As potencialidades terapêuticas dos estados non ordinários de consciência – o incosciente segundo Stanislav Grof

 

Virginia Salles, Roma

 

  As “emergências espirituais”

 

No mundo atual, propenso aos aspectos racionais da psique, os estados não ordinários de consciência são frequentemente vistos de forma suspeita, encarados com certa desconfiança, e, às vezes, com verdadeiro e próprio terror, enquanto fazem emergir os elementos irracionais e, portanto, “incontroláveis” da natureza humana. Diversamente, em outros tempos ou contextos culturais diferentes do nosso (oriente, xamanismo, mistérios gregos etc) tais estados eram considerado uma benção divina, um presente dos deuses; os estados não ordinários de consciência eram – e ainda o são nos dias de hoje – ativamente alcançados com a utilização de vários meios de autoexploração profunda: “as tecnologias do sagrado”. A Psicologia Transpessoal os repropõe em trajes modernos, numa perspectiva psicoterapêutica e evolutiva da consciência.

Imaginemos agora que, repentinamente, somos catapultados num outro mundo e vivemos experiências absolutamente insólitas se comparadas com o nosso modo habitual de conceber e sentir a realidade; imaginemos, por exemplo, que temos visões singulares: demônios, divindades, personagens mitológicos, cometas, ou ainda uma luz ofuscante, cuja luminosidade intensa e brilhante – é de um esplendor e beleza sobrenaturais; imaginemos ainda que estejamos percorrendo lugares longínquos e desconhecidos ou períodos históricos diferentes; temos a sensação que correntes de energia atravessam o nosso corpo, ou então temos a impressão que estamos morrendo, desaparecendo no vácuo e então, num amplexo, nos unimos ao inteiro universo enquanto o pânico nos invade, temos medo de não conseguir voltar a este mundo.

Uma situação semelhante nos faz vir em mente um diagnóstico de tipo psiquiátrico. Ou então, segundo estudos conduzidos por Abraham Maslow, John Perry, Stanislav Grof etc um número crescente de pessoas nas últimas décadas viveram ou vivem experiências realmente insólitas; pessoas que, ao invés de caírem irremediavelmente na loucura, emergem de tais estados extraordinários, “transformadas”; tais pessoas, se comparadas à vivência anterior, adquiriram maior entendimento, bem-estar psicofísico, e uma forma diferente de se relacionar consigo próprias e com os outros.

Em alguns casos tal tipo de experiência marca o início de um verdadeiro e próprio percurso espiritual semelhante àquele descrito por várias tradições religiosas no mundo todo. Grof definiu tais estados mentais “emergências espirituais”, dando especial destaque ao seu duplo aspecto de “perigo” e “oportunidade”. Em 1980, em função da necessidade crescente de reconhecimento, apoio e informação para aqueles que atravessassem este tipo de crise evolutiva, Grof criou juntamente com sua esposa, Christina, o “Spiritual Emergenze Network” (S.E.N.), uma rede internacional de apoio em alternativa ao sistema psiquiátrico tradicional. Nestes últimos 20 anos o S.E.N. deu grandes passos em prol do conceito de emergência espiritual na área da saúde e da doença mental; além disso, o S.E.N. promoveu a idéia que é possível considerar a existência de um intenso processo de transformação psicológica o qual, mesmo apresentando aspectos dramáticos, não é patológico. Grof considera tais experiências (durante as quais são ativados os níveis mais profundos do inconsciente) um esforço radical da psique para curar a si mesma, tendendo a uma situação de maior equilíbrio e harmonia, a um estado de consciência mais completo.

Estas experiências de transformação nem sempre ocorrem, necessariamente, de modo dramático e repentino. Reconhecendo a enorme importância evolutiva deste tipo de experiência (do ponto de vista individual e coletivo) os psicólogos transpessoais, na tentativa de agilizar o movimento evolutivo da natureza humana, aprofundaram o estudo das diferentes modalidades que o homem, desde sempre, utilizou para incitar estes estados particulares de consciência, intuindo o potencial terapêutico destas modalidades: o som dos tambores, os vários tipos de danças tribais, o “giro meditação” dos Dervixes, a ingestão de plantas alucinóginas como o peyote e a sua “esperiência de morte e encontro com seres de luz” (segundo o quanto descrito por Carlos Castañeda), o ayahuasca ou Santo Daime, o “cipó dos mortos” que provoca um transe de tipo mediúnico (muito empregado entre os índios e atualmente em todo o Brasil e outras regiões da América do Sul, no interior da imponente cerimônia religiosa do “Santo Daime”), as várias técnicas respiratórias e a mais moderna substância descoberta por Hoffman, hoje ilegal: o LSD.

 

A história

 

Jung foi o primeiro psicólogo a teorizar que no inconsciente existe uma porta de acesso a uma consciência mais ampla e universal, uma via para o transcendente. Grof, com o seu percurso, a sua “aventura de autoconhecimento”, como ele mesmo a define, abriu a porta para a dimensão transpessoal, ampliando a cartografia do inconsciente na direção das esferas da psique definidas por Ken Wilber “tênues e causais”.

Na origem da pesquisa de Grof sobre os estados não ordinários de consciência há uma substância, hoje ilegal, que foi na ocasião utilizada tanto na pesquisa quanto no âmbito terapêutico: ouvi do próprio Grof o relato da primeira vez que entrou em contato com aquela “caixinha branca” que lhe fora enviada pelos laboratórios Sandoz da Basiléia com a misteriosa scritta: LSD-25, a nova substância experimental dotada de propriedades psicoativas descoberta pelo químico Albert Hoffman. Corria o ano de 1956 e aquele encontro terá para Grof consequências profundas na sua vida pessoal e profissional, ele foi um dos primeiros a experimentar o LSD.

Grof, que em alguns dos seus livros descreve detalhadamente as suas experências com o LSD, logo percebeu que as suas “viagens” eram muito semelhantes àquelas que ele conhecia a partir da leitura dos grandes textos místicos do mundo tudo. Na época, Grof atribuiu todas as experiências vivenciadas como efeito direto da droga. Hoje ele afirma que a possibilidade de uma experiência mística é um direito natural de todos os seres humanos.

Sucessivamente lhe foi confiada uma pesquisa clínica que explorava o potencial terapêutico da psicoterapia baseada no consumo de LSD. Durante estas sessões muitas experiências iniciais continham material biográfico, “legítimo e desejável objeto de exploração”. Prosseguindo nas sessões, todos os envolvidos, mais cedo ou mais tarde, vivenciavam experiências que iam além do material biográfico. A pessoa em terapia psicoanalítica, conforme aprofundava a exploração do inconsciente, tendia a passar de um estágio “freudiano”, no qual são “confirmadas experimentalmente” as teses da psicanálise clássica, a um estágio que poderia ser definido rankeano-reichiano-existencial e, sucessivamente, a um estágio “junguiano”, por conta da ativação do nível arquetípico da psique. Nesse ponto emergia uma portentosa sequência de morte e renascimento psicológico; muitas vezes a sequência era acompanhada de intensas emoções: sentimentos estáticos de unidade com a natureza, o cosmo, os seres humanos, visões de divindades ou demônios, experiências de reinos mitológicos ou então recordações de situações ou experiências de outros períodos históricos. 

Grof afirma que seria arbitrário e muito artificioso considerar as lembranças de infância como normais e aceitáveis, enquanto se atribuiria às experiências que se seguissem às recordações infantis um caráter patológico.  As experiências vivenciadas desencadeavam grande quantidade de emoções e sensações e, quando deixadas livres para seguirem o seu curso natural, se revelavam enormemente terapêuticas, sendo na maioria das vezes acompanhadas de importantes insights sobre o significado da experiência. Segundo Grof, muitos estados, considerados bizarros e incompreensíveis pela psiquiatria oficial, são manifestações da tendência natural da psique humana que, a fim de auto curar-se, procura reviver os próprios traumas e obter maior equilíbrio.

Grof tentou traçar um mapa dos territórios experienciais evidenciados por meio da ação do LSD. Dedicando muito tempo a tal trabalho reuniu uma detalhada documentação sobre as suas pesquisas psicodélicas, acreditando criar uma nova cartografia da psique humana. Quando completou o seu mapa da consciência se deu conta que havia redescoberto o que Aldous Huxley chamara de “a filosofia perene”, a síntese e a essência das concepções do universo das grandes escolas iniciáticas do mundo todo, vindas à tona mais de uma vez e em diferentes lugares e períodos históricos (diferentes tipos de yoga, budismo, sofismo, taoísmo, cabala, misticismo cristão etc). 

As observações de Grof sobre os estados não ordinários de consciência lhe permitiram compreender que as modernas concepções psicológicas, incluindo a sua própria formação médico-psiquiátrica e psicanalítica, somente “tocavam levemente a superfície da psique humana”; bem cedo descobriu que o trabalho desenvolvido por ele sobre tais estados de consciência colocaria em sério perigo a sua própria reputação científica. Durante a primeira década Grof trabalhou sozinho em suas pesquisas, censurando atentamente qualquer comunicação transmitida no campo profissional; na verdade, ele falava abertamente sobre as suas descobertas somente a um grupo seleto de amigos. 

A situação mudou em 1967 quando Grof se mudou para os Estados Unidos; ali, Grof conheceu muitos estudiosos que (como ele) também pesquisavam sobre a consciência: antropólogos, tanatólogos, parapsicólogos; todos haviam chegado com as próprias pesquisas a uma concepção da psique muito próxima ou complementar à sua. Foi particularmente fecundo o encontro de Grof com Abraham Maslow o qual, chegando a conclusões semelhantes àquelas de Grof, conduzira uma longa pesquisa sobre os estados místicos espontâneos ou sobre experiências de cume. Deste encontro nasceu a ideia de fundar uma nova disciplina capaz de combinar a ciência com a espiritualidade e estudar os vários níveis ou estados de consciência. A este novo movimento foi dado o nome de “psicologia transpessoal”.

Ao longo dos quarenta anos que dedicou ao estudo aprofundado sobre a psique humana, através da observação dos estados não ordinários de consciência em si mesmo e nos outros, Grof chegou a algumas conclusões radicais. “Hoje”, afirma Grof, “acredito que a consciência e a psique humana sejam muito mais do que um produto acidental dos processos fisiológicos do cérebro; elas são o reflexo da inteligência cósmica que permeia a inteira criação. Não somos somente máquinas biológicas e animais altamente desenvolvidos; somos também campos de uma consciência sem limites que transcende o espaço e o tempo. Nesse contesto a espiritualidade é uma dimensão imprescindível da existência”.

O LSD, uma vez fugindo do controle terapêutico, revelou a sua periculosidade. O consumo por parte de pessoas não preparadas a este tipo de experiência pode efetivamente ter um resultado desestruturante para a personalidade. O LSD foi considerado ilegal e Grof, aprofundando os seus estudos sobre os estados não ordinários de consciência, defendia a idéia que cada ser humano tem direito de se empenhar na busca de um estado de maior inteireza; em resposta a tal direito, Grof desenvolveu a “Holotropic Breathwork”, ou seja, a respiração holotrópica, um valioso método de respiração. Associada à música evocativa e ao trabalho corpororal, a respiração holotrópica, num contexto seguro, pode causar a aparição de uma inteira galeria de experiências sanativas, comparáveis àquelas produzidas pelo uso de plantas alucinógenas ou pelo LSD, com a evidente vantagem que não se trata de uma substância estranha ao organismo. A grande diferença observada quando os estados não ordinários de consciência são ativados através de elementos naturais – como a respiração e a música – é que a psique humana parece entrar em contato “com algo” que possui uma atividade terapêutica espontânea. Esse “algo” é chamado por  Grof o “curador interno” o qual, como um “radar interior”, é apto a selecionar o material inconsciente que, naquele determinado momento, se mostra terapêutico e pode ser elaborado pelo “experienciador”. Muito diferente, portanto, do uso de substâncias como o LSD que podem provocar experiências psicologicamente devastadoras se a pessoa não conseguir elaborá-las e integrá-las.

A respiração

 

As nossas mais antigas tradições espirituais sempre utilizaram vários meios através dos quais o ser humano transcendia a própria identidade individual e encontrava, para além do tempo e do espaço, a sua posição numa dimensão mais ampla, satisfazendo desta forma, a insaciável necessidade de espiritualidade tão intrínseca à natureza humana. Em todas as antigas tradições os participantes sabiam o que significava ultrapassar as fronteiras da existência cotidiana e explorar realidades muito além da consciência ordinária; a ultrapassagem ocorria durante os rituais de possessão, na prática das variadas técnicas do êxtase utilizadas no xamanismo, nos sagrados mistérios de morte e renascimento praticados na Antiga Grécia e na Ásia Menor: os mistérios eleusinos, os rituais dionisíacos, os mistérios de Attis e de Adônis etc.

Desde tempos imemoráveis, a respiração (o “sopro vital”) foi utilizada como valioso meio de acesso ao mundo interior. Através da respiração é possível chegar a estados não ordinários de consciência, catalizando, assim, intensas experiências que se demonstram terapêuticas e conduzem a profundas mudanças. As modalidades respiratórias utilizadas a tal escopo vão desde interferências drásticas na respiração até refinados exercícios utilizados pelas diversas tradições espirituais como o pranayama, por exemplo. O batismo, na sua forma original (como era praticada pelos Essênios) consistia na imersão  forçada do batizando na água até a levá-lo às portas da morte por asfixia. Transformações profundas na consciência podem ser provocadas tanto pela hiperventilação como pela retenção prolongada da respiração. Práticas sofisticadas deste tipo podem ser encontradas também na meditação taoísta, na Kundalini yoga, no Siddha yoga, nas práticas Sufi etc.

J.A.Gaiarsa (psiquiatra e psicanalista junguiano-reichiano) contradiz a psicanálise clássica no que refere à primeira fase do desenvolvimento do eu; segundo a concepção clássica, a primeira fase do desenvolvimento do eu seria oral, mas Gaiarsa defende a idéia que o primeiro momento tanto do desenvolvimento quanto da formação do eu é respiratório, pois “respirar” é a primeira ação do recém nascido: “o movimento respiratório começa com o nascimento, se instaura juntamente com a consciência do mundo e se torna a primeira forma de consciência de si”. A psicologia junguiana, centrando a sua atenção nos eventos do ponto de vista “puramente psicológico”, parece  negligenciar a importância do corpo e dos aspectos físicos os quais são intrinsecamente ligados ao mundo emotivo, tanto que foram incisivamente reinvindicados por Reich. Os traumas físicos e os processos fisiológicos não recebem a devida importância que mereceriam, tanto no que concerne o desenvolvimento psicológico do indivíduo quanto na gênese das várias formas de psicopatologia, como se o corpo e a psique fossem duas coisas bem distintas. 

Durante a experiência holotrópica, por meio da respiração podemos abrir as portas do nosso mundo interior e nos confrontar com os elementos que foram removidos ao longo da nossa vida; sendo possível, desta forma, liberar a energia que fora empenhada na remoção, favorecemos a abertura das comportas do rio que, enfim, fluirá liberamente e nos aproximará da nossa “nascente” a qual, reclusa há muito tempo, fora mantida apartada de nós mesmos. Muitas destas experiências removidas pertencem a uma fase do desenvolvimento no qual não existia ainda a linguagem verbal, resultando, por isso, inacessíveis a uma forma de terapia cujo meio de expressão é a palavra. Também o nível perinatal do inconsciente – aquele território experiencial ligado aos fatos traumáticos do nascimento biológico – contém vivências dramáticas, emoções e energia “congeladas” que não chegam até a consciência, mas, uma vez elaboradas, favorecem o contato com as profundezas do inconsciente. Da mesma forma que os traumas psíquicos são conservados na memória do corpo, também os traumas físicos são codificados “na nossa carne” isto é, nos músculos, órgãos e tecidos. Durante uma profunda autoexploração, portanto, ocorre a ativação do inconsciente que provoca o despertar tanto da memória corporal quanto das profundas experiências não acessíveis à linguagem verbal. 

A experiência

 

Segundo Grof a evolução da consciência deve transpor as fronteiras do ego; a respiração é um dos meios mais valiosos para a realização de tal feito. A minha experiência de integração da psicoterapia verbal de tipo analítico com as sessões de grupo de autoexploração esperiencial, onde para ser ter acesso ao inconsciente se utiliza especialmente a respiração, me leva a algumas importantes reflexões sobre os limites e o tempo demandado pela terapia que utiliza somente o meio verbal: creio poder afirmar que este tipo de experiência funcione como um catalisador e acelerador do percurso analítico enquanto consegue “desemaranhar fios e nós” e agilizar o percurso terapêutico. Quando proponho este tipo de experiência costumo dizer aos futuros respiratores: “É como se, por algum tempo, deixássemos de usar o carro (a terapia análitica-verbal) e pegássemos um avião, ou, ainda melhor, uma espaçonave. O próximo passo será voltar ao carro para analisar e refletir sobre a viagem espacial”.

 Durante a experiência holotrópica os vários níveis de experiência ativados: biográfico, perinatal e transpessoal se manifestam em muitos casos através de um denominador comum, por exemplo, a rejeição, a solidão, o desafio etc, definidos por Grof, COEX ou “sistemas de experiência condensada”: um conjunto de vivências, recordações, sensações que pertencem a vários períodos da vida da pessoa; todos eles estão ligados por uma mesma tonalidade emotiva ou sensação física, como se tudo girasse em torno de um único grande tema arquetípico. O conceito de sistemas COEX como “princípios ordenadores gerais da psique humana”, num certo sentido, nos remete à ideia de Jung sobre os “complexos psicológicos”.

O papel do terapeuta é apoiar o processo experiencial com plena confiança no potencial de cura do próprio processo; sem influenciá-lo ou manipulá-lo deve dar-lhe apoio mesmo quando não é compreendido de imediato. Acontece com frequência que os “insights” correspondentes venham à tona depois da experiência ou durante as próximas sessões. Em alguns casos a superação do conflito ou do “sintoma” ocorre a nível biográfico, ou então relacionado ao material perinatal ou a vários temas transpessoais. A violência e a dramaticidade de algumas experiências podem suscitar no terapeuta o impulso a querer controlá-las ou desencorajar a sua plena expressão. Saber administrar a variedade e intensidade das esperiências exige que o terapeuta tenha uma autêntica confiança no processo e uma pessoal habilidade com os estados não ordinários de consciência.

Transcreverei mais adiante os relatos de alguns “experenciadores” participantes da experiência holotrópica, muitos deles faziam simultaneamente terapia verbal de tipo analítico (junguiano). Em média, os grupos contam com a presença de 8 a 12 pessoas e a duração da experiência é de um dia e meio. O material apresentado foi escrito pelos próprios experienciadores e conservado intacto, tal como era. Em alguns casos, por questão de espaço, exclui alguns trechos menos significativos. A idade corresponde à idade real dos participantes sendo que os nomes foram naturalmente modificados. Os participantes aceitaram de muito bom agrado descrever a própria experiência e aproveito a ocasião para agradecê-los pela valiosa colaboração.

As experiências que ocorrem nos estados não ordinários de consciência ativados durante a respiração holotrópica expressam vários “níveis” do inconsciente que se sobrepõem e se confundem. As manifestações físicas variam do calor ao frio, correntes de energia que atravessam o corpo, dores ou “tetanias” em diferentes partes do corpo que podem chegar à paralisia temporária dos membros, do rosto, do corpo todo.

Durante o processo holotrópico emergem intensas emoções que, na maioria das vezes, se manifestam juntamente com imagens de pessoas, situações ou fatos que os suscitaram. Tais vivências estão frequentemente associadas a lembranças de acontecimentos infantis ou biográficos; às vezes, porém, dizem respeito a certas imagens, acontecimentos ou situações que parecem estranhas à vida pessoal do respirante, embora sejam igualmente portadoras de um profundo significado para aquele específico indivíduo naquele determinado momento.

Grof descreveu amplamente as chamadas experiências “perinatais” (“próximas ao nascimento”). Em tais casos não somente se “revive” o nascimento biológico como também se ativa o nível “arquetípico” da psique com importantes efeitos psicológicos, filosóficos e espirituais. As experiências transpessoais, cuja descrição não é particularmente fácil, serão tratadas em seguida.

O relato pertence a Mario, um jovem de 25 anos de idade, que trabalha com informática; a descrição faz parte de uma sessão respiratória e apresenta algumas manifestações físicas.

… parecia que o ritmo respiratório não fluísse regularmente como na sessão anterior. Procurei me concentrar e quando consegui entrar no processo, senti uma dor fortíssima na barriga, como se algo quisesse sair de mim, mas não achasse o caminho. Algo se movia e empurrava cada vez mais nervosamente. Fui ajudado por Virginia que com um pouco de pressão diminuiu o peso que eu estava sentindo. Mesmo assim a dor não parou, e, por debaixo da pele, começou a se deslocar até o meu ombro direito onde se instalou; justamente naquele ponto eu tenho a tatuagem de uma pantera. Dentro do contexto que eu vivia naquele momento me pareceu normal identificar a dor que eu sentia com a própria pantera que dava a impressão de ganhar vida, ela enterrava as garras na minha pele e se movia como se quisesse saltar para fora do meu corpo … eu podia sentir exatamente, sobre a pele, onde ela cravava as garras … então eu segurei mais forte a mão da minha acompanhante (“sitter”) e senti que quando eu fazia isso, a dor diminuia, porém, infelizmente, ainda estava lá e me machucava. De repente, a dor cessou … 

Eu estava mergulhado numa escuridão profunda, negra, eu me sentia bem… Ouvia música ao longe e via uma fogueira e danças tribais… uma tribo inteira que dançava ao redor do fogo. Embora não entendesse o significado daquilo tudo, eu queria participar. A respiração, a batida do coração, a circulação do sangue, tudo seguia o ritmo da música e quanto mais eu me deixava levar pelo ritmo, mais me aproximava do fogo. Depois, de repente, fui invadido novamente pela sensação de terror e angústia, mas, desta vez, não era interna; havia uma presença externa que me aguardava, eu me sentia atraído e me aproximava cada vez mais … logo em seguida, nos encontramos. Eu estava assustadíssimo, a pantera estava cada vez mais perto de mim e eu tinha certeza absoluta que me atacaria a qualquer momento…

A minha experiência foi interrompida pela necessidade de ir ao banheiro. Ao meu retorno eu tinha muito medo de retornar ao estado anterior, pois eu sabia o que me aguardava; estava muito cansado e achava não ter mais forças para enfrentar novamente aquela situação. No dia seguinte Virgina me sugeriu repetir a experiência já que eu sentia que ela não se completara, não tinha ido até o fim. Refleti sobre a proposta e resolvi tentar mais uma vez, aceitando o desafio embora eu estivesse um pouco assustado. Iniciar o processo foi difícil, eu sentia medo, terror, pânico, uma sensação opressiva e instintivamente eu me refugiava num estado de apnéia; eu sabia, porém, que, bloqueando a respiração, resolveria o problema somente temporariamente, pois, logo em seguida, me depararia novamente com ele. Eu precisava me armar de coragem e viver a experiência até o fim. Quando me deixei levar… eu me senti literalmente invadido por um terror violento, sentia o apoio da minha acompanhante (“sitter”) … o tempo parecia não passar; naquele momento eu queria estar em  qualquer outro lugar exceto ali… sentia que de um momento para outro algo me atacaria sem me dar a mínima possibilidade de reagir … e, ao invés disso, quando me abandonei completamente consegui encontrar o meu lugar na tribo que dançava ao redor do fogo, e então comecei a sentir no peito uma energia nova que crescia; no começo era somente um pontinho de luz, pouco depois se tornou um círculo de luz e energia que me invadia o peito e se expandia cada vez mais até atingir todas as extremidades do meu corpo: a cabeça, os ombros, os braços, as pernas, os pés e não parou ali, foi como se explodisse iluminando tudo ao  meu redor, varrendo literalmente para longe a escuridão que me oprimia, embora aquela energia fosse para mim a própria escuridão. Era como se o fortíssimo senso de opressão, angústia, medo, terror assumisse a forma de algo que agora me alimentava, me dava energia e não se limitava a nutrir somente a minha pessoa, mas se expandia, tocando tudo o que estava ao meu redor; quanto mais eu me beneficiava daquela sensação, quanto mais eu a aproveitava, mais ela se expandia e ganhava força.

A sensação vivenciada, portanto, me fazia pensar que eu era o elemento que faltava naquela tribo, a qual, por sua vez, estivera ali desde sempre, aguardando que eu estivesse pronto. Desta forma, assim que eu entrara no círculo de pessoas ao redor do fogo e encontrara um lugar para mim, uma colocação própria, algo se completou e tudo se transformou em energia; tive então a certeza que eu acabara de entrar em contato com uma parte de mim mesmo que jamais havia notado ou mesmo sabido que existisse.

Segue mais uma parte do relato de Mario: ele estava em terapia há cerca de seis meses e, durante aquele período, não obstante a análise dos sonhos e das associações verbais, não conseguia trazer à tona uma situação traumática relacionada aos seus sintomas e sofrimento atual. Era como se faltasse sempre uma peça do quebra-cabeça. Os primeiros anos da sua infância eram bastante nuvolosos e confusos e, eu tinha conseguido vagamente intui alguma coisa a respeito. Em seguida, reproduzo um trecho onde Mario relata a sua primeira experiência holotrópica:   

 

… na segunda imagem vivenciada eu era criança, recém-nascido e me via nos braços da minha mãe. A sensação era de proteção, segurança, amor e afeto, mas por mais que me esforçasse para ver nitidamente o rosto materno, não conseguia. Malmente podia reconhecer o seu vulto, e a imagem que chegava até mim me confundia. Por mais amor que aquela mulher me transmitisse, a imagem delineada e as feições que eu observava não eram aquelas de minha mãe.

Esta experiência me deixou muito confuso, não podia entender o que estivesse acontecendo, me perguntava qual seria o motivo daquela visão, quem era aquela mulher e o que o meu inconsciente estava tentanto me dizer. Qual era o segredo que se escondia nas profundezas do meu Eu? Qual a razão para vir à tona justamente agora?

 

Dois dias depois desta experiência, Mario fez uma difícil pergunta aos seus pais. Conhecer finalmente a sua verdadeira história, aquela que lhe fora escondida por toda a vida, isto é, que ele fora adotado ainda em tenra idade, foi para Mario uma “revelação”. Esta revelação liberou uma grande quantidade de energia e transformou completamente a sua relação com os pais; antes, oprimido pelo peso desta enorme “sombra”, ele chegara quase ao ponto da total incomunicabilidade.

Graças à experiência emotiva vivenciada e a demolição dos bloqueios, a pessoa pode entrar em contato com aspectos de si mesma que haviam sido removidos da sua consciência. Assim, a grande energia liberada permite que a psique conte com maiores recursos, é como se, num certo sentido, ela tivesse sido “desobstruida”, podendo ir ao encontro de todas aquelas potencialidades às quais, anteriormente, não tinha acesso. Quando o quadro se completa desta forma podem ocorrer experiências realmente surpreendentes.

 

As experiências perinatais

 

Quando durante uma profunda autoexploração experiencial se vai além do nível biográfico do inconsciente, além das lembranças da infância e se alcança o momento do nascimento, emergem emoções e sensações físicas de grande intensidade, associadas a imagens arquetípicas, impregnadas de “numinosidade”. A razão deste “vir à tona” conjuntamente escapa à lógica ordinária, podendo ser melhor descrita nos termos de uma “lógica experiencial” pois não se baseia numa semelhança formal, mas sim na constatação que as sensações físicas e emotivas pertencem ao mesmo universo vivencial.

Para a medicina oficial, durante o nascimento, o recém-nascido ainda não é dotado de consciência já que a cortiça cerebral ainda não foi totalmente mielinizada: isso significa que os neurônios cerebrais não estão inteiramente revestidos pelo invólucro protetor o qual se formaria a partir de uma substância chamada “mielina”. Para esta opinião, portanto, o nascimento é uma experiência absolutamente irrelevante, pois não é registrado na memória. Tal hipótese se choca violentamente com as observações de Grof, entrando em contradição também com uma ampla literatura que descreve a enorme sensibilidade do feto durante o período pré-natal. Sabe-se que a capacidade de memorização está presente em formas de organismos que não são dotados de cortiça cerebral, estando presente até mesmo em alguns organismos monocelulares. Segundo Grof esta absurda contradição lógica dentro do pensamento científico poderia ser uma ulterior confirmação da forte repressão emotiva à lembrança do nascimento na nossa cultura. As teorias mais modernas, baseadas nas profundas autoexplorações experienciais, defendem a tese segundo a qual a lembrança do nascimento está registrada na nossa memória até o nível celular, incidindo profundamente no nosso desenvolvimento psicológico.                                                                                                                                                                                    

A gama das vivências e imagens ativadas durante a experiência perinatal não se limita somente aos elementos físicos e psicológicos ligados ao nascimento biológico; nessa etapa do processo ativa-se o nível arquetípico da psique; o confronto experiencial com o nascimento e com a morte assume uma dimensão “universal” provocando uma abertura na direção de novos horizontes existenciais. A íntima conexão experiencial entre nascimento e morte nas profundezas do inconsciente reflete o fato que o nascimento é um evento potencialmente mortal; a passagem pelo canal do parto é uma passagem “realmente” arriscada e, embora fatalidades fossem mais frequentes no passado não são excluídas no presente, podendo efetivamente conduzir à morte. Sendo assim, na condição de seres humanos, carregamos dentro de nós (preservada no inconsciente coletivo) a lembrança ancestral de tantos outros nascituros mortos na batalha contra o corpo materno para vir à luz. O nascimento é, portanto, um fato perigoso e “duplamente” mortal que põe um fim drástico na vida paradisíaca que se tinha no interior do líquido amniótico: enquanto organismo aquático, vivendo em simbiose com a mãe, o feto “morre” para nascer numa nova forma de vida “separada” do corpo materno, uma forma de vida que respira o oxigênio do espaço onde se encontra.

Grof divide as experiências perinatais em quatro diferentes categorias experienciais; ele as chamou de “matrizes perinatais de base”, sendo que cada uma delas se associa a um estado clínico do parto:

Primeira matriz perinatal de base ou o “universo aminiótico”.

Esta matriz está relacionada à existência do feto dentro do útero materno. Quando revividas, as lembranças pré-natais causam uma sensação dominante de ausência de limites, um sentimento oceânico de união com o todo, com o espaço, com as galáxias e com o cosmo inteiro; este sentimento pode culminar num êxtase paradisíaco denominado de êxtase oceânico ou apolíneo. É possível que a natureza aquática do feto se exprima por meio de imagens ou sensações de flutuabilidade, como por esemplo “flutuar num liquido”, no mar e nos lagos, podendo ocorrer até mesmo uma  identificação com o próprio oceano. Emergem também imagens da natureza no seu máximo grau de esplendor, generosidade, aconchego, reinos celestes e paradisíacos descritos pelas várias culturas (“colo bom”). Quando se revivem episódios de distúrbios intra-uterinos provocados por mudanças tóxicas no corpo materno (“colo mau”) as sensações provadas durante a vivência se transformam em sentimentos terríveis e ameaçadores, de um perigo vital iminente, como por exemplo, sensações de envenenamento ou assustadoras visões arquetípicas de entidades demoníacas. Caso se reviva uma ameaça ou uma tentativa de aborto, a vivência adquire a dimensão de um perigo universal com visões de imagens apocalípticas do fim do mundo. Nestes momentos se sobrepõem e si misturam fatos do nosso parto biológico e arquétipos do inconsciente coletivo.

A seguir, o relato de Paola, 32 anos:   

 

Uma noite antes de participar da “respiração”, sonhei que eu estava como que presa num rodamoinho dentro do qual eu me movimentava com dificuldade, procurando a saída; num segundo momento, não só consegui achar a saída como também, ao sair do rodamoinho entrei num ambiente arejado e muito iluminado. Ao despertar, a sensação foi de bem-estar e de positividade pela experiência que me aguardava.

A atmosfera era agradável, como o era também o local no qual nos reuníamos e, mesmo não conhecendo as demais pessoas, não foi difícil colaborar e adquirir mútua confiança. Cada um de nós “escolhera” o companheiro com o qual queria compartilhar a experiência e assim, reunidos em duplas, olhávamos diretamente nos olhos do nosso parceiro. 

Cada membro da dupla se alternaria no papel de experienciador e acompanhante (“sitter”). Eu me sentia muito bem e estava disposta a aceitar, sem preconceitos, tudo o que acontecesse durante a experiência; tentaria colocar o menor número possível de barreiras diante do que estava prestes a experimentar, sentir ou ver, mas sem esperar nada de especial.

De olhos vendados, deitados no chão e cobertos começamos a “respiração”; cada um de nós estava acompanhado pelo próprio “sitter”, o qual tomaria conta do parceiro, zelando para que nada de perigoso ocorresse durante a “viagem”. Começando a respirar de forma diferente do habitual, a oxigenação das células e dos tecidos aumentou e as extremidades do corpo: mãos, pés, cabeça, e em mim particularmente a maxila, os dentes e a boca, começaram a enrijecer-se, causando uma sensação muito desagradável; porém, como a doutora Salles nos dissera precedentemente que isso poderia ocorrer, não fiquei assustada. Considerando que normalmente a minha tendência é querer manter o controle da situação, este estado de impotência, por um momento, me perturbou, mas sentindo a garganta que lentamente dava passagem a um pranto leve e liberatório me senti aliviada. A sequência de músicas que ouvíamos em alto volume me fez entrar definitivamente na “viagem”; num segundo momento foram as músicas que estimularam e deram sustentação a todas as emoções que alternadamente passaram pelo meu corpo e mente.

Lembro-me de ter pensado por um momento: “Quem sabe quantas coisas estarão escondidas no meu interior, quantas coisas que não pude ou não quis dizer por medo de ser julgada, de não ser compreendida, de não ser amada, por medo de fazer alguém sofrer, por medo …”

A “viagem” continuou, e, seguindo a música, primeiro o choro se transformou em riso, depois o riso se fez risada e esta finalmente se transmutou numa longa gargalhada que eu não conseguia controlar; eu ouvia a minha gargalhada, tão cristalina e refrescante, como há muito tempo não me acontecia. Eu precisava mais da gargalhada do que do choro; agora, ouvindo a minha gargalhada, a garganta prestes a explodir naquele gargalhar, eu sabia que aquela era a sensação da qual o meu ser precisava e que agora podia tê-la. Este momento, juntamente com o que veio em seguida, foi o mais bonito de todos, ele me trouxe paz e serenidade profundas, onde as cores se misturavam e flutuavam como nuvens, onde o peso, o tempo, o espaço, os limites eram inexistentes; eu fazia parte do todo e não tinha forma nem semblante, eu me sentia dentro do todo, amalgamada às cores e feliz, profundamente feliz e satisfeita.

A fragorosa risada foi lentamente diminuindo e o corpo relaxou; a energia começou a fluir, circulava sem obstáculos, e branda, quente, aconchegante me levou a um estado de total leveza, de beatitude. Esta sensação me acompanhou até o final da experiência, isto é, até quando senti que a concluíra e que o estado no qual me encontrava não podia ser suplantado por mais nada.  Depois, eu me senti como se acordasse de um longo sono restaurador e, ainda tomada em parte por aquela sensação, me pus a desenhar o meu mandala.

A prática como “sitter” e a possibilidade de observar a experiência das demais pessoas que se encontravam no local me fizeram entender o quanto as emoções possam ser a barreira ou o motor da nossa vida; se pudermos vivê-las de forma plena, se as acolhermos e as apoiarmos de forma não superficial, se não forem simplesmente julgadas, as emoções nos tornam mais fortes, mais corajosos e, sobretudo, capazes de gozar a vida.

 

Segunda matriz perinatal de base: “submissão cósmica sem via de saída” ou o “inferno”.

Quando durante a autoexploração ativa-se o momento em que começam as contrações uterinas, mas ainda não há a dilatação da cérvice, a ansiedade cresce até o sentimento absoluto de solidão, impotência, desespero, perda de esperança, podendo chegar até mesmo à paranóia. A impressão é que somos sugados para dentro de um violentíssimo tornado, ou então, devorados por um animal monstruoso como uma baleia, uma lula-gigante, uma tarântola, ou até um monstro di dimensões arquetípicas como um leviatã, um dragão etc. O tema mitológico recorrente é a descida ao mundo subterrâneo que nos aguarda: o reino dos mortos ou o inferno. Nestes momentos podemos nos identificar com homens, animais e até mesmo seres mitológicos, vítimas de torturas e encarceramentos em situações dolorosas, onde não há esperança; tais situações fazem lembrar a situação vivida pelo feto, comprimido e sufocado, no útero que o expele. Este sofrimento pode atingir dimensões arquetípicas, ocorrendo, por exemplo, identificações com Cristo na cruz ou com almas penadas, abandonadas no inferno; podem ocorrer ainda identificações com personagens mitológicos cujo padecimento foi extremo. Um desses episódios nos remete à terrível condenação de Sísifo; o nosso jovem, uma vez no Hades (o reino dos mortos), foi condenado a empurrar, por toda a eternidade, uma pedra até o cume de uma montanha, a qual, uma vez lá em cima, rolava montanha abaixo novamente sobre Sísifo; e como o jovem Sísifo tantos outros personagens mitológicos, vítimas de sofrimentos atrozes: Tântalo, Prometeu etc. A filosofia existencialista com a sua visão de um mundo absurdo e ausente de significado, um “mundo de “papel machê”, parece ser a mais adequada descrição da segunda matriz. Na literatura mística esta vivência de imenso sofrimento é descrita como a “escura noite da alma”, um doloroso momento que é também fecundo e transformador, portador de “iluminação” e liberdade.

Miguel, 50 anos, descreve a sua primeira experiência de respiração:

 

1  Visão

Água preta, floresta negra ao redor da água. Provavelmente um rio. Estou dentro dele e observo. Dois crocodilos. Um deles grita como se fosse um golfinho e é atacado pelo outro crocodilo que o morde no pescoço; os dois afundam na água preta. Sinto a injustiça e a crueldade, o mal que aquele fato representa. Quando a cena se repetirá outras vezes, o meu sentimento se altera, e passo a achar que é justo que seja assim.

Eu me adentro na mata, à minha esquerda vejo o meu pai. Enquanto respiro, digo “pai, me ajude”, repito a frase várias vezes. Vejo dois sóis. 

2  Corpo e processo

De repente, as minhas mãos se erguem gradualmente com as palmas para o alto. É como se eu quisesse conter em minhas mãos os dois sóis que vejo ou também a música que me atravessa o coração. Permaneço naquela posição por um bom tempo e, para mim, é surpreendente que eu consiga aguentar naquela posição por tanto tempo. Num certo momento, procuro unir as mãos como seu eu fosse rezar, mas não é possível. Consigo uni-las alongando-as atrás da nuca.

 

Intervalo: Em seguida, por alguns minutos os meus gestos adquirem os movimentos de uma odalisca.

 

3  Acme

De repente começo a me contorcer e dou socos no colchão onde estou deitado, grito e choro. É um desespero absoluto, incontrolável, para o qual não há saída ou redenção. Eu me contraio de dor com o corpo voltado para o chão.

4  Êxito

Exausto, me deixo ficar numa única posição por cerca de uma hora e depois, durante o tempo restante, permaneço deitado com o rosto voltado para o chão, imóvel. Depois, eu me levanto acreditando que estou só. Ao invés disso, me deparo com todos os demais participantes. Eu fora o último a concluir a experiência. 

 

Elaboração: vejo a dor que se contorce em si mesmo e se agita sem esperanças, dentro daquela dor que se contorce vejo a mim mesmo, os meus familiares e antepassados. Constato que sempre houve dor, dor sem fim, sem escopo, sem saída.

Sonhos que antecedem a experiência 

 

1 Encontro um livro de Grof numa banca de jornal. O título é: “As novas vias da hipnóse”.  

 

2 Num comício político eu faço um discurso. Estão presentes políticos de cada um dos partidos. Ao final do meu discurso, um personagem importante está indo embora e me cumprimenta. Vejo à minha esquerda uma mulher debruçada num parapeito que dá para um rio. Não a conheço. Eu abraço a mulher e o sonho termina assim.

 

Sonhos após a experiência

Sou convidado em casa de uma condessa. A casa é no meio de um vasto parque onde transita um número grande de veículos. Eu tenho o cuidado de estacionar o meu carro fora do parque para não correr o risco que, na saída, outros veículos bloqueiem a minha passagem. Uma mulher ficou grávida.

Tenho que fazer uma prova escrita. Preciso escrever sobre Deus. Penso na melhor forma de escrever sobre o tema em questão; é melhor uma redação aprofundada ou, ao contrário, devo escrevê-la de modo resumido. Seja como for, em qualquer um dos casos, escreverei sempre sobre o Deus dos cristãos, o Deus dos místicos ou dos hereges.

 

 Faço a apresentação da minha personalidade: à esquerda escrevo a minha parte boa, e à direita (através da palavra “herdeiro”) escrevo a minha parte má.

 

Eu sou parente da Sofia Loren e nós dois nos tratamos afetuosamente. Um homem famoso, um meu conhecido, me pergunta se estou bem e me diz que o nascimento ajuda a existência.

 

Abraço meu pai e lhe digo que gosto muito dele.

 

Uma estrada de neve trafegada por veículos que, embora não respeitem as leis de trânsito, passam de forma mecânica, sem que haja acidentes. Penso quantos acidentes seriam evitados se todas as ruas e estradas fossem como aquela que tenho diante dos meus olhos. O proprietário da estrada me conta que uma embarcação levará o combustível até o dia primeiro de dezembro. Um rio costeia a estrada. 

 

Terceira matriz perinatal de base ou “luta de morte e renascimento”.

 Esta matriz está relacionada à passagem gradual do nascituro pelo canal do parto quando a cérvice se abre depois que as contrações uterinas tiveram início. As experiências que acompanham a reativação desta passagem do nascituro através do corpo materno são caracterizadas por um verdadeiro e próprio reviver realístico de acontecimentos do passado e também por uma grande ansiedade, pressões fortes e asfixiantes, dores e certo grau de sufocamento. A luta extenuante para se libertar do corpo materno é expressa através de imagens, emoções e sensações que emergem com todo o sofrimento derivante; estamos diante de uma síntese e de um condensado de toda a destrutividade humana: vivências e cenas cruentas de guerras e massacres, estupros, mutilações e torturas, bombardeamentos, batalhas arquetípicas como a batalha cósmica travada entre as forças do bem e do mal etc. Frequentemente as pessoas que vivem tais experiências participam dos acontecimentos simultaneamente no papel da vítima, do agressor e do observador. Durante esta etapa, cessa o sentimento de impotência que é típico da situação descrita precedentemente, quando não é possível encontrar “uma saída”; agora estamos ativamente envolvidos numa violenta batalha, somos invadidos pela sensação que o sofrimento tenha uma direção, um fim preciso, um significado. Na terminologia religiosa podemos pensar num purgatório, mais do que num inferno.

A experiência desta matriz é muito rica e complexa já que se associa à sua imensa agressividade uma forte excitação sexual e imagens típicas de uma sexualidade pornográfica, transviada, como, por exemplo, estupro, episódios incestuosos, abuso e violência sexual, práticas sado-masoquistas etc; a lógica experiencial de tais imagens nem sempre é passível de ser compreendida de imediato, mas parece estar relacionada à tendência da natureza humana a transformar o sofrimento extremo (em particular o sufocamento) num tipo peculiar de excitação sexual que culmina em êxtase arrebatador. A literatura religiosa sobre a vida dos mártires e dos flagelados é rica de episódios exemplificativos de tais vivências. As observações e pesquisas sobre os estados holotrópicos de consciência indicam que a associação existente entre excitação sexual e ansiedade, agressividade, grave perigo vital, dor física e escatologia (o encontro do nascituro com vários tipos de material orgânico materno) é a origem da maior parte dos transviamentos, perversões e disfunções sexuais; tais desviações foram amplamente estudadas e descritas por Grof em todas as suas implicações práticas e teóricas. A liberação da energia aprisionada neste nível da psique tem implicações que vão além do individual e assumem uma importância fundamental concernente aos aspectos mais destrutivos da natureza humana do ponto de vista coletivo.

Durante o momento de transição da terceira para a quarta matriz perinatal, as vivências emotivas se tornam menos violentas e angustiantes e são acompanhadas por figuras arquetípicas de divindades, heróis, semideuses, figuras que representam a morte e o renascimento como Cristo, Dionísio, Attis, Adônis etc… O momento da transição também pode ser caracterizado pela experiência do encontro com o fogo (experiência piroclástica) cujo símbolo é a legendária fênix, o pássaro que na mitologia árabe morre consumido pelas chamas, para, em seguida, renascer das próprias cinzas. 

Mais uma vez, será Miguel, 50 anos, a nos falar da sua experiência:

 

Sonho que antecede a respiração:

Uma janela ou um quadro ou um quadro e uma janela sobrepostos.

 

A quarta experiência de respiração

Vejo uma luz e, em seguida, um homem pré-histórico (acho que seja um indígena africano; depois, a uma certa distância, vejo dois dinossauros, um herbívoro e um carnívoro, a paisagem é dotada de uma vegetação luxuriante). Eu sou o homem pré-histórico, seguro uma lança na mão direita e estou em posição de ataque. Eu me pergunto se estou sozinho. Sei que preciso caçar os dinossauros. Agora me reconheço como chefe de uma tribo de homens pré-históricos; todos estão excitados e, armados de  flechas, querem caçar os dinossauros. Como temos somente uma lança, eu sei que não podemos errar a mira; o golpe deve ser mortal, caso contrário os dinossauros se voltarão contra nós. Com a mão esquerda faço sinal para que o grupo espere, e com a mão direita arremesso a lança. Os outros estão impacientes. Digo que devem aguardar, e enquanto aguardam, devem dançar antes de matar. O bando dança ao meu redor empunhando as flechas. Sei que devo esperar o momento oportuno (foi-me dito que fiquei nesta posição de espera por uma hora). De repente, vejo a cena toda dentro de uma esfera que é o mundo. Uma mão que surge externamente à cena está segurando a esfera. É a mão de Deus. Eu me interrogo se Deus permitirá que ocorra a violência que estou prestes a cometer. A minha resposta é afirmativa. Deus consente. No final, eu me levanto decidido, tenho a certeza que o momento é aquele. Grito e o meu rugido é o sinal aguardado por todos. Arremesso a lança. Acertamos o dinossauro. Imediatamente depois de tê-lo golpeado eu digo ao grupo (sei que a tribo comerá a carne crua do dinossauro) que devem trazer para mim o sangue do animal. Antes que déssemos início a um verdadeiro banquete, o sangue, recolhido em vasilhas, me foi entregue. Bebi o sangue das duas primeiras vasilhas e, espalhei pelo meu corpo todo o sangue da terceira vasilha. Depois de um intervalo, continuo a me ver naquele lugar primitivo só que agora a minha aparência é ocidental, e nesses novos trajes eu saúdo os homens pré-históricos.

 

1° Sonho após a respiração

Em competição com outro menino, cada um de nós procura roubar do outro uma rosa vermelha. Eu roubo dele um caminhãozinho que ele segurava enquanto andava de bicicleta. No fim, ele é ajudado por outras duas crianças que lhe passam o brinquedo e me tiram da mão a flor.

 

2° Sonho após a respiração

Meu pai entra em casa. Dentro de casa estão minha mãe e meu irmão. Eu saio com ele em direção da rua, pois lhe devo falar (na realidade meu pai faleceu quando eu era criança).

Quarta matriz perinatal de base ou “a experiência de morte e renascimento”.

Esta matriz está relacionada ao último estado do parto sendo a conclusão da difícil passagem do nascituro através do corpo materno, a liberação final do neonato que é dado à luz e tem o seu cordão umbical cortado. Este estado é acompanhado de vivências e sensações concretas ligadas à memória de fatos específicos como a anestesia, a pressão do fórcipe, manobras obstétricas etc. Durante o processo do nascimento o nascituro é completamente imobilizado no estreito canal do parto; naquele momento, portanto, a criança não pode reagir ou exprimir as intensas emoções que sente; sendo assim, este episódio traumático não é completamente expresso e nem psicologicamente assimilado. É como se tivéssemos nascido biologicamente, mas não emotivamente; como se, na verdade, jamais tivéssemos realmente nos recuperado emocionalmente desta experiência traumática. Durante a reativação deste momento do nascimento no estado holotrópico de consciência, ocorre a conclusão e a elaboração do trauma originário e a liberação da energia aprisionada nestas profundezas do inconsciente. A ativação da dimensão arquetípica do inconsciente que acompanha tal momento da experiência perinatal faz deste episódio algo que se estende para muito além da tão somente reativação do trauma biológico originário; é, na verdade, uma experiência arquetípica de morte e renascimento psicológico na sua mais completa acepção psicológica, filosófica e espiritual.

O momento mais dramático da quarta matriz perinatal é definido como “a morte do ego”; ela é descrita como terrível vivência de morte e perda de todos os pontos de referência, acompanhada de sentimentos como a agonia e o êxtase; em seguida, tais sentimentos são substituídos por um sentimento de extraordinária liberação, redenção e salvação; um verdadeiro fluxo de emoções positivas, sentimento de amor profundo, incondicional pela vita, pelos seres humanos e por toda a criação. Este tipo de êxtase, definido como dionisíaco ou vulcânico, possui um grande potencial de cura e transformação. Na realidade, o que se vive como uma experiência assustadora, uma catástrofe de proporção universal é, de fato, a morte do nosso falso ego o qual (até aquele momento) pensávamos que fosse o nosso verdadeiro eu. Somos incapazes de ver para além do que conhecemos de nós mesmos ou até mesmo de ver se há “alguma coisa” do outro lado. Este medo provoca uma enorme resistência frente ao prosseguir, a completar o processo e, sem um apoio adequado, corremos o sério risco de permanecermos presos neste difícil território existencial. Imediatamente após a experiência de anulação e morte, uma vez superada tal fase, somos invadidos por visões de uma luz branca ou dourada, cuja intensidade e beleza são sobrenaturais, encontros com entidades arquetípicas como, por exemplo, a Grande Mãe – retratada segundo as várias interpretações das diferentes culturas –, e, por fim, nos abrimos a um sentimento “cósmico” de comunhão com a natureza e com todo o universo. 

A experiência da forma como foi descrita ocorre quando o nascimento não contou com a presença de uma anestesia muito forte ou de outras intervenções drásticas. Quando pelo contrário, houve a presença de anestesia ou de intervenções muito invasivas, não é possível experimentar a sensação triunfante de emergir finalmente à luz; o que se sente é mais parecido com um estado de lenta convalescência ou de ressaca.

Cíntia, 36 anos, descreve a sua experiência:

 Estou amarrada, imóvel como uma estátua: tenho vontade de chorar. Depois, estou numa caverna escura, não muito estreita, posso me mexer um pouco, ao menos consigo virar o corpo; mas não estou respirando bem, alguma coisa me aperta o tórax e o peito; o ar não é suficiente, é pouco. Tudo está completamente às escuras, não há nenhuma saída. Sinto o desconforto da renúncia: é impossível sair daqui, me encolho toda e resolvo ficar quieta. Justamente quando resolvo fazer isso, avisto algo, como se fosse um clarão à minha direita, talvez seja uma saída. Mas, estou muito fraca e não consigo me arrastar para fora daquele buraco: tento colocar uma perna na direção da provável passagem, mas não consigo. As minhas costas doem muito, a dor é insuportável. Viro o corpo, coloco as pernas encolhidas contra uma parede, mas nada, não consigo fazer nada. A sensação é de impotência total. Agora, porém, a espiral luminosa é mais clara e a luz se abre e se fecha alternadamente; parece um esfíncter mecânico, se assemelha ao objetivo de uma máquina fotográfica que se abre e se fecha. Finalmente sinto uma constrição, um impedimento (alguma coisa pressiona os meus ombros) e isso me da força para reagir: toda vez que a passagem se abre, empurro com força os pés e então, de forma acelerada e, rodopiando sobre mim mesma como um saca-rolha, consigo sair; a sensação que tinha é que, através daquele movimento, eu conseguisse tornar mais larga a passagem. 

Assim que eu me vejo do lado de fora se abre diante de mim um mundo cheio de cores e sinto o meu corpo finalmente quente, fervente, quase livre, sem mais contrações: choro de alegria e pela sensação de libertação. Uma energia imensa invade o meu corpo, sai da minha vagina e das palmas das mãos; continuo imóvel, de braços e pernas abertas, saboreio as sensações que são tão vigorosas e agradáveis; eu me sinto profundamente “aberta” e respiro com grande facilidade como se tivesse puxado para fora uma espécie de tampa que obturava o canal da respiração; o ar circula pelo meu corpo todo. É lindo. A energia que sinto me faz acreditar que estou levitando. Acho que tenho uma luz ao redor do meu corpo, uma aura que pode ser vista também do externo.

Existem muitas pessoas ao meu redor, estão em círculo; talvez seja uma tribo que toma conta de mim, me limpa, me venera. Eu me sinto e me vejo como uma criança recém-nascida; estou completamente coberta de ouro e durmo num leito de palha. A tribo me põe para dormir e me acalenta meigamente; todos que se encontram neste verdadeiro círculo humano me pegam no colo e, conforme me passam de braço em braço, me ninam. Vejo também línguas quentes de animais que me lambem, úmidas e prazerosas. Depois me colocam num rio e sou levada, me deixo transportar pela correnteza. 

Agora sou o capitão de um veleiro num mar escuro e revolto durante uma tempestade; mas não sinto medo, venceremos as ondas. Sinto possuir uma grande força, um imenso poder.

Enfim, estou numa cachoeira de água fresca, purificante, maravilhosa. Vejo a imagem de um pintinho que, quebrando a casca, sai do ovo. Depois o olho de Deus está sobre mim. Tenho a sensação que estou em contato com o “alto” e me sinto bem como nunca me senti.

Em outras experiências respiratórias me vi em situações escuras, de pressão e enclausuramento. Mas eu sempre conseguia vir à tona, socorrida por algo que me puxava para fora: uma corda, um anjo ou dois braços fortes. Hoje, alguma coisa mudou: eu fui capaz de sair daquele lugar pelas minhas próprias forças, e acredito que foi graças a este fato que me senti extasiada… “renascida”.

Depois desta tocante experiência, eu me perguntei (relativamente espantada) como conseguira sair daquele lugar escuro contorcendo o corpo, rodopiando como um saca-rolhas; perguntando sobre isso, me foi dito que existe um movimento rotatório. De fato, o meu nascimento foi bastante complexo: eu tinha o cordão umbilical totalmente enrolado no meu pescoço e fui retirada com auxílio do fórcipe. Minha mãe pediu para ser anestesiada. 

Depois desta experiência o meu humor mudou. Eu havia transcorrido os meses precedentes num estado de profunda depressão e de intensa ansiedade: medos, receios, enclausuramentos, intolerância e impaciência com as pessoas, agitação e muita inquietação. Depois, tudo desapareceu. As forças voltaram, juntamente com a confiança em mim mesma e naquilo que me circunda.

Segundo a psicologia de Grof, as experiências perinatais representam uma espécie de “passagem” (um “portal”) que se abre para o quarto tipo de experiência e está relacionada à dimensão mais profunda da psique; tais experiências são chamadas de “experiências transpessoais” embora, às vezes, o acesso a estes territórios do inconsciente possa ocorrer sem a vivência de esperiências perinatais.

As experiências transpessoais

 

O aspecto comum dos vários tipos de experiências transpessoais é o fato que as pessoas têm a sensação que a própria consciência se dilatou para além dos confins habituais do ego, transcendendo os limites espaço-temporais os quais, nos estados ordinários de consciência, reduzem a nossa percepção da realidade. Este tipo de experiência, muito difícil de descrever, provoca – em quem a vive – um sentimento de comunhão com a vida num sentido amplo. Muitas vezes conduzem a importantes ‘insight’ de tipo existencial que dizem respeito ao significado profundo da vida, um aumento do sentimento “religioso” de pertencimento a uma totalidade mais ampla e universal e um autêntico sentimento de liberdade.

 

Francesca, 27 anos, inicia a descrição da sua experiência holotrópica com um “pensamento”:

 

“O amante mais precioso,

 o progenitor ou o amigo mais valiosos,

o mais meritório homem selvagem

é aquele que deseja aprender 

além do ponto no qual se encontra”.

 

Tenho vinte e sete anos e fiz uma “viagem”. O destino da viagem era a minha própria história e uma história que é de todos. Uma viagem pelo meu corpo e pela natureza selvagem. Há um lugar, além do tempo e do espaço, onde tudo isso – e quem sabe o que mais! – existe e vive, simultaneamente e sempre, dentro de mim. O meio de transporte que me conduziu a esta ‘extra-ordinária’ experiência não foi o “túnel do tempo” ou um avião supersônico, mas sim um meio mais simples, que se encontra “à disposição de todos”, ou seja, a respiração. Respirar é muito mais do que o ato de absorver oxigênio e expelir dióxido de carbono. O relato a seguir é sobre a minha experiência.

“Tem início a viagem…

Começo a respirar.

Quase imediatamente a tensão começou a desaparecer e se liberava através de uma, duas, três risadas. É tão bom rir assim!

Um formigamento invade o meu corpo e o sinto especialmente nas mãos e dos joelhos aos pés. Conforme respiro o formigamento se torna mais forte e mais presente: é um fluxo potente de energia que pede para ser liberada. Eu, no entanto, me oponho ao fluir da energia; não posso me abandonar a ela, pois sinto que me matará. Mas aquilo que no começo era um convite se torna uma ordem: o fluxo se faz mais potente e chega ao meu estômago. Sinto raiva. É intolerável. A raiva cresce e, dou pontapés, o corpo se contorce, estou prestes a estourar.

Alguém coloca a mão sobre o meu peito. Começo a chorar. A mão sobre o meu peito pressiona mais forte e o meu pranto é ainda mais profundo. Não quero. Eu me oponho e me debato agitada. Tenho medo de morrer. Mas a pressão aumenta (agora me parece que há duas mãos sobre o meu peito). Então, a energia contida (que nada mais é do que eu própria) se libera, chora e grita; e soluçando sentidamente, chora e ri alternadamente. Que liberação! Que maravilha! Eu sou a lava de um vulcão que jorra da cratera com força e desce pelas encostas da montanha, mais forte do que tudo, deixando para trás todos os obstáculos. Estou morta, sim, mas para renascer. 

O corpo se abre, se aplaca. O peito, sempre inclinado para frente, se infla. Sinto que se dilata, sinto o seu alívio. Respiro e rio. Abro os braços e as pernas. Vejo o mundo diante de mim e posso abraçá-lo, agora os meus braços conseguem. A pelve está relaxada e desimpedida. Sou o mundo e me sinto alegre. Rio (é muito bom ouvir que a pessoa a meu lado ri comigo, com a mesma intensidade).

Desfruto destas sensações e depois recomeço a respirar de forma mais veloz e profunda. A música é o meu guia. A sigo. Não estou mais deitada no chão e nem relaxada. Estou de joelhos, alerta, a procura… como um cão de caça, como um animal. Alguma coisa se move na minha frente e, já que os meus olhos passam a exergar tudo, como se fossem lentes de raios infravermelhos, eu consigo ver o que se move: são folhas; há milhares delas que pertencem a uma grande árvore; elas se movem, dançam e me chamam. Vou atrás delas. Sigo o meu instinto… como um animal, como uma loba. Sou uma loba e me dou conta disso quando corro dentro de uma mata fechada. Conheço o território. Não tenho medo, não sinto frio, o meu pêlo me protege da umidade da floresta. Sinto um estranho calor que parece se feito da mesma substância de um retorno caloroso ao lar. Esta é a minha casa. Corro e sou o olhar da loba. Sou a sua força muscular, a sua energia. Sou a sua coragem e o seu sexo. Corro e estou perseguindo algo. Persigo uma luz que sai de uma porta mimetizada no verde da floresta. Parece feita de um verde fosforescente e é dotada de uma imensa força magnética. É algo que me pertence e a sua essência é femina. Naquele instante, o choro e os gritos que se ouvem na sala onde “respiramos” entram no meu mundo e se tornam os uivos de outras lobas, de outros seres femininos. O meu corpo acompanha aquele uivar e se eleva numa dança. A força que me invade é gigantesca! Na floresta o meu busto se torna o tronco e os meus braços são os ramos de uma árvore secular, recoberta de musgo. Na direção do alto, para cima de onde me encontro, outros corpos femininos nascem do tronco da árvore. Dançam. São os corpos de todas as vozes que ecoam dentro da sala, são minhas irmãs.

Agora, caio no chão e estou exausta. A pessoa que me assiste me cobre e me acomoda a cabeça num travesseiro. Não tenho mais forças, quero descansar. A respiração diminui de modo natural. Por um breve tempo, eu balanço o meu corpo para frente e para trás como se me preparasse para dormir ouvindo uma canção de ninar, depois me cubro com o cobertor, sou uma menina que tem sono.

Recomeço a respirar mais rapidamente e eis o formigamento que reaparece, de modo violento. Trata-se de energia pura que, invadindo o meu corpo, vai aos poucos ganhando força. É lava incandescente produzida pela terra que agora, porém, não acha uma saída; a boca do vulcão está fechada. A tensão energética é tão violenta que literalmente paralisa a minha boca, braços e pernas. A dor física é intolerável. Procuro movimentar as extremidades, é impossível, estão adormecidas. Exceto pelo busto, perdi a funcionalidade do resto do meu corpo: estou aleijada. Não posso me mexer ou me exprimir, impossível agir ou criar. É terrível. É pior do que a morte.

Para pôr fim a este travamento, o “sitter” bate contra o chão as partes paralisadas do meu corpo, e, em resposta quase que imediata, a porta de algum outro canal sintonizado com o mundo “de fora” é arrombada e a energia finalmente flui. E, mais uma vez, a vida aflora, estou novamente viva e presente.

Eu me sinto muito cansada e confusa, mas continuo a respirar. Mais uma vez sou envolvida pela música que guia a minha respiração e o meu movimento. Tendo a impressão que o meu corpo foi atraído por um imã eu me agito num movimento espiral; eu me abandono de tal maneira a este movimento que, embora ele se torne cada vez mais rápido, eu me mantenho dentro dele, sem desfalecer. Sigo o ritmo como numa dança, a intensidade é tamanha que parece ir além das minhas forças. Eu sou aquele movimento. No final há uma luz, acima de mim. Eu caio no chão, mas o meu braço está estendido na direção da luz. Vejo olhos que, do alto, me fitam, mas eles não me assustam. