O tigre e o vento a magia do corpo no processo de terapia

 

Virginia Salles, Roma

 

 

“Antes de chegar ao seu destino
você avistará as Sereias que enfeitiçam,
com o canto harmonioso,
todos os homens que delas se aproximam…

Lá as verá, sentadas nos rochedos,
enquanto a orla marítima pulula
de esqueletos humanos apodrecidos,
a carne se desfaz e os ossos enegrecem.

Mas você fugirá, e com cera,
cujo perfume lembra o mel,
tapará os ouvidos dos seus companheiro
para que não possam escutá-las.

Quanto a você, se quiser a música ouvir,
faça-se amarrar ao mastro do navio,
os pés e as mãos bem presos,mas os ouvidos livres
para que, ouvindo o canto das Sereias,
o êxtase possa invadi-lo.

Mas, se você implorar aos companheiros
que desamarrem as cordas que o salvam,
eles, com nós mais fortes, deverão apertá-las …”

(palavras de Circe soberana)

 

Transcender o eu

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Na época de Homero, Ulisses se amarrou ao mastro do seu navio para resistir e não ser destruído por aquele canto atraente e terrivelmente assustador, o canto das sereias, pelo fascínio perverso do Feminino. No mundo mágico, conforme relatam Ernesto De Martino, Mircea Eliade ou Lévi-Strauss, os nossos antepassados, – e ainda hoje certas sociedades tribais – eram amarrados (se amarravam) no chão a algumas pedras para que, quando alguma emoção intensa tomasse conta de seus corpos (deles) (ou “qundo uma emoçao intensa os tomasse”), a “a alma não se perdesse”.

Ao longo da história humana o eu foi se diferenciado (diferenciando?) da matriz inconsciente primordial, mas, por esta diferenciação – indispensável para a evolução da civilização – o homem pagou um preço bastante alto: a perda do “paraíso”, da totalidade e plenitude originária. Sendo assim, a conquista da consciência, ainda não consolidada para o homem primitivo (e nem mesmo para um Ulisses assustado), parece sofrer no mundo atual um destino bem diferente; quando constatamos que os seus limites no mundo atual são bastante rígidos (como o é também a sua filha predileta, a “Ciência”), é fácil perceber que a consciência se tornou para o homem moderno uma verdadeira prisão.

O nosso tempo se caracteriza, sobretudo, pela separação entre o ego racional e a unidade primordial com a natureza, pela perda da  participation mystique. Segundo Richard Tarnas, esse desmembramento dá origem à repressão e ao domínio da cultura masculina racional em relação ao princípio feminino enquanto instinto, emoção, fecundidade, Mistério, Natureza.

 Um dos paradoxos da natureza humana é que a exortação a deixar morrer o ego, um núcleo tão arduamente conquistado ao longo dos tempos, parta justamente das mais antigas tradições de sabedoria espiritual as quais justificam o conselho dado com uma vaga promessa:  “a salvação”. No seu interessante livro, intitulado “The passion of the western mind”,Tarnas descreve as várias etapas do percurso de desenvolvimento da consciência ocidental desde a Antiguidade até os nossos dias; fazendo uma análise das atuais e dramáticas consequências da “impermeabilidade” do nosso confim egóico, o autor mostra como a predileção tipicamente ocidental pela “separação” se apóie no paradigma da ciência o qual, em contrapartida, têm as suas origens no velho modelo newtoniano-cartesiano. Segundo Tarnas, a consciência atual, portanto, a nossa, é hoje testemunha do próprio declínio e parece desejar profundamente a superação dos seus limites. A aspiração mais profunda sepultada no inconsciente do homem moderno é sanar esta fratura e se reconciliar com o feminino interior. Reconciliação que, segundo Tarnas, sempre foi meta recôndita de todo o progresso intelectual do ocidente.  No seu livro intitulado “Como eu vejo o mundo”, Einstein nos presenteia com uma frase bastante emblemática dessa nova atitude do homem perante a sua própria consciência: “Para determinar o verdadeiro valor de um homem é necessário examinar  em qual medida e em que sentido ele já foi capaz de se libertar do eu”.

 

Lançando mão do modelo mitológico, Erich Neumann faz uma análise da  fenomenologia do nascimento da consciência e da sua evolução psicológica, com os seus possíveis desenvolvimentos; através deste estudo ele abre as portas para uma visão mais ampla da psique, já levada em consideração por Jung e que, sucessivamente, será intitulada “psicologia transpessoal”. 

 

 “O nosso objetivo não é somente demonstrar a relação que existe de fato entre o eu e o inconsciente, entre o pessoal e o transpessoal. Devemos compreender também a falsa interpretação personalística do psíquico como expressão de uma lei inconsciente que induziu de modo absoluto a consciência egóica do homem moderno a uma interpretação equívoca do seu próprio papel e significado. O nosso dever terá sido cumprido somente quando demonstrarmos em que medida esta interpretação errada – redutora do transpessoal ao personalístico – nasceu de uma tendência originariamente dotada de senso, mas logo depois, com a crise no processo de autoconsciência do homem moderno, perdeu completamente o sentido…

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E ainda “…A relação do eu com o inconsciente e do pessoal com o impessoal decide não somente o destino do indivíduo, mas de toda a humanidade”.

 

O termo “transpessoal” une a preposição “trans” – que no latino significa (aquilo que vai) “além”, aquilo que “transcende” – e o termo “pessoal”, que deriva de “pessoa”, isto é, “máscara” (na Antiguidade, eram as máscaras usadas pelo personagem numa atuação teatral). Jung utilizava o termo transpessoal para definir os territórios do inconsciente que contêm a herança espiritual da humanidade, os “arquétipos do inconsciente coletivo”. 

O elemento caracterizante da abordagem terapêutica transpessoal não é o  conteúdo,  mas sim o contesto no qual se opera. Independentemente do nível do “espectro da consciência” (Wilber), ou do “território esperiencial” (Grof) no qual se centra o processo terapêutico, o terapeuta transpersonale está ciente de todas as possibilidades existenciais e está disposto a seguir o cliente no seu percurso; o seguirá por meio de novas e mais amplas dimensões experienciais todas as vezes que se apresentar a ocasião certa (for necessario). Como afirma Peter Schellenbaum: “Uma psicologia que siga o sujeito humano em tudo e não transmita as limitações do próprio método converge para a mística”, ou, podemos dizer, quando se chega a certos níveis de regressão… para o “ritual mágico”.

 Na Antiguidade, entre gregos e romanos, por exemplo, o costume pregava a celebração dos devidos sacrifícios e das justas oferendas aos deuses, caso contrário, a ira divina seria atroz tomando à força o que era seu de direito, vingando-se com a irrupção de doenças e  desgraças. Sucessivamente, seguindo os passos de Jung, Hillman interpretou tais doenças como sendo o “retorno dos deuses” que foram esquecidos por nós; agora, por meio da doença, eles pedem para “vir à tona” e fazerem parte novamente da nossa vida. Toda patologização seria, portanto, uma atividade criadora. As forças intrapsíquicas removidas, por exemplo, emoções, traumas, partes nossas abandonadas durante o processo de civilização e socialização, poderiam bater à nossa porta; elas pedem para retornar através do sofrimento, de sintomas ou mais simplesmente bloqueando o nosso fluxo vital até chegarmos à terrível sensação de “não estarmos mais vivos”, a chamada “depressão”.

Durante a minha infância, a minha imaginação era aguçada incrivelmente pelos “altares” do Candomblé, montados para revenciar os “orixás” (divindades que representam as forças da natureza). Estes altares eram forrados de renda branca e adornados com os objetos que simbolizavam as divindades; para que elas pudessem se nutrir diariamente, costumava-se colocar, na frente dos objetos-símbolos, vasilhas de cerâmica com água e pratos com a comida preferida das divindades. A minha atenção era despertada, sobretudo, pelos gestos que acompanhavam estas ações cotidianas; eram gestos harmoniosos, feitos com a alma e com o corpo numa atmosfera solene,  que adquiria uma valência profundamente simbólica, transbordando daquele “algo a mais” que permeia todas as cerimônias e cada gesto ritual. Também a cultura indiana possui instrumentos coletivos, rituais e cerimônias cujo intuito é “integrar e elaborar” muitas daquelas experiências do “além”, experiências intímas e visiónarias no pleno reconhecimento do seu aspecto sagrado.

Durante estas cerimônias, os deuses são invocados, mimados, reverenciados, evitando assim a sua ira vingadora. Os estudos e pesquisas conduzidos no ambiente do Candomblé evidenciaram que, durante os períodos de “silêncio dos tambores” (no passado, tais rituais eram reprimidos pela polícia) houve um significativo incremento de achaques e doenças psíquicas: os deuses, irados, reeinvindicavam à força o que lhes fora negado.

Uma cerimônia é um rito de veneração, um ritual sagrado (o termo deriva de uma raiz sânscrita que significa “fazer”). Uma cerimônia implica, portanto, numa ação cujas origens estão nas profundezas sem tempo da psíque, na dimensão transpessoal e se coloca ao seu serviço; em contrapartida, a ação se externa no mundo da realidade encarnada e material, na qual o corpo se move e age. No gesto cerimonial corpo e alma se unem através de uma ação específica do corpo dentro um modelo psíquico transpessoal. 

 No mundo da consciência primitiva, ao lado do simbolismo dos vários  estágios mitológicos, descritos por Neumann, existem também vários outros símbolos, que correspondem à imagem psíquico-mágica do corpo. Emerge dos escritos de Jung o complexo significado da unidade psicossomática do arquétipo cujos aspectos são dois: enquanto o primeiro está estreitamente ligado aos orgãos físicos, o segundo parte das estruturas psíquicas inconscientes, primordiais. Escreve Jung:

 

O inconsciente é a psíque que, a partir da luz de uma consciência espiritualmente e moralmente luminosa, desce no sistema nervoso chamado desde a Antiguidade de “simpático”; diferentemente do sistema cérebro-espinhal, o sistema nervoso simpático (SNS) não governa a atividade perceptiva e muscular, não dominando, portanto, o espaço circunstante; ao invés disso, o SNS, sem orgãos de sentido, mantém o equilíbrio da vida; não só nos transmite – por vias misteriosas e através de estímulos simultâneos – o conhecimento da natureza íntima da vida de outros seres, como também irradia nela a sua natureza interior. É neste sentido um sistema extremamente coletivo, a verdadeira e própria base de toda “partecipation mystique”. 

            

            Escreve Neumann: “O inconsciente coletivo é o precipitado de todas as reações idênticas e originárias da espécie humana… A identidade constante das suas reações profundas que se manifesta nos instintos e nos arquétipos é correlata com a estrutura do seu sistema psicofísico, com a tensão entre os pólos opostos do sistema nervoso autônomo e cérebro-espinhal, entre a alma do ventre e aquela da cabeça…”

    

Reportando-nos à cartografia do inconsciente – traçada por Grof durante as experiências dos estágios regressivos – sabemos que, ao atingir territórios esperienciais de nível evolutivo precedente à formação do eu (nível perinatal), o inconsciente fala diretamente através do corpo. Nestes estágios tão primitivos e elementares, a psíque não pode ser percebida ou representada, pode somente manifestar-se.

Segundo o relato de Gurdjeff na sua autobiografia, na Transcaucásia (uma região da Federação da Rússia) ocorre um estranho fenômeno entre os sequazes de uma seita chamada yazidi: se é feito um círculo ao redor de um dos membros dessa seita, ele só poderá sair dali se apagarem uma parte do círculo, o que lhe oferecerá uma abertura, uma via de saída. Dentro do círculo a pessoa pode se mover livremente, mas se a obrigarem a  ultrapassar a linha do círculo ela cai num estado de “catalepsia”, estado que desaparece no mesmo instante em que a reconduzem para o interior do círculo. Este episódio é emblemático da força e da profundidade à qual pode chegar a linguagem dos “gestos” e dos “símbolos rituais” dentro de um contexto “sagrado”.

No seu livro intitulado O mundo mágico, De Martino descreve detalhadamente as várias etapas de um rito de “cura” que, conduzido por um xamanista, foi invocado a favor de uma parturiente; durante o rito, as dores do parto são evocadas através do relato simbólico de uma viagem do curandeiro pelo corpo da parturiente onde ele luta com os animais que personificam as dores. O êxito final é o parto. No mundo mágico descrito por De Martino, o eu da psíque primitiva não se separou ainda completamente da sua matriz primordial, o inconsciente. É como se o eu e o inconsciente vivessem num perene estado de indiferenciação, e num estado primitivo desse porte, a comunicação conta somente com o idioma dos “gestos mágicos”.

Acariciando os escombros

 

O relato de um percurso analítico é uma tarefa muito difícil, e sob certos aspectos, eu diria quase impossível. Tudo o que se escreve permanece – sempre  e apenas – um esboço delineado, um ensaio aproximativo, pois os momentos mais intensos, as mensagens mais eficazes, a própria essência da relação analítica passam através da linguagem não verbal ultrapassando, portanto, qualquer possibilidade de expressão através das palavras. Sendo também necessário, por uma questão de espaço, deixar de lado grande parte dos fatos, dos diálogos importantes e dos sonhos, faltará seguramente a idéia de continuidade do percurso terapêutico, com os seus saltos e repentinas pausas. É, portanto, bem claro os limites acenados, mas, sobretudo, o limite intrínseco a qualquer transposição escrita do inefável. Por conseguinte, partindo dessa dificuldade inerente, tentarei reviver e contar os momentos mais significativos e comunicáveis de um percurso de cerca de dois anos e meio de terapia (frequência de um encontro semanal) e de um relacionamento tanto profundo quanto limitado, tanto no tempo quanto dentro das fronteiras do espaço terapêutico.

A “cliente” sobre a qual discorro (também no âmbito transpessoal se dá preferência à palavra “cliente”) e que chamarei de Laura, tinha 42 anos de idade no início da terapia; é uma mulher inteligente, com formação universitária e satisfeita com a carreira profissional. Ao final do nosso primeiro colóquio, ela não confirmou se daríamos início à terapia, pois antes, me dizia, deveria avaliar outros cinco profissionais com os quais teria um primeiro encontro; somente depois disso é que faria a escolha do terapeuta. Pessoalmente eu acho a ideia ótima e alguma coisa me dizia que ela voltaria. De fato, cerca de uma semana depois, ela me telefonou para iniciarmos a terapia. Esta preferência era sinal que ocorrera uma transferência positiva e imediata, o que favoreceu e acelerou o percurso terapêutico.

Escolhi esse específico caso por dois motivos principais sobre os quais  discorrerei a seguir.

O primeiro motivo é porque considero o caso de Laura bastante representativo do tema aqui proposto, isto é, a força unificadora das cerimônias e dos rituais e a dinâmica propulsiva do inconsciente; esta última proposição de estudo – a dinâmica propulsiva do inconsciente – se devidamente seguida, tende a se manifestar e encontrar as próprias soluções originais, protegendo concomitantemente o eu, quando for necessário, da própria potência transformadora (o curador interno de Grof). Infelizmente, é comum que abordagens superficiais e redutivas interpretem mal tais soluções, distorcendo-as, e – o que é pior – desviando-as ou “suprimindo-as” por meio de medicamentos, patologizações etc. 

O segundo motivo, mas não menos determinante, é que Laura me proporcionou (“presenteou” com) um número muito grande de sonhos; ela me trazia de forma sistemática os seus detalhados sonhos (ela os trazia de forma sistematica), digitados e arquivados eletronicamente; esse fato facilitou em muito a reconstrução do seu percurso terapêutico.

No âmbito transpessoal, o termo “terapeuta” é usado no sentido da palavra grega original “therapeutes” cujo significado é “pessoa que assiste durante o processo di cura”  e não se refere a alguém que age de modo ativo sobre o paciente. Grof define o “curador interno” como sendo a tendência natural da psíque à autocura e chama o terapeuta de “facilitador” do processo inconsciente que é ativado pelo próprio cliente. 

O risco de inflação que, em especial modo, o psicoterapeuta transpessoal corre é claramente superior àquele no qual se imbate a pessoa que exerce uma profissão  como a psicoterapia, tão favorável às projeções. Na abordagem transpessoal o nível de  profundidade alcançável no percurso terapêutico é tão grande que, transcendendo o eu, chega ao nível perinatal e transpessoal da psíque (níveis “mágicos”) com uma linguagem simbólica/corporal própria e as suas poderosas manifestações. Em tais casos, o terapeuta corre o risco de se sentir, ele próprio, o “ativador” ou “provocador” de tais forças psíquicas, identificando-se com a “Personalidade Mana” (isto é, com a Personalidade Carismática) ou ainda com o “curador” etc.

Eu diria, portanto, que a qualidade imprescindível para o terapeuta que interage com semelhantes profundidades é, antes de tudo, a “humildade”, a consciência dos próprios limites e a “fé”; fé pensada como confiança nas potencialidades evolutivas e “vitais” do ser humano, potencialidade esta que, num certo sentido, podemos chamar de “autocura” do corpo e da psíque.

Quando eu conheci Laura, já diante mão ela me avisou que “não sonhava” nunca; no entanto, a partir do nosso segundo encontro, os sonhos começaram a “jorrar” do seu inconsciente. Digo “jorrar” porque Laura era uma analisanda cujo fluxo de sonhos me faz pensar num rio caudaloso pela força, cristalinidade e imponência. Através das imagens onirícas, Laura começou a explorar as lembranças que eram assim ativadas: a sua infância dolorosa com os seus recantos escuros, “sótãos e porões”, aparentemente esquecidos.

Laura havia se divorciado há pouco tempo, e o seu atual relacionamento era bastante manipulado por um homem que, fazendo um jogo duplo, enviava-lhe mensagens incongruentes, afirmando e negando, ao mesmo tempo, a própria relação entre eles. Este estado de incerteza e instabilidade emotiva a jogara num abismo de ansiedade e depressão. De imediato, eu havia notado em Laura uma excessiva racionalidade e um evidente constraste entre a dificuldade que ela tinha em  “decifrar” a linguagem emotiva e corpórea e a riqueza e profundidade das imagens oníricas expressas desde o início da terapia. As perguntas que a deixavam absolutamente desconcertada eram: “como você está?”, “o que você está sentindo?” ou “o que esta imagem provoca em você?” Laura não sabia absolutamente o que responder a tais perguntas. Era quase como se ela tivesse amputado da sua vida, o corpo, as “vísceras”, e consequentemente, o inconsciente em todas as suas manifestações; esse universo incônscio (com as suas divindades “iradas”) batia autoritariamente à sua porta, pedindo para entrar na sua vida.

Transcreverei alguns dos sonhos de Laura como ela mesma os digitara. Por uma questão de espaço, somente os diminui um pouco. Os sonhos serão intercalados ao longo do relato, come se a matéria diáfana dos quais são feitos fosse o pano de fundo, a trilha sonora das imagens do inconsciente.

Um dia Laura me trouxe o seguinte sonho, que inspirou o título deste capítulo:

 

Estamos num grande local subterrâneo onde, além de mim, há várias outras pessoas. Há também um casal que se ama realmente muito. O casal deve ser punido e, assim, a mulher é trancada numa prisão que se encontra num nível ainda mais baixo do nosso. O marido é um tigre… Há um pouco de confusão… eu não me lembro o motivo de tanto alvoroço, talvez porque eu quisesse libertar o tigre o qual parece ser duplo: há um tigre verdadeiro, um animal enorme, majestoso e nobre e há um “tigre-sombra”. O tigre dá um salto muito longo e, descendo, entra no espaço do cativeiro… de repente, o portão da prisão não está mais lá, desapareceu… O salto do tigre desencadeia uma verdadeira revolução no cárcere: a agitação e o caos são grandes… Alguém abre a porta… e uma torrente de água invade violentamente o subterrâneo, arrastando todos consigo. O tigre parece conseguir salvar a mulher e várias pessoas escapam, mas outras sucumbem. Eu me encontro perto de uma porta verdadeira pela qual a água escoa e passa um vento muito forte. Eu percebo que aquele ar é a minha salvação e a salvação de todos os que conseguirem respirá-lo, porque nos impedirá de afogar. Permaneço perto da porta e inspiro o vento come se fosse real.

 

É um sonho, cujas imagens límpidas e profundas dispensam ulteriores esclarecimentos, assim sendo, procurarei ao máximo evitar as interpretações nesta minha composição de uma análise; a riqueza e complexidade das imagens oníricas e da sua linguagem simbólica derivante são tão grandes que qualquer interpretação resultaria redutiva e ameaçaria “congelar” o próprio fluir do relato. Gostaria somente de ressaltar as últimas frases: “Eu me encontro perto de uma porta verdadeira pela qual a água escoa e passa um vento muito forte. Eu percebo que aquele ar é a minha salvação e a salvação de todos os que conseguirem respirá-lo, porque nos impedirá de afogar. Permaneço perto da porta e inspiro o vento come se fosse real.”

