anima para sair da casca. Finalmente ele a quebra e vem para fora sentindo as pernas que fraquejam. Ele vai crescendo lentamente e se tranforma numa águia. Voa alto. Sente-se livre, forte, poderoso. Vê o mundo abaixo dele. Voa sempre mais alto … Num certo momento, sente que começa a perder força e procura um lugar lá ambaixo, entre as rochas, onde possa se abandonar. Perde lentamente as forças e morre. Conclue com a ideia que acredita ter vivido a vida e que ela é assim mesmo, estas são as suas etapas: o nascimento, o crescimento, a liberdade, a velhice e a morte: “É esta a vida e ela é bonita justamente por isso. Eu a aceito.”

 

Também esta experiência foi um verdadeiro propulsor das ulteriores mudanças na vida de Giacomo, que o ajudaram a ter cada vez mais consciência de si mesmo e do seu projeto existencial. Logo depois disso, o álcool também já era algo distante dos seus interesses, enquanto o seu relacionamento com Maria e o filho se fortalecia e se tornava mais sólido. Depois desta última experiência holotrópica Giacomo teve o seguinte sonho:

 

Ele assumira um compromisso com várias crianças que lhe entregavam os seus desenhos e as suas músicas (escritas). Ele pensou que seria melhor se encontrar com um amigo músico para que ele o ajudasse a ler a música. Está de partida e vai ao aeroporto. Lembra-se de ter esquecido algo em casa (na casa paterna) e retorna. Vê algo que tinha sido deixado aceso (faz muito calor) e o apaga.

               

Giacomo adquiriu a capacidade de ler sempre mais profundamente dentro de si mesmo a sua íntima, e eu diria única e irrepetível, verdade. Considero que o escopo de uma terapia seja justamente capacitar a pessoa para decodificar uma linguagem que ela já possui; uma linguagem que lhe pertence desde sempre, a linguagem imaginal, da música e da poesia, a linguagem da alma. Consequentemente os relacionamentos de Giacomo sofreram diferentes fases e transformações; a relação com o pai, por exemplo, praticamente se inverteu. Deixou-se para trás a profunda identificação e submissão vivida inicialmente, e se passou à próxima fase que eu poderia definir  como sendo “adolescente” onde reinavam  raiva e contestação – contestação do papel paterno, da figura masculina de referência assim como do universo que o representava. Finalmente, numa fase sucessiva, Giacomo conseguiu identificar claramente o drama existencial ínsito na vida do pai, “o Gigante com os pés de barro”: o “Poder” que vacila; o enfraquecimento e a decadência física. Portanto, raiva e rebelião ainda, mas também, num determinado momento, compreensão e compaixão e a constatação que existia um finíssimo e duplo fio que o mantivera sempre ligado ao pai; a textura desse fio era definida pelo sentimento de raiva, mas também de afeto.

As sessões seguintes se limitaram a um encontro mensal. Como o salário de Giacomo era bastante modesto não lhe era possível cobrir todas as despesas. Eu procurei ajudá-lo no que foi possível, reduzindo ao máximo a minha tarifa; mesmo assim o compromisso ainda incidia de forma notável no seu orçamento mensal. Em casos como este, quando se notam melhoras substanciais, as sessões são espaçadas ou podem até mesmo ser interrompidas, antecipando o fim da terapia.

  Antes de concluir a terapia, foi possível compartilhar com Giacomo a obtenção do diploma de segundo grau; foi, na verdade, muito comovente quando, num de nossos encontros,  ele me presenteou com o livro de Ignazio Silone, o tema do seu trabalho de conclusão de curso. Giacomo chorou de emoção quando me entregou o livro, e devo admitir que, naquele momento, foi bastante difícil não poder expressar o que eu sentiva, mas eu não queria  tornar a nossa separação ainda mais difícil para Giacomo. 

Percebo que a descrição que faço destes “fragmentos de terapia” é bastante  reduzida e insuficiente se comparada à intensidade e complexidade daquilo que foi um autêntico percurso existencial. Limitei-me aos espisódios mais relevantes e de “possível” transcrição; por uma questão de espaço, mas também em razão da escassez do material registrado, deixei de lado alguns aspectos importantes do seu caminho interior na busca de si mesmo, um “si mesmo” aprisionado, perdido. Nesse percurso, as quatro experiências holotrópicas foram de grande importância, tendo em vista que, em determinados momentos, elas “liberaram a via” acelerando de muito o processo terapêutico.

Esta técnica terapêutica proposta por Grof, assim como outros métodos experienciais utilizados no âmbito transpessoal, nasce de uma exigência que se faz cada vez mais incisiva, ou seja, é necessário que haja maior integração teórica e ecletismo técnico no atual panorama dos estudos no âmbito psicológico. Pioneiros neste campo foram os trabalhos de C. G. Jung a Abraham Maslow, de John Perry a Stanislav Grof, de Roberto Assaggioli a Ken Wilber, e tantos outros. “Impulsionar com vigor” a evolução individual e coletiva é um dos escopos principais de tais métodos revolucionários, mas não é o único; a outra meta é aumentar a eficácia terapêutica superando os limites de cada uma das teorias e os limites da redutiva abordagem psicoterapêutica tradicional que não coloca em discussão nem a unilateralidade da atual visão da psique nem os próprios limites egóicos.

Na nossa cultura não existem estruturas oficiais que possibilitem “rasgar o véu de Maya”; estaexperiência, descrita pelos hindus, significa viver de forma profunda experiências emotivas e avançar para além das aparências. Através de tais vivências, podemos transcender a realidade ordinária, compensando, assim, a unilateralidade típica do mundo no qual vivemos; transcendendo, nos elevamos até as esferas transpessoais, à dimensão mais profunda da psique, fonte di significado existencial e de verdade para toda a humanidade.

Na cura das várias formas de dependência é indispensável oferecer à pessoa aflita a possibilidade de viver experiências que ativem e nutram o coração, favorecendo o acesso às profundezas do inconsciente. Sem esta possibilidade de transcendência qualquer tipo de abordagem terapêutica se revelerá redutiva e inadequada. A verdadeira transformação por meio do “spiritus contra spiritum” deve satisfazer a profunda sede da alma de superar os limites egóicos do homem  que é a causa daquele tipo peculiar de sofrimento que bem podemos definir espiritual. Não podemos satisfazer esta exigência através do estudo da teologia, da aprendizagem de dogmas, da oração ou da prática de uma crença religiosa. É necessário um percurso interior, uma experiência, a imersão nas profundezas da alma em busca  de um contato direto com o Mysterium tremendum, a força espiritual (que habita) em cada um de nós. 

À distância de um ano do término da terapia, a cada três meses, Giacomo me telefonava e marcávamos uma sessão para, como ele dizia, “me atualizar dos fatos”. Desta forma, tive oportunidade de acompanhar de perto a evolução do seu percurso. As notícias eram bastante positivas, como por exemplo, Maria e ele haviam reatado o relacionamento e se preparavam para irem morar juntos (de fato, naquele momento,  estavam à procura da nova moradia). Naquele ano Giacomo quitou todas as sessões atrasadas que não conseguira pagar nos períodos de maior dificuldade econômica. Durante o segundo ano ainda recebi alguns telefonemas seus, repentinos; no entanto,  não agendávamos novos encontros, somente conversávamos por telefone e ele me colocava a par dos acontecimentos mais importantes da sua vida. Um ano atrás, a última vez que eu o ouvi, as notícias eram as seguintes: o casal finalmente encontrara  moradia que era agora o lar dos três: de Maria, Giacomo e do filho deles. Giacomo abraçara a fé e se tornara um fervoroso seguaz do budismo mahayana. 

O homem biodegradável

 

Hoje, à distância de anos, a pergunta que me faço é: qual era o elemento que faltava na vida de Giacomo, que o distanciava de si mesmo, aprisionava o seu coração, e transtornara tão drasticamente a sua existência? E respondo com outra pergunta: o que faltava na vida de Giacomo era a transcendência dos limites abituais, a experiência de uma dimensão “outra”, diferente daquilo que ele reconhecia como “si mesmo”, seria, enfim, algo que pudesse restabelecer o contato com a fonte de significado da sua existência? Respondo confiante que sim: eram essas as peças que faltavam no mosaico da existência de Giacomo, mas não somente isso. Nessa reaproximação de si mesmo, Giacomo teve a ajuda de outro elemento determinante: a função de espelhamento desenvolvida na relação terapêutica. Quando falta interiormente o “centro da gravidade permanente” (Battiato), a percepção de si mesmo é aquela de uma imagem fragmentada, justamente como a imagem refletida num “espelho quebrado”. Esta é a vivência subjetiva típica de quem vai ao encontro das várias formas de dependência:  álcool, droga etc. A função de “espelhamento” no interior da relação terapêutica, o fato que somos “observados no fundo da alma”, “vistos” em profundidade, “refletidos” e “reconhecidos” por um olho atento e empático, pode se revelar uma experiência profundamente reparativa e curativa.

A atenção e o interesse verdadeiro de uma outra pessoa agem dentro de nós como o sol na primavera,  aquecem e acendem a vida interior. Quando o espaço de ação está impregnado de uma sincera atenção para com o outro, pode haver real troca de influências e transmissão de conhecimento, a vida começa a brotar e surgem as primeiras “variações” numa recíproca dança da criação: podemos nos imergir confiantes no leito do rio da vida e nos render à transformação. Somente então as coisas começam a acontecer…  e quando se alcança o ápice da recíproca influência, nos damos conta que  eu e o outro, eu e o universo somos criação contínua, que não existem coisas, existem somente processos, acontecimentos.

Durante o meu estágio formativo em respiração holotrópica me aconteceu uma experiência bastante curiosa: eu era a assistente de um jovem de cerca de trinta anos que me pediu para olhá-lo fixo no rosto com muita atenção durante todo o curso da experiência. Eu procurei atender ao seu pedido com afinco mesmo se, às vezes, durante as três horas da sessão holotrópica, o meu olhar se desviava atraído pelos barulhos da própria sala ou das experiências das demais pessoas que estavam ao meu redor. A luz da sala era bastante tênue e o rapaz tinha os olhos vendados, mas mesmo assim, quando o meu olhar se movia e eu parava de olhá-lo, ele  percebia a minha distração e dava sinais visíveis de sofrimento e de abandono. Eu imediatamente voltava à minha posição diligente e o olhava fixamente, então, ele se recuperava. Naqueles momentos, a sua face atrás da venda parecia iluminar-se; na verdade, a expressão do seu rosto continuou radiante mesmo após o término da experiência. Durante o compartilhamento, ele mencionou aquele aspecto particular da vivência emotiva – o fato de “ser olhado com atenção” – como uma das experiências mais intensas e gratificantes da sua vida, algo que sempre desejara no seu íntimo. 

O caso acima relatado é um exemplo de “pedido” de experiência relacional “corretiva” que pode ocorrer quando, durante a experiência holotrópica, se retorna ao local da ausência, a uma vivência anterior de privação que normalmente está ligada à infância. O que se pede, normalmente, é somente um simples toque com as mãos, um afago ou um longo abraço.

As experiências de transcendência dos limites espaço-temporais vivenciados durante os estado holotrópicos levam à desidentificação com o corpo, aquisição indispensável e etapa fundamental de todo percurso espiritual. Esta nova percepção de si mesmo – que na realidade é uma superação do “limite” – traz, intrinsecamente, um profundo sentimento de liberdade e a consciência (emotiva, não racional) de um “Si mesmo” não mais dentro dos limites da própria pele, não mais “separado”; o que se vê agora é um “Si mesmo” que, deixando para trás os papeis habituais, abraça a totalidade da existência. O novo “Si mesmo”, agora que ultrapassou a si próprio, talvez se encontre – pela primeira vez – “inteiro” e, ao mesmo tempo – paradoxalmente –  “além dos limites”.

Este tipo de experiência produz em quem a vive um efeito de “revelação”, normalmente a sua carga de “numinosidade” e sacralidade é muito grande, sendo, em minha opinião, um dos momentos mais transformativos do percurso interior. Uma vez elaborada e integrada na personalidade total a experiência vivenciada se torna um daqueles momentos na vida a partir do qual tomamos realmente consciência de “não sermos mais os mesmos”, ou que nos sentimos “inexplicavelmente renovados”. A “verdade” que emerge desta nova consciência é tão profundamente “ecológica” que é possível falar do nascimento de um  novo modo de sermos “humanos”: um ser humano que podemos definir “biodegradável”. Sendo, portanto, a experiência da transcendência dos limites espaço-temporais portadora de consciência e significado, por meio dela a pessoa se sente mais capacitada a se harmonizar com a natureza e com os próprios semelhantes; desta forma, a pessoa poderá assumir a tarefa existencial que lhe cabe, pois, uma vez “abatidos” e transpostos os limites, ela sabe e sente que pertence à Totalidade.

Assim sendo, o “Spiritus contra spiritum” junguiano não cabe somente contra a devastante provação do álcool, mas é valioso recurso também contra a alienação, o vazio, a fragmentação e a “separação”, a perda de sentido e valores, a indiferença. O spiritus como esteio diante de uma natureza cada vez mais devastada, como âncora num mundo freneticamente dilacerado. Tal recurso é, certamente, um antídoto curativo para Giacomo, mas talvez o seja também para todos nós neste particular momento do nosso árduo percurso individual e coletivo, desta verdeira aventura interior a qual chamamos de evolução.