  No começo da sessão, eu orientava Laura para que, numa posição já estendida e relaxada, ela começasse a respirar de forma mais rápida e profunda do que o habitual; mantendo a respiração nesse ritmo por cerca de três minutos ela deveria ao mesmo tempo prestar atenção às sensações do seu corpo, à localização e profundidade do respiro e à vivência emotiva que emergia: às mensagens que o inconsciente revelava graças à consciência do respiro e do corpo. É bem clara aqui a referência à respiração no seu aspecto salvífico, como elemento “que preserva”, elemento de conjunção entre corpo e alma. Também no sonho a seguir, são evidentes as referências ao corpo nas suas valências reais e simbólicas.

 

Parece que eu estou bem,mas tenho um problema: de vez enquando algo se apodera de mim e me leva a fazer coisas sob as quais não tenho nenhum controle … por um instante vacilo, me vejo dividida: fugir e me esconder ou me mostrar como eu sou. Completamente transformada eu me distancio da multidão, vou para fora, ao ar livre … a máscara começa a fazer coisas estranhas, eu a tiro do rosto e a mantenho na minha mão, mas a máscara começa a se dissolver na parte inferior, primeiro a mandíbula. Está toda derretida, sobra somente a parte superior da cabeça, os olhos e os cabelos; então, eu acordo. Eu me sinto muito agitada…

 

Nas terapias que se baseiam nos princípios humanísticos e transpessoais a experiência corporal é reavaliada ganhando um papel de destaque no interior do trabalho terapêutico. Uma das expressões do sofrimento psicológico é a perda do corpo, e no caso de Laura isso era muito evidente. Sendo o corpo o elemento de conjunção, a ponte entre o mundo interno e o mundo externo, perder a sensibilidade corporal significa se isolar dos outros e da realidade. A prova que também nós pertencemos ao mundo instintual, ao mundo da natureza, se faz patente na experiência graças ao eu corporal que pode ser ativado através do respiro, do som da voz, dos gestos, dos movimentos. Graças a este tipo de consciência, emerge um novo tipo de conhecimento o qual – não podendo se expressar verbalmente – recorre à linguagem corporal para dar voz diretamente a qualquer tipo de fato: pessoal, arquetípico ou transpessoal.

 

“Um rato sai do congelador e suja com os seus escrementos uma folha de papel quadrada e  branca. Sinto repulsa”. 

         

 Durante a terapia, as imagens simbólicas mais significativas começam a se manifestar somente quando o recipiente terapêutico oferece determinadas seguranças; tais seguranças caminham lado a lado com o aprofundamento da relação terapêutica e com a criação de um espaço seguro que garanta um retorno à  fonte, um regresso àquela nudez primordial auxiliante no contato com o “poder dos arquétipos” e a sua benção

O sacrifício que se exigia de Laura era a dolorosa renúncia à sua racionalidade, ao seu implacável e tranquilizador controle; Laura deveria abdicar da garantia que obtinha quando afirmava que “nada mudaria;  ela não seria pega de surpresa na vida ou jamais se depararia com acontecimentos incontroláveis ou, ainda, que “tudo estava bem.” Desta forma, o sacrifício que Laura tinha diante de si era, em suma, o abandono das suas velhas e habituais modalidades de adaptação em favor de uma abertura que a conduziria diretamente à fonte da sua própria energia interior.

 

Estou na cidadezinha natal de meu pai. Estou passeando com um amigo pela  rua principal, numa descida… de repente, a rua começa vir abaixo, está ruindo… ao seu redor há somente um grande vazio, um tenebroso precipício… ao longo do trajeto há um homem que, com a sua presença, impede a minha passagem, não me deixa prosseguir. Acordo assustada.

 

Numa colina, reencontro as jóias de família dentro de uma casa … vejo perto de nós o clarão de um incêndio. Percebo que a casa está queimando e corro para salvar as jóias, consigo achá-las e tento escapar… o fogo avança mas eu estou calma, sei que conseguirei me salvar. Acordo agitada.

 

Estou lendo um livro muito bonito sobre a violência no Iraque. Na capa há a foto de uma pessoa e uma vela acesa. Há um homem muito bravo e a sua raiva era por causa do título do livro que eu lia de Dacia Maraini: “Escuridão”.

 

Fora está se formando uma presença negativa, feita de sangue, talvez seja o diabo… A coisa negativa pinga sangue até formar uma cruz no pescoço de uma mulher que dança e tem olhos grandes e escuros. O sangue vai descendo pelo pescoço da mulher desenhando-lhe um grande “X” dos ombros até o peito; ela compreende que vai morrer, começa a gritar e se torna cada vez maior dentro daquele “X” que agora parece sufocá-la.

 

Estou dentro de uma casa, parece uma daquelas casas sulistas, da época da independência norte-americana. Na casa há dois grupos de moços: o primeiro grupo, do qual eu faço parte, procura petrólio no jardim; o segundoo grupo procura e prepara os soldadinhos. É tudo muito perigoso… ouvimos então o barulho da água que escorre: é grande o volume de água que desce da colina na direção da casa… nos damos conta que a água não destruirá a casa mas se deterá no jardim… Compreendemos que ali há petrólio, estamos contentes e exultamos.

 

Por meio da linguagem onírica e da utilização da respiração, o diálogo com o incosciente favoresce a ativação e a liberação de energias potentes, antes aprisionadas nas profundezas do ser (a água que flui, a água torrencial, o petrólio…) prontas a serem transformadas (o fogo…). Quando a energia bruta se desloca na direção da luz, procurando se unir à consciência emergente através da imagem, ela pede para ser contida (espacialmente e afetivamente) até que se torne consciente o suficiente para poder ser expressa em palavras. Este movimento do mundo arquetípico que, descendo na direção da manifestação, exprime toda a sua tensão na tentativa de realizar-se, nos arrasta pelos caminhosos tortuosos do sofrimento mais profundo, nas regiões depositárias das nossas feridas ainda vulneráveis, sem defesas, em oposição àquelas modalidades “esquivas” e um estilo de vida que não estão mais harmonizados com as intenções inconscientes.

Na maior parte das vezes, a minha atenção estava voltada a mim mesma, isto é, às emoções que os sonhos e mensagens não verbais de Laura despertavam em mim. Desde o início, havia alguma coisa que me machucava, mas eu não era capaz de defini-la; eu a sentia como uma ferida profunda e dolorida mesmo já nas primeiras sessões, antes que os sonhos e lembranças de Laura trouxessem à tona imagens de violência exercida, sobretudo, pelo universo masculino contra o feminino infantil, impotente e inerme. Para além das interpretações em termos simbólicos da excessiva racionalidade de Laura em desvantagem do mundo emotivo nascente, frágil e ainda inseguro, havia  alguma outra coisa que tinha dificuldade em se manifestar, chocando-se com a ferrenha oposição da inicianda.

 

Alguém está tentando me roubar na minha casa, é uma mulher e está escondida no escuro. Eu começo a lutar, consigo pô-la para fora de casa. Ela praticamente está fora, mas não quer ir embora e se agarra com uma das mãos ao batente da porta, mais de uma vez eu bato a porta com violência contra a sua mão e procuro esmagá-la …

 

Neste sonho, a oposição “ferrenha” de Laura se expressa por meio da figura de mulher que deseja entrar, violando a sua intimidade; é evidente aqui a associação da intrusa com a analista.

 

Na cidadezinha natal de meu pai há uma festa. Duas mulheres devem ser eleitas rainhas… duas mulheres são escolhidas para viverem uma violência. Elas morrerão e eu sou uma delas. Seguro pela mão a outra mulher escolhida e fugimos pelas ruas da cidade…

 

Estou numa casa que não conheço. Num dos cômodos há um fantasma. Eu posso vê-lo. Sou uma criança e tenho medo. É Natal… Todos têm medo do fantasma que está na casa. Volto para casa e sinto a dor do fantasma, ele precisa ser ajudado.

 

Tenho uma grande mala azul marinho; num sofá empoeirado está a mala dura de meu pai. Eu a tiro dali para dar lugar à minha mala.

 

Os nossos pais são os primeiros portadores das projeções do Eu. Quando os complexos associados a estas projeções não são integrados na vida consciente, permanecem normalmente como verdadeiros “pólos de atração” tendo suas raízes, carregadas de energia, em tais profundezas (os complexos autônomos junguianos). Tais complexos que, agem em diferentes níveis do inconsciente, possuem uma tonalidade afetiva que corresponde a uma determinada temática arquetípica e funciona como “calamita” para outros temas análogos; em contrapartida, tais temas. que pertencem a estágios diferentes da vida da pessoa, se sobrepõem e se misturam (fundem?). É bastante frequente que os vários níveis de experiência (biográfico, perinatal, transpessoal) se manifestem simultaneamente unidos por um tema comum que possui uma determinada tonalidade emotiva, por exemplo, o abandono, a solidão, o combate, a violência. Grof os denominou sistemas COEX (sistemas de experiência condensada): “Um sistema COEX é um reagrupamento dinâmico de lembranças (e material imagiantivo a eles associados) pertencentes a vários períodos da vida do sujeito, tendo como denominador comum uma forte carga emotiva do mesmo tipo, uma intensa sensação física do mesmo gênero ou o compartilhar alguns outros elementos importantes”.

 

Uma jovem desesperada porque uma criança foi assassinada… Os pais não acreditam nela até que a mãe vê um homem que está realmente tentando matá-la. Mãe e filha começam a lutar com o assassino. Elas têm armas, são facas grandes e há um machado, mas o homem é astuto e procura fazer a filha golpear a mãe. Acordo angustiada.

          

Quando complexos de tipo paterno não são integrados na vida pessoal consciente eles podem permanecer latentes nas profundidades do inconsciente num “nível magico” (não verbal) não sendo possível, portanto, que se expressem em palavras. Nestes casos, também o verdadeiro “Si-mesmo”, o Eu mais profundo (pessoal), – que, na pessoa sofredora, é incapaz de se exprimir em decorrência da perda de confiança e da dor – vive, a nível transpessoal, bem próximo das raízes “mágicas” (do Si-mesmo). Não podendo encarnar-se e desenvolver-se no mundo externo, vivenciado como ameaçador, o Eu mais profundo mantém intacta a ligação com as suas raízes transpessoais e o seu “centro escondido” (“o esconderijo secreto”), ainda inexpresso, mas extraordinariamente vivo. Num certo sentido, considero tendencialmente “místico” este tipo de posicionamento psicológico.

 

Uma mulher está em perigo, ouço ruídos de animais ferozes, são rugidos. Nas costas da mulher se abre uma porta e correm para dentro alguns homens perseguidos por um crocodilo. O crocodilo ataca e os devora. O corpo da mulher está na boca do crocodilo… Acordo angustiada.

 

A descida ao mundo inferior, à terra-útero, marca o início de uma regressão e de uma alteração da consciência que clama pelo “sacrifício da luz” e por um tributo pago pelo eu. A consciência se abaixa além do “mundo dos opostos”, além do mundo como estávamos acostumados a concebê-lo, e se eleva (no mundo do inconsciente os opostos coincidem), abrindo-se aos cumes espirituais. A boca do crocodilo é símbolo do útero que engole, do acesso (perigoso) ao nível perinatal (antes do nascimento). Ser engolido representa um retorno à origem, uma volta ao útero, a uma existência anterior à formação do eu, à “separação”. Esta passagem representa também uma abertura à consciência do além e às experiências estáticas. É uma metáfora daquilo que a psicologia define como sendo uma profunda regressão, base de toda e qualquer  “participation mystique” e que favoresce  a união entre o céu e a terra, o espírito e a matéria.

 

Estou na cama com meu marido, professor universitário. Sinto muito medo, ele é morbido: ele me toca e se retra; ele me toca levemente os pulsos, mas eu sei que ele quer abrir as minhas pernas. Estou aterrorizada porque, se ele soubesse que eu sei aquilo que ele quer fazer, ele me mataria. É preciso que eu não saiba, devo fazer de conta que eu não entendi.  Ele não pode perceber que eu sei e que eu entendi tudo. Tenho muito medo de ficar no escuro com ele… voltei a ser criança, sou uma menina e estou sendo perseguida por um homem… corro na direção da primeira casa e toco a campainha. O homem que me persegue está perto, ninguém me abre a porta. Estou aterrorizada porque o homem está muito perto… subo numa árvore, vejo um buraco e me escondo ali… prendo a respiração… olho o buraco que parece uma toca, acho que seja grande o suficiente para uma menina pequena como eu. Abrigando-me dentro da toca, eu me aninho como se eu fosse um feto.

 

Por mais cheio de energia e, portanto, por mais necessário que seja ao desenvolvimento do sujeito, um mundo emotivo ainda indiferenciado, obscuro e insidioso pode representar uma ameaça para um eu ainda incipiente; pode sobrepujar um eu que ainda não seja suficientemente forte para enfrentar a potência arquetípica que está emergendo do inconsciente. Quando, durante o processo de terapia chega-se a este nível existencial, aos chamados “territórios esperiênciais” de um eu regredido até as transcendências (a transcendencia?) de si mesmo, é necessário contar com a presença de um “recipiente” seguro que ofereça a oportunidade de experimentar a energia transpessoal em toda a sua potência, em condições suficientemente protegidas. Em várias ocasiões, eu me perguntei se a profundidade do meu relacionamento com Laura fosse suficiente para dar suporte e conter este tipo de regressão; diante de tal interrogação não consegui chegar a uma resposta exata, mas a tranqüilidade que eu sentia com respeito aos fatos que se manifestavam diante dos meus olhos era, para mim, mais do que eloquente. Me limito a observar os eventos, me calo dentro dos seus sonhos… me sinto confiante, difícil definir… mas tenho confiança.

Ao longo da minha experiência clínica, observei em alguns iniciandos o que Jung chama de “instinto para o transpessoal” e Gurdjeff define “fator espiritualizante”, uma dimensão profunda estético-religiosa capaz de expandir a compreensão daquilo que geralmente parece incompreensível. Laura possuía de modo evidente o “fator” de abertura e atitude para com a consciência das coisas da alma. Considerei que poderia ser de ajuda colocar em ato um ritual capaz de favorecer o ingresso nas profundezas atemporais dentro de si, oferecendo, ao mesmo tempo, um recipiente seguro diante da potência ameaçadora do inconsciente.

Expus à Laura o significado das cerimônias, a linguagem simbólica “religiosa-ritual” e a conexão entre corpo e alma, sugerindo-lhe de imaginar, criar ela mesma, por meio de gestos, um possível ritual que expressasse os episódios que iam se manifestando; um ritual que contivesse e favorecesse o fluir da energia pelos diferentes níveis de consciência. Feita a sugestão, prometemos refletir sobre a proposta feita para, eventualmente, colocá-la em prática durante os próximos encontros.

Na sessão seguinte, mesmo se a sugestão feita lhe agradara, Laura ainda não tinha conseguido pensar num ritual que fosse seu. Nesse meio tempo, as imagens dos sonhos haviam começado a adquirir uma tonalidade cada vez mais pessoal, e por algum tempo, não voltamos a falar sobre o assunto. Tanto o porão da casa onde Laura passara a infância quanto o aroma do vinho (quando ela era criança ia com seu pai até aquela parte da casa para engarrafar o vinho) eram cada vez mais freqüentes nas suas lembranças e nos sonhos cuja sensação transmitida era um misto de ansiedade e inquietação.

Algum tempo depois lhe falei da Respiração Holotrópica e, de imediato, Laura se mostrou muito interessada, manifestando interesse em partecipar de um grupo olotropico. Ela não fez anotações da sua primeira experiência o que è, sem dúvida alguma, um inusitado, sobretudo por se tratar dela, sempre tão diligente e precisa nas “tarefas de transcrição” do seu percurso interior. Por outro lado, tendo eu considerado a experiência bastante importante e significativa, achei por bem tomar algumas notas que agora transcrevo:

“Experiência muito intensa (necessidade de uma ulterior elaboração durante a sessão individual). Laura se encontra no porão da sua infância, reconhece aquela atmosfera, a temperatura, sente os odores… Repentinamente sente uma dor intensa nas mãos, nos pulsos que vai até os cotovelos… tudo isso a assusta muito… grita… sente que tem entre as mãos um pênis ereto.

Quando a experiência acabou, pedi a Laura para anotá-la (a transcrição pode ser de auxílio na elaboração), mas achei que ela não o faria.”

Durante os estados não ordinários de consciência que são ativados através de meios variados, entre os quais se coloca a respiração holotrópica, algumas pessoas revivem o próprio nascimento, a luta pelo canal do parto, ou então o estado intra-uterino que é descrito como uma experiência de “beatitude oceânica”, um momento de bem-estar absoluto, liberdade e expansão. Algumas pessoas conseguem até mesmo colocar-se em conexão com aquilo que Grof define “memória celular da concepção”; a descrição de tal memória fala de uma específica, intensa emoção: a profunda e difusa dor che que sentimos quando tomamos a forma humana. 

Os grandes sistemas espirituais afirmam que a separação da nossa natureza divina, do nosso “Si-mesmo” profundo é a nossa ferida existencial (o nosso “pecado original”); lentamente esta separação se transforma numa profunda saudade e num impulso urgente a experimentar novamente “o Todo”, um impulso que nos impele na direção de uma experiência não bem definida de unidade e liberdade. O momento da concepção é vivido como a perda da liberdade e unidade originárias, uma dor intensa, a dor de estar “encarnado”, “capturados” dentro da armadilha de um corpo individual e material. Segundo o que emerge de tais vivências, a passagem pelo canal do parto incrementa ainda mais este sentido de delimitação e confinamento numa dimensão corpórea. Desta forma, o nascimento é uma passagem, um “portal” que partindo de uma dimensão espiritual (transpessoal) se abre para o mundo material (pessoal).

É significativo o fato que estas descrições e dados, basedos na experiência de um número cada vez maior de pessoas, sejam ainda tão pouco considerados ou até mesmo ignorados no âmbito da psicologia “oficial”. Talvez isso seja um claro indício da resistência que a nossa cultura opõe, de modo ferrenho, a qualquer outro tipo de experiência que possa vir a ameaçar as nossas “certezas” e os nossos “confins”, os confins da consciência egóica; nesse processo de rejeição total, a oposição vai ainda mais longe e nega qualquer tentativa de superação destes mesmos limites: eis que surge o nosso Ulisses absolutamente amarrado por uma infinidade de nós cegos e … ouvidos cerrados para o mundo… 

No que se refere a “memória celular da concepção”, se consideramos também as descrições dos percursos espirituais na literatura mística, podemos concluir que começamos a nos separar dolorosamente do oceano primordial desde a concepção, quando a nossa essência começa a “encarnar-se”, distanciando-nos, assim, das raízes espirituais. A condição de “separação”, a “expulsão do paraíso”, com todo o sofrimento que isso comporta, será – de agora em diante – parte integrante da nossa condição humana. Afirma Laura Boggio Gilot: “As teorias da saúde mental e os temas da saúde social devem estar imbuídas de uma predisposição que as leve a considerar um diagnóstico diferencial entre o sofrimento psicodinâmico (ligado às vicissitudines interpessoais) e o sofrimento espiritual (ligado à separação do eu do Si-mesmo, da mente da alma). Parece que, hoje, um grande número de recorrências à psicoterapia bem como o contínuo aumento das experiências de “emergência espiritual” dizem respeito justamente a este tipo de sofrimento existencial: não se trata mais de um tratamento para “doentes”, mas de um tratamento para todos aqueles que acalentarem a valiosa aspiração existencial e moral de sarar, de se libertarem de um tormento que nos caracteriza enquanto seres humanos – um tormento que, no atual momento da nossa evolução, parece ser possível superar.

Se na nossa vida pessoal, todos somos (fomos) vítimas de “abusos”, o mundo surge diante de nós como algo terrivelmente hostil e ameaçador; assim sendo, a solidão existencial é cada vez mais profunda e dolorosa, atingindo graus de sofrimento e desespero dificilmente suportáveis. 

 “Abuso” significa a invasão da nossa integridade física, sexual, psico-emotiva e espiritual. Significa a violação do nosso espaço, da nossa “sagrada” individualidade e unicidade, uma intrusão ativa nos confins que nos definem como seres humanos. São estas fronteiras que, delimitando nós mesmos do resto do mundo, confirmam a nossa identidade, nos protegem das influências do mundo externo; os limites fronteiriços determinam ainda a relação que cada um de nós tem consigo mesmo, com as suas próprias raízes espirituais e com tudo o mais que o circunda.

Uma vez separados da nossa “natureza divina”, se o mundo (o qual, na maior parte das vezes, é representado pelos nossos pais, os primeiros a nos dar as “boas-vindas”) não nos acolhe amigavelmente, mas, pelo contrário, é hostil, invasivo e violento, permanecemos como “suspensos”, “desencarnados”, vivemos numa espécie de limbo, vagamos por uma terra de ninguém.

Depois da experiência de Respiração Holotrópica, era comum que (entre outros sonhos) Laura tivesse (teve) um “sonho dentro de um sonho” dentre os quais trascrevo a seguir um em particular: (que transcrevo a seguir:)

 

Sonhei que eu precisava escrever um sonho. O sonho é este: “repenso a minha infância, me revejo menina, eu dava sinais evidentes de uma infância difícil: estava triste, muda, assustada, meus comportamentos eram estranhos. Como é possível que ninguém tenha percebido nada? Por que ninguém me ajudou? Os sinais da violência que eu sofrera eram claríssimos, eu fora violada…” Uma mulher jovem me apresenta um homem idoso. É seu pai, ela o olha com ternura, lhe acaricia as mãos, diz que quando era jovem fora mau, mas agora é um homem bom, um pobre velho à beira da morte. Ele curva a cabeça sobre um ombro e recebe com satisfação os afagos. Eu toco a mão dele, quero escrever o sonho.

 

Já sou adulta e estou parada na frente da casa onde eu morava durante a minha infância. Tenho medo e me pergunto se devo ou não descer até o porão. No final eu acabo descendo. Chegando ali, no começo está tudo escuro, depois eu vejo uma luz fraca … ouço os passos de alguém que se aproxima. Não posso deixar que me vejam porque eu não moro no prédio: estou ali sem permissão… no passado eu tinha morado naquela casa e há algo que eu quero descobrir. Chega alguém, me escondo e tenho medo que possa ouvir a minha respiração ofegante. Estou com minha irmã e peço para ver escondido o porão porque alguém não quer. Entramos, está tudo sujo e empoeirado, há uma grande quantidade de objetos velhos e quebrados; está tudo empilhado… minha irmã e eu revistamos aquelas enormes pilhas de objetos amontoados, mas não achamos nada, eu me deparo com outras coisas velhas, é uma desordem sem fim, e continuo a revistá-las. Por fim, eu paro. Como minha irmã e eu estávamos sujas e empoeiradas, se saíssemos daquele jeito, as pessoas que não queriam que entrássemos ali, perceberiam na hora onde havíamos estado. Então eu sugeri a ela que tirássemos as nossas roupas e as vestíssimos no avesso, assim pareceríamos limpas.

 

Estou numa espécie de subterrâneo, é um lugar muito perigoso. Parece um dos círculos do Inferno de Dante: as crianças estão sem roupas, e embora procurem se esconder, elas são descobertas; arrancadas de seus esconderijos voltam a ser seviciadas. As condições em que se encontram as crianças são lastimosas, elas sangram, se lamentam de dor e estão muito assustadas… Quem chega àquelas condições não consegue mais se defender… o lugar é realmente medonho. Tenho vontade de encontrar alguém que eu desejava conhecer, mas vejo somente pessoas horríveis. Minha irmã está em apuros e eu quero ajudá-la.

 

Estas imagens impressionaram profundamente Laura, e, a partir daquele sonho, ela começou a ouvir um lamento; era o lamento de uma menina que se fazia ouvir de dentro da sua barriga e que Laura reconheceu como sendo ela mesma, quando pequena.A batizou imediatamente com o diminutivo do seu nome: “Laurinha” (“assim a chamava seu pai”). A menina grita; é um grito desesperado que pede algo, mas ela não consegue entender “o que” ela peça ou queira. Na próxima sessão Laura me traz uma foto de “Laurinha”; era uma foto dela, tirada por volta dos seus 4 ou 5 anos de idade. Daquele momento em diante Laura começa a dialogar com Laurinha; a menina da foto lhe faz acusações e a instiga a “procurar a verdade”.

Sucessivamente, Laura me conta sobre a conversa que tivera com Laurinha, que agora se tornou uma foto emoldurada num belo porta-retratos. A menina lhe pede ajuda, pede para tirá-la de onde está (se refere ao sonho da noite precedente, ao subterrâneo onde se encontrava com outras crianças violentadas e feridas). Laura é perplexa com tudo aquilo, mais de uma vez me pergunta se tais fatos… a menina que grita dentro da sua barriga… são “normais”. Eu lhe respondo que Laurinha vai nos prestar uma ajuda valiosa, ela  representa a sua parte emergente: Laurinha “conhece” aquilo que a Laura adulta ainda não é capaz de “conhecer”.

O grito de Laurinha, antes que ela tomasse forma e pudesse ser identificada com a própria foto que a retratava ainda menina, provinha “da sua barriga”. A barriga é a sede das “vísceras”; tanto no sentido literal quanto no simbólico, ela significa o mundo instintual. No homem primitivo, assim como na criança (na qual prevalece a dimensão inconsciente), a região do ventre, com a sua carga de vida vegetativa, é particularmente sentida como recipiente da “verdade”. É digno de nota o fato que, nas manifestações físicas emanadas durante os estados não ordinários de consciência, emerjam normalmente do ventre, quando se vêem “libertadas”, as lágrimas mais profundas e as dores mais antigas. Isso me faz recordar que no Japão, quando os samurais são treinados para se tornarem guerreiros valentes, a primeira tarefa exigida é que fixem a mente na parte inferior, no ventre, dois dedos abaixo do umbigo, no centro chamado “hara”, local do nosso corpo que se encontra além do tempo. Se durante um combate a atenção é colocada no “hara” antes que o adversário ataque, o lutador já conseguiu prever o ataque, estando pronto, portanto, para a defesa, graças ao contato com aquela parte do seu corpo que transcede o tempo. Vice-versa, se um soldado não consegue centrar a atenção no “hara” pode se encontrar despreparado para um golpe mortal e não lhe é permitido combater. O “hara”, a barriga, é o local no nosso corpo da “profundidade sem tempo”. E é dali que Laurinha desponta, com o seu grito de dor, suplicando para ser resgatada do passado, onde se sente aprisionada; pedidno para se conjugar com o resto do corpo e ser integrada na consciência atual.

Laura, cujo modo de ver a realidade foi sistematicamente desacreditado na infância; cujo corpo foi violado e, portanto, “congelado” quanto ainda não era capaz de pensar ou agir simbolicamente, perdeu o contato não somente com o seu corpo, mas com o seu “sentir”. O nível de consciência no qual Laura se vê enredada tem origens profundas: o local por excelência deste emaranhamento é o espaço das imagens e dos objetos ainda não separados, isto é, aquele nível mágico da infância e do mundo primitivo, onde o pensamento equivale ao gesto, à ação.

Devolver ao corpo o seu significado profundo e a sua sacralidade demanda um novo nível de expressão e um meio concreto para poder comunicar aquilo que ainda não é comunicável. Durante a fase regressiva da terapia pode nascer a exigência de um espaço ritual cujas cerimônias devem ser criadas ou redescobertas pelo próprio analisando segundo a interação e a tensão evolutiva consciência/inconsciente (corpo) daquele momento. Para favorecer o contato, a elaboração e o domínio de energias ainda em estado bruto, deve-se dar voz às percepções e sensações corporais, aos gestos, à “música da voz” e aos objetos “mana” (sobre os quais são projetados o “numen” das camadas profundas do inconsciente com os seus “encantamentos”). Assim, por meio do mundo material (o espelho da nossa identidade) torna-se possível a elaboração consciente de regressões profundíssimas.

O movimento da psique profunda que se estende para frente e segue na direção da própria manifestação, nos “move” e se revela nas ações corporais, assim como nas imagens ativadas durante as cerimônias. Estas imagens podem nascer espontaneamente do Si-mesmo, graças ao contato com níveis profundos da psique, com a sua bagagem de significado e de “numen”, projetado sobre ações e objetos concretos. As ações cerimoniais, justamente por fazerem parte de um nível intermediário da consciência, “entre o céu e a terra”, permitem que nos movamos num mundo compartilhado, tornando possível a criação de pontes entre a consciência, os vários territórios do inconsciente e os participantes do ritual.

Laura e eu procuramos juntas tanto o modo melhor para favorecer o diálogo quanto o sentido do “jogo sagrado” (dentro do espaço “de suspensão”), além de favorecer a oportunidade de uma experiência da potência arquetípica do inconsciente contida e protegida. As ações rituais e os objetos dotados de “mana” (neste caso uma foto emoldurada) concatenam o paciente, o seu corpo, o seu passado e as suas emoções. Ofereço algumas sugestões, mas deixo que seja Laura a escolher o ritual com o qual se sinta mais à vontade: “enrolar a foto de Laurinha em algo que lhe transmita calor (um xale, manta ou cobertor), e oferecer a ela algo para comer (colocando-lhe um pratinho), comerem juntas, compartilhando do mesmo alimento.”

Na semana seguinte, Laura me fala sobre o ritual praticado com Laurinha, “a menina do porta-retratos”: ela a tinha enrolado num grande lenço que pertencia à sua mãe; o tecido pesado se encarregava de manter aquecida a menina. Ela se lembrou que Laurinha gostava de salsichas, assim ela as preparou para uma refeição conjunta que foi feita enquanto conversavam; estavam bem juntas, se entendiam, havia uma atmosfera “mágica”. Naquele exato instante, um porta-retratos caiu do móvel que estava atrás dela; o barulho forte desfez a “magia” (participação mística). Chegou a praticar o ritual outras vezes, mas não foi possível recriar a atmosfera da primeira vez.

Colocar em prática um ritual no interior do seu “espaço sagrado”, local e momento de conjunção entre dois mundos, fornece à consciência, portanto, um recipiente aceitável, capaz de “dominar o caos”, dar nova forma às energias desprendidas que até aquele momento se sujeitavam a temores e tabus. É uma forma de aprendizagem esperiencial e uma experiência emotiva corretiva, que “cria consciência”. É o espaço onde cada ação ou gesto, também através do uso de objetos “profanos”, tendo as suas origens nas camadas mais profundas da psique, ecoa além do tempo e do espaço. Os gestos físicos (as ações rituais) influenciam e transformam aqueles que os executam; como um espelho, deixam-se refletir, justamente como uma imagem onírica “age” interiormente no sonhador mesmo sem que ele conheça o significado intrínsico.  Desta forma, um ritual pode provocar profundos efeitos terapêuticos, pois as ações e percepções do eu corporal que vive o ritual influenciam o próprio sujeito o qual é, ao mesmo tempo, ator de tais gestos e objeto das suas mensagens.

Quando os estados profundos da psique (que pertencem ao nível mágico) são ativados e devidamente “honrados” nas modalidades sugeridas pelo próprio processo, lançando mão da sua linguagem simbólica ou através do objeto dotado de “poder”, a consciência emergente pode começar a se unir à energia transpessoal: contendo-a, “domesticando-a” e integrando-a na vida pessoal. A cisão dará lugar a um novo equilibrio dentro de um modelo mais amplo. Deste modo, o gesto ritual criado no espaço “transacional” contém a energia transpessoal que, canalizada num recipiente aceitável, se exterioriza no mundo. Cada uma das suas manifestações exprime, portanto, a intenção arquetípica encarnada no aqui e agora, permitindo elaborar e conectar as “partes cindidas” ao resto da personalidade, o que enriquece a consciência e entra a fazer parte do mundo.

Alguns meses depois da experiência precedente, Laura vive a segunda experiência de Respiração Holotrópica. Segue a sua descrição:

 

Comecei a respirar e, lentamente, o meu corpo começou a vibrar. Os ombros, os braços, as mãos.

Eu sabia que Laurinha estava comigo, nós duas estávamos tranquilas e conversávamos. Eu lhe perguntei se ela estava com medo e ela me disse que não: estávamos prontas para ir a qualquer lugar. Eu me revi na rua da minha infância, o ar era outonal. Pairei ao longo da rua, sobre a rampa da garagem, sobre o toldo do prédio. Perguntei a Laurinha se ela queria descer até o porão, mas ela não se interessou. O ar era tenso e frio e eu sentia um vazio ao redor. A limpidez do ar acentuava a minha solidão.

Depois me revi no meio do mar. Laurinha ainda estava comigo. Abaixo de mim havia o azul da água profunda e eu sentia que eu era um barco, ou melhor, eu era a proa de um barco a vela. Era uma sensação muito agradável, sulcava velozmente a água, o vento me abraçava, havia o borrifo e a espuma das ondas. Eu via a praia na minha frente, uma faixa de areia rosa que era circundada por uma vegetação luxuriante. Eu  cruzava o mar velozmente, fixava os olhos na praia, mas eu não chegava nunca e nem sequer me aproximava dela: a distância se mantinha inalterada. Compreendi que a praia não era a minha meta; eu me movi para o fundo do barco e não era mais a proa do barco, agora voltara a ser eu mesma e me via no centro do barco, ao meu redor, como se tivessem sido confiados aos meus cuidados, estavam os outros participantes do grupo de respiração. Desci do barco, lentamente o fundo se fez permeável e o meu corpo o atravessou. Aconteceu lentamente, porque eu estava incerta: eu queria ou não? Perguntei a Laurinha e ela não tinha medo. Soltei o corpo e escorreguei para baixo do barco. Agora eu estava toda imersa na água. Debaixo de mim, só a escuridão dos abismos; acima, a luz filtrava o sol. Fiquei naquela posição por muito tempo, eu flutuava alguns metros abaixo da superfície da água e estava temerosa, mas também curiosa. Depois comecei a descer cada vez mais para o fundo, eu era um peixe e nadava perscrutando ao meu redor. Vi uma moréia, e embora eu soubesse que ela era perigosa, tinha certeza que não me atacaria. De fato, ela nadou ao meu lado por um bom tempo e depois desapareceu. Vi tantas pequenas medusas de um rosa muito bonito; elas não eram perigosas e eu nadava ao lado delas. Havia ainda muitos outros peixes que eu olhava e continuava a descer. Quando desci até o fundo me tornei uma raia gigante. Eu nadava no fundo do mar, movendo lentamente as minhas grandes “asas” e respirando sincronizado. Eu sabia que naquelas águas havia tubarões e orcas, mas não os temia. Como a moreia também não me atacariam. Eu me pus a explorar o fundo do mar e encontrei desde estrelas e ouriços-do-mar até algas e rochas. Continuei a nadar até que vi, à minha direita, os escombros de um navio e de um submarino naufragados. Cheguei mais perto e tudo se cobria de algas e limo verde, exceto as escotilhas. A parte interna era iluminada e a luz passava pelas escotilhas, mas os vidros estavam sujos e eu não conseguia ver lá dentro. A minha sensação era de um ambiente quente e aconchegante. Nadei por um bom tempo ao redor dos escombros, procurando um jeito de entrar, mas depois entendi que eu era muito grande não conseguiria jamais. Então me transformei num peixinho e recomecei a nadar procurando uma abertura pel qual eu pudesse entrar. A luz que vinha de dentro era sempre muito sedutora, mas eu continuava fora. Depois disso, interrompi a respiração e quando recomecei me revi imediatamente no fundo do mar; eu ainda era um peixinho que nadava em círculos ao redor dos escombros. Nadei mais um pouco, mas sem muita convicção: eu entendi que a viagem chegara ao fim; não seria daquela vez que eu entraria nos escombros, não era a hora. Dei mais algumas voltas por ali e me despedi, acariciando os escombros com o meu corpo e com as minhas guelras. Depois disso, fui subindo lentamente na direção da superfície e emergi novamente.

 

Se comparada à primeira experiência, a segunda lhe deixou um senso di profundo bem-estar e  um tanto de “leveza”.

Depois que o ambiente de contenção da terapia fora ampliado graças a aparição de “Laurinha” com os seus rituais inseridos na cena terapêutica e as experiências de respiração holotrópica, entramos, Laura e eu, num novo nível de dialogo terapêutico: os sonhos haviam mudado de direção, as imagens revelavam tensão diante de algo  absolutamente novo e vital; assim sendo, sonhos e imagens eram a marca indelével de uma mudança brusca no seu percurso evolutivo. A localização do respiro e a sua profundidade revelavam mensagens que provinham das profundezas do inconsciente e do eu corporal que podiam ser contidas e integradas graças a uma nova consciência da respiração e do corpo.

 

Numa sala vejo um trono muito grande e suntuoso, ele é de veludo vermelho. O trono diz algo, eu não entendo o que diz … talvez esteja dizendo o que deseja. Ao seu lado há um trono menor que não faz nada. Sinto muito medo e quero fugir, mas digo a mim mesma e a Laurinha que é importante ficar, não devo fugir. De fato, controlo o medo, resolvo ficar parada e me sujeitar ao poder do trono sem fugir … sim, pois Laurinha está comigo!

 

Estou na praia, tomo um banho de mar e pego algumas estrelas-do-mar. A minha sensação é de calma e paz.

 

Alguém está atrás de mim enquanto eu subo as escadas de um palácio. As escadas são suntuosas decoradas com tapetes de veludo vermelho, estuques e estátuas. Já num outro andar do palácio vejo duas crianças, na realidade dois anjinhos barrocos que ajudam o rei – o menino Jesus – a montar a árvore de Natal. Chego correndo e me jogo aos pés de Jesus; sei que se lhe peço perdão ele me perdoará e o perseguidor não me matará mais…

Procuro numa floresta, no meio da densa vegetação, e encontro uma fonte.

 

Tomo banho numa água cuja cor muda de tonalidade: às vezes é azul e clara e outras vezes a água é escura como se fosse um jogo de luzes e sombras…. Quando saio da água estou grávida e todos me acodem com afeto e amor porque estou para dar à luz.

 

Num antigo edifício, de quartos subtérreos. Passamos por várias salas… chegamos numa área  que não se localiza mais debaixo da terra, mas é ao ar livre. Parece um antigo templo budista, um lugar muito bonito com colunas e piso revestido de mármore vermelho. Um lugar esplêndido, somente algumas partes foram trazidas à luz, outras ainda estão sendo escavadas. Há dois restauradores que lixam uma parete… eu estou procurando um quarto.

   

Estou visitando uma área arqueólogica. Percorro um itinerário diferente que normalmente é proibido ao público. Preciso seguir as muralhas e não posso errar….  Algumas pessoas me dizem que ao longo das muralhas há inscrições antigas, e já que aquele era um local frequentado por crianças, as gravuras são, sobretudo de jogos e cenas de sexo. Após alguns poucos metros o percurso começa a ficar complicado e me deparo com um abismo. Fico paralizada de medo, aterrorizada. O medo que eu sinto do vazio me deixa sem fôlego. Acordo com uma sensação de frustração e fico com raiva de ter recuado diante do primeiro obstáculo.

 

Depois daquela noite Laura, “aconselhada por Laurinha”, resolveu dar continuidade ao sonho num estado de vigília… já fizera uso da imaginação ativa em sessão analítica, mas esta vez estava decidida a fazê-lo anche sem ajuda da analista. Na sessão seguinte, ela me trouxe o sonho escrito e a sua sequência na imaginaçao ativa, no qual se autodenomina “Armênia”: 

 

Com o cérebro quase paralisado por causa do medo, a única coisa que Armênia consegue fazer é pensar e repensar. Neste momento, no entanto, não é o cérebro que comanda, mas sim o estômago, junto com as vísceras… respira com dificuldade. Armênia se volta e olha para trás. Tem ciência que se retornasse sobre os seus passos o medo do vazio lentamente se atenuaria, o respiro voltaria a animá-la, o sangue poderia fluir livremente; ela sabe, enfim, que percorrendo a trilha do retorno não colocaria a sua vida em risco… Gostaria de pular, mas tem medo de morrer, gostaria de respirar, mas nem uma partícula de ar chega aos seus pulmões. Tudo se paralisou; o cérebro está em curto-circuito; as têmporas pulsam enlouquecidas; os olhos vêem tudo embaçado; em suma, nada mais responde aos seus comandos. E de repente, Armênia decide: ela se lança, dá um salto inverossímil, impossível, não pode ser verdade. No entanto, lá está ela, de joelhos na platforma, com as mãos plantadas no chão … se levanta, o coração ribomba no peito como um tambor… ela não pode retroceder, não há jeito de voltar atrás na sua decisão … e diante di si ela vê  … a caverna! … é tão escura … ela se levanta e pula para dentro da caverna… escuro e silêncio, tudo cheira a pó, a velho, umidade e mofo. É um ambiente insalubre. Segue adiante como um robô; sabe que morrerá. Armênia só tem tempo de dar alguns passos quando, de repente, sente que algo que vai se encostando nela; é agarrada e derrubada no chão violentamente… seria melhor dizer, ‘alguém’, pois trata-se de um monstro, uma espécie de diabo, negro, cheio de garras. Ele a jogou no chão e agora está encima dela, a oprime com o seu peso, ela não consegue se mexer… Esmagada pelo peso do monstro que está sobre ela, o ar lhe falta; mesmo assim ela se arrasta, procura se desvencilhar, pois quer prosseguir. No escuro, as mãos tocam o terreno e então ela sente alguma coisa. Tateando, ela procura algo, revolve a terra e tem um vislumbre de esperança. Percebe que está tocando a borda de uma cavidade. Consegue se arrastar mais um pouco; talvez possa se deixar cair dentro daquela cova cuja abertura diminuta permitirá que ela – tão pequena – passe, mas não o monstro … embora ele se mantenha sobre ela, mesmo sufocada pelo peso esmagador, ela continua a se arrastar. O momento chegou, quando Armênia está bem encima da fossa ela se deixa escorregar para dentro dela. O monstro não pode passar, a abertura é demasiadamente pequena para ele, o plano de Armênia funcionou… o monstro se enfuria, grita, agita os braços em todas as direções, bufa, se dilacera, revira os olhos, procura agarrá-la, mas é tudo em vão: Armênia já não está mais ali, deslizando pelo buraco ela chegou no fundo do poço…

Ela olha ao seu redor e entende que não sairá nunca mais dali… o buraco era muito mais profundo do que ela imaginara e as paredes são lisas, não há como voltar à superfície. É um grande fosso circular, escuro, frio, decrépito, úmido e completamente vazio. Ele não tem nada para oferecer à Armênia: nem abrigo, nem comida, quase nem ar … o único reparo vem das paredes úmidas. Armênia não tem mais pensamentos nem emoções, está completamente aniquilada. Está encolhida como se quisesse se esconder, apática, inerte, sem respirar… é um tempo interminável, feito somente de vazio e de puro terror. Lentamente, começa a sair daquela eternidade vácua, primeiro mexe os dedos, depois as mãos … Acha o livro que ganhara de presente de uma amiga, é um romance;  pensa que ela não gostava do livro antes daquela experiência, mas agora, ali no fundo da caverna escura, era bem diferente. Abraça o romance e aperta contra o peito…

 

O nome – “Armênia” –  trazia à mente de Laura lembranças de um filme visto algum tempo atrás: “ “Monsieur Ibrahim e as flores do corão”. O filme era ambientado na Armênia, terra – se ela se lembrava bem – açoitada por “terremotos”; para ela terremoto significa “energia que se desprende, que brota do fundo”, “de dentro”. Em seguida, Laura resgata mais uma lembrança ligada à “Armênia”: quando criança, ela conhecera numa festa de casamento uma mulher muito bonita que se chamava Armênia. Dava para ver que a mulher era feliz ao lado do marido que amava e das suas três filhas pequenas. Ainda é bem nítida na lembrança o comentário feito pela sua avó a respeito da família: uma mulher tão bonita com aquela era “desperdiçada” com um marido alcoolista. Posteriormente, Laura se informou mais sobre a “Armênia” e descobriu que o país passara por dois genocídios. O primeiro deles fora um genocídio somente de homens. 

Veio-lhe em mente que, quando era adolescente, ela tinha medo de seu pai e não conseguia entender o motivo. Quando ficavam sozinhos em casa se evitavam, jamais ficavam no mesmo cômodo juntos, estavam sempre fugindo um do outro. Mesmo quando Laura era já adulta, ela tinha pavor de ficar sozinha com o pai. Lembra também que, quando era criança, ela gritava de noite; Chamava sua mãe, pois um medo absolutamente irracional a invadia, adquirindo dimensões trágicas: ela tinha medo de ficar “cega”. “Minha mãe”, explica Laura, deitava no meio, meu pai e eu ficávamos cada um no canto da cama (“se posicionava como um amortizador na relaçao entre eu e meu pai e isso), num certo sentido, congelava o meu medo”. 

O medo de ficarmos cegos nos lembra o mito de Édipo. Segundo quanto relatado por Sófocles, quando o adivinhador Tirésias conta ao rei Édipo que ele cometera incesto com sua mãe-esposa Jocasta; para se punir do terrível pecado, Édipo fura os próprios olhos. Nos mitos, é a alma que se conta através da linguagem simbólica; ela nos fala de situações e dificuldades que ultrapassam os confins do mundo individual e transcendem a consciência pessoal. Trazemos dentro de nós, na nossa psique e nas nossas células, os dramas, traumas e dores, bem como os “sintomas” de inteiras legiões de antepassados e da humanidade como um todo (o inconsciente coletivo). Tais dramas são representados, compreendidos e, num certo sentido, “exorcizados” por meio das lendas e mitos mitologicos (“mitos” ou “mitologia”), repletos de páthos, transmitidos de geração em geração. O olho é a parte do corpo onde se exprimem ou se somatizam as problemáticas familiares de natureza sexual, as chamadas relações “edipianas”. 

Depois da sessão na qual Laura me descreveu, e reviveu detalhadamente, tantas sensações e emoções diferentes – durante a imaginação ativa que seguiu o último sonho – ela decidiu de forma espontânea que prepararia “Laurinha” (identificada com a foto) para dormir; dando-lhe uma moldura mais macia ela a poria na cama e então dormiriam juntas. Passou para o sono ao lado de Laurinha, e acordou na calada da noite como se “estivesse sufocando”. Somente depois que a foto foi retirada da cama ela conseguiu respirar. Voltou a colocar a moldura debaixo dos cobertores, mas se sentiu sufocar novamente, de forma “fortíssima”, como ela mesmo definiu.

É experiência comum no mundo mágico-primitivo a manifestação de conteúdos inconscientes ainda não assimilados à consciência que se expressam por meio de um “objeto transicional” (Winnicott) dotado de “mana”. “Laurinha” era mais do que um “objeto” transacional: era uma foto num porta-retratos, mas pertencia também ao mundo imaginal de Laura; “Laurinha” era um “personagem” do seu inconsciente, uma Si-mesma ainda não integrada, mas dotada de vida e de vontade, era “viva” e cumpria a sua função de recipiente e conexão entre o estado de consciência atual e os conteúdos inconscientes que, embora acessíveis, ainda não haviam sido assimilados pela consciência. Laura afirmava muito lucidamente que Laurinha “sabia”, sabia tudo o que havia para ser sabido… e a ajudaria. Havia entre elas uma espécie de cumplicidade ditada pelo próprio caráter do jogo, isto é, tendo ciência da “brincadeira” que jogavam elas compartilhavam da seriedade que lhe era intrínseca.

 

Estou nadando com meu marido e um recém-nascido em águas escuras e profundas … é muito bom poder abraçar e tocar o corpinho do bebê, olhá-lo nos olhos … eu o pego no colo, o deito na minha barriga e ele se tranquiliza…Acordei sentindo uma enorme ternura, um grande sentimento de amor. 

 

No escritório eu sou uma menina. Quem cuida de mim é um colega de trabalho. Tenho que fazer xixi; ele me leva até o banheiro e abaixa a minha calcinha para que eu me sente no vaso sanitário. Depois ele fica bem perto de mim, coloca uma mão no meu ombro e olha de forma mórbida para os meu órgãos genitais que não são de uma criança, mas sim de uma mulher adulta.

 

       Laura afirma que este último sonho lhe fora enviado por Laurinha (desta vez o pedido de ajuda partira da própria Laura e não da menininha). Após um período de escassa produção onírica, os sonhos voltaram quando ela recomeçou a dormir com a foto de Laurinha.

 

 Estou na cidadezinha natal de meu pai e um homem perto de mim quer se matar, ele se corta com uma faca. O sangue esguicha e mancha a minha pele e a minha camisola.  Fico horrorizada, mas isso é só o começo. Penso que mais sangue esguichará quando deferir o golpe final.

       

Neste momento, ela está vivendo um momento difícil com Laurinha; não consegue se comunicar com ela, não a sente mais dentro da barriga, parece que a sua figura perdeu significado, não sabe que posição dar-lhe dentro daquilo tudo, mas mesmo assim, continua dormindo com ela.

Eu sugiro que ela procure uma foto de Laurinha “de corpo inteiro”, fazendo-a se mostrar por inteiro e não somente o rosto. Ela me traz o seguinte sonho:

 

Meu pai deu à luz um menino, eu sou sua mulher e vou ao hospital para visitá-lo… eu me aproximo e cumprimento primeiramente meu pai/marido, me curvo e o beijo na boca… o seu rosto está amarelado e a pele está fria. Olho o menino, o seu corpinho nu. A cabeça é um pouco deformada e tem um grande calombo; o menino tem um pedaço de metal na boca e duas facas que lhe atravessam a boca e a garganta… não consigo entender como possa sobreviver assim… no começo me parece estranho, não se parece comigo de forma alguma, como pode ser meu? Depois, chego mais perto, o toco, o seguro nos braços, o acalento, converso com ele, me apresento… ele se aproxima tanto de mim quanto de meu pai, para ter um contato físico também com ele.

 

Vejo como muito angustiante e significativa a imagem das duas facas “enfiadas” na garganta e na boca, justamente naquela parte do corpo que serve para a comunicação verbal: não obstante a crescente clareza das imagens do inconsciente, ainda é proibido “falar”.

Como eu lhe sugerira, Laura foi procurar no álbum de família a sua foto “inteira” de quando era menina. Ela escolheu uma foto onde ela aparecia perto do pai que estava de costas.

 

Um homem me dá a mão e conversa comigo, os seus olhos sorriem. Eu comprendo que ele me ama. Estou feliz e segura. Precisaria anotar as indicações que ele me transmite, mas permaneço de mãos dadas com ele e sinto que eu também o amo. Acordo invadida por uma grande ternura.

 

Estou indo escolher Virginia como meu novo médico de família. Virginia também faz parte do sonho e está de ótimo humor, muito encorajante. Será difícil que eu consiga tê-la como minha médica, mas é indispensável que eu o faça. Virginia me leva alegremente pelas escadas e então, apoiada numa parede, ela escreve num cartão com o qual me presenteia. Escreve: “Sorte é amor. Sorte e Amor são…(não lembro a palavra). Escreve de comprido na folha, com um pincel colorido muito bonito, verde e azul escuro. Estou contente, é um lindo presente, tenho muito orgulho e quero colocá-lo numa moldura.

 

Laura relata que a minha presença neste sonho lhe incutiu tranquilidade e bem-estar. No que se refere às fotos de Laurinha, ela notou que por volta dos quatro anos de idade o seu olhar mudou. É um olhar sofrido e perdido no vazio. A “Laurinha” da foto já tem aquele olhar e tem cerca de 5 anos, e “guarda dentro de si uma dor que ainda não tem voz e ainda não a invadiu  por completo (a carrega completamente nos seus ombros (ou nas suas costas) (são palavras suas). 

 

Luto com um urso, mas ele não me machuca de forma alguma. Há também dois recém-nascidos….

 

Na cidadezinha natal de meu pai há uma casa no alto de uma colina. É uma imagem muito bonita: a colina verde, o céu azul, a casa branca. Está em reforma, portanto, não tem vidros nas janelas; o verde e o azul passam por ali, refletindo na casa toda.

 

Após algumas palavras ditas a uma pessoa significativa e que “não lhe pertenciam mais”, Laura sentiu dentro de si algo que estava em desacordo, que “rugia como um leão”; pela primeira vez foi capaz de avaliar a “força que habita o seu ser”, a “potência do seu sentir”. Em seguida, foi Laurinha que, “de dentro da sua barriga”, começou a fazer exigências aparentemente injustificadas; elas discutiam bastante, mas no final “acabava sempre fazendo o que Laurinha queria”. Por exemplo, “deixar o seu atual companheiro, pois ela não o ama e está com ele somente para aplacar a solidão”. Uma vez acontentada Laurinha, Laura se deu conta que, de fato, rejeitava aquele relacionamento que agora via claramente como um árido acomodação. Esta consciência emotivo-corporal, que se manifestou inicialmente com a participação de Laurinha, sucessivamente se fez sentir também em várias outras situações da sua vida relacional, amplificando-se cada vez mais com o prosseguimento das sessões.

Como é destino dos objetos transicionais, Laurinha começou a perder potência e energia conforme Laura se reapropiava e dava voz ao seu corpo/emoções, assim como às suas lembranças e à sua dor. Agora, o seu corpo pulsa, as vísceras sussultam, o seu mundo emotivo se manifesta de modo potente, na mesma medida em que Laurinha esmaece, se cala e sai de cena.

Seria possível escrever muito mais sobre o percurso evolutivo de Laura, mas, desta forma, nos distanciaríamos dos objetivos, e, sobretudo, dos “espaços” concedidos a este livro. Naturalmente neste relato deixei de lado algumas etapas, assim como alguns aspectos importantes da vida de Laura como, por exemplo, o difícil relacionamento com o ex-marido, de quem tinha medo, ou melhor, de quem tinha verdadeiro pavor. Ela se sentia culpada por tê-lo “iludido e abandonado”, sem jamais tê-lo amado. Foi um casamento que eu poderia definir de “expiação”, mas não no sentido tradicional de “retratação”. A expiação de ter-se manchado de uma culpa inconfessável e a renúncia a uma verdadeira relação com o mundo masculino. Laura, uma mulher bonita, se casara com um homem que não amava; o marido que escolhera,  em função de uma grave deformação congênita, jamais poderia suscitar nela qualquer tipo de atração física.

O vínculo do casamento é um dos exemplos da força e profundidade da cerimônia ritual que ainda hoje, é presente no nosso mundo ocidental; tal vínculo dificilmente pode ser rompido por meio de assinaturas ou sentenças judiciárias, como queremos acreditar. É bastante frequente que, após uma separação, por trás das aparentes dissidências e incompreensões que atormentam os ex cônjuges (transformando-se, às vezes, em devastantes e infinitos campos minados de  incompreensões e agressividade), exista simplesmente “um ritual que não foi desfeito”. A tradição judaica dispõe, por exemplo, de um “ritual de separação”. Na Igreja Católica somente pessoas ricas e poderosas podem usufruir da “dissolução do vínculo”, através de um pedido de nulidade feito aos Tribunais Eclesiásticos do Vaticano, mas neste caso, a dissolvência do vínculo se reduz a uma simples prática burocrática, despojada do seu aspecto ritual simbólico. Na prática clínica pode ser muito útil a realização, por parte dos pacientes, de um “contra ritual”, ou melhor, “um ritual de dissolvência do vínculo matrimonial”, como por exemplo: um rito de separação na igreja onde ocorreu o casamento e onde serão deixadas as alianças e, se necessário, enterrá-las, derretê-las ou destruí-las; quebrar uma corrente ou desamarrar solenemente um laço, um nó ou qualquer outra coisa que os unia; separar-se ritualmente dos efeitos pessoais do parceiro, destruir ou queimar um simbólico “machado de guerra” ou objetos repletos de significados para a história do casal, por exemplo, lembranças de uma viagem, de uma experiência em comum etc. Laura e eu imaginamos uma série de possíveis rituais de dissolução do seu casamento.

 

Preciso ser operada de um grave problema no complexo coração-pulmão para voltar a ter uma vida regular… P. (um amigo) é culpado, está sentado num degrau e abaixa a cabeça. Temos que voltar, mas a raiva me dificulta a respiração, preciso me sentar para retomar o fôlego. Estamos novamente na grande sala, nos sentamos todos no chão num círculo.

 

Preciso reformar a casa, é a casa da minha infância, e tenho que deixá-la completamente vazia, mas ainda não me organizei muito bem: não sei o que fazer com as plantas, devo remover os móveis…. mas ainda não me confirmaram se a reforma começará realmente no dia seguinte.

 

Na sessão seguinte Laura havia já refletido sobre a possibilidade de realizar um ritual de dissolução do vínculo matrimonial e imaginara as seguintes práticas:  “pintar o seu vestido de noiva com todas as cores do arco-íris; depois vesti-lo assim, todo colorido” e queimar uma foto dos “noivos”. Ela tentou tirar do armário o vestido e as fotos do casamento, mas não conseguiu; não se sentia ainda preparada para “tirar os mortos do armário”.

Foi necessário certo tempo para que Laura decidisse encarar o seu velho vestido de noiva e finalmente pintá-lo, mas quando o fez viveu cada momento daquele ritual com “grande emoção e sentimento de liberdade”. Depois de pronto, ela me trouxe o vestido para que eu o visse: estava todo colorido sendo que, parte da frente, Laura  desenhara animais nas suas fases metamórficas: girinos que se transformam em rãs; lagartas que se tornavam borboletas e libélulas etc…

 

Vendo parte das minhas jóias. Preciso encontrar um modo de proteger as outras jóias e quero guardá-las num cofre. Mas o cofre é de todos e então escrevo num cartãozinho o meu nome, sobrenome, endereço e o número de telefone; depois coloco o cartãozinho e as jóis num envelope, assim todos saberão que pertencem a mim…

 

Ao longo do percurso terapêutico, Laura se tornara muito boa em decifrar a linguagem simbólica; assim sendo, ela foi capaz de interpretar sozinha a mensagem deste último sonho: ele fala dos valores coletivos (alguns dos quais ela agora tirara de cima dos seus ombros) e da redescoberta dos seus verdadeiros valores individuais. Este tipo de discernimento diferentemente do que se poderia pensar não conduz a um maior individualismo, mas, pelo contrário, justamente porque é consciente, estimula o contato mais profundo e autêntico com a “humanidade” que reside dentro de nós e com aquela que está lá fora. Num certo sentido, Laura precisou dar um salto no escuro, isto é, teve que abandonar as convicções e respostas pré-fabricadas para encontrar dentro de si tanto o significado daquilo que a atormentava quanto a  própria modalidade individual de existência.

 

 No Candomblé existe um personagem bastante paradoxo que se chama Exu: “o mensageiro celeste”. Ele é o intermediário, a ponte necessária na comunicação com as divindades, levando até elas os pedidos e desejos dos homens; é ainda a ele que se deve pedir licença para se dar início a qualquer uma das cerimônias. Quando não é devidamente homenageado, o mensageiro celeste se vinga interferindo nas cerimônias ou destruindo a pessoa que o negligenciou.

Embustes, brincadeiras de mau gosto, tramas obscuras e indecências são as características do mensageiro celeste – daquele que já foi comparado ao diabo pelos missionários e observadores apressados. Mas, se o observarmos melhor, a ambivalência que o caracteriza parece ser justamente o elemento dinâmico, apto a “controlar o caos”, a desenvolver, a tornar móvel, a potencializar e transformar. Exu nos lembra o Hermes grego, a serpente da tradição bíblica, o mercúrio alquímico.

Semeando mal-entendidos e discórdias, ele é um embusteiro convicto, é aquele que constrói as armadilhas da vida nas quais caem os seres humanos.

Segundo a lenda africana, Exu é capaz de fazer coisas espantosas: transportar óleo numa cesta, matar um pássaro ontem com uma pedra que foi lançada hoje, tirar sangue das pedras…

São consagrados a ele a segunda-feira e o início de todos os rituais ou cerimônias: é sempre e somente a ele que devemos nos dirigir para obter o favor dos deuses.

 

Neste tipo di percurso doloridíssimo, não é necessário “saber” a verdade, mas sim vivenciá-la na experiência. Não se trata di adquirir um conhecimento inteletual, mas sim de percorrer corajosamente uma via, cujas veredas e paisagens normalmente escapam a qualquer tipo de descrição. Como terapeuta, a minha tarefa é acompanhar e apoiar o iniciando neste percurso. Em muitos momentos, as palavras não são suficientes, revelando-se, aliás, muito mais eficaz no plano psicológico a comunicação não verbal que existe em todas as instâncias de um relacioname terapêutico. Os guardiões de tal percurso, nutrindo-o e garantindo-o quando se faça necessário, são a minha própria experiência e a minha pessoal relação com o mundo interior irracional. Por sua vez, isso requer que, também eu, no passado e ainda hoje, tenha me conectado com esta dimensão da existência, questionando continuamente a minha própria pessoa, as minhas seguranças e convicções. Ao longo dessa trajetória, a ‘companheira de todas as horas’ que me apóia e me sustenta em tal percurso é, sobretudo, a minha fé nas infinitas potencialidades da natureza humana.

 


Note

1 Tarnas, R., The Passion of the Western Mind. Understanding the Ideas That have Shaped Our World View, Ballantine Books, New York, 1991.

2 Einstein, A., Come io vedo il mondo, Newton Compton, Roma, 1988, p. 28.

3 Neumann, E., Storia delle origini della coscienza, Astrolabio, Roma, 1978, pp. 19-20.

4 Schellenbaum, P., La ferita dei non amati, Red, Milano, 2002, p. 194.

5 Jung, C. G., Gli archetipi dell’inconscio collettivo, Bollati Boringhieri, Torino, 1990, p. 37.

6Neumann, E., Psicologia del profondo e nuova etica, Moretti & Vitali, Bergamo, 2005, p. 65.

7 Gurdjeff, G. I., Incontri con uomini straordinari, Adelphi, Milano, 2001.

8 Grof, S., Oltre il cervello, Cittadella , Assisi, 1997, p. 47.

9 Boggio Gilot, L., Crescere oltre l’io, Cittadella, Assisi, 1997, p. 254.

10 Una crisi esistenziale che racchiude in sé il seme della trasformazione. L’espressione “emergenza spirituale”, nel suo doppio significato di “pericolo” e “opportunità”, esprime la complessità di questo momento psicologico-esistenziale dal quale si può emergere completamente trasformati Cfr il mio romanzo Água scura, Di Renzo editore, Roma, 2005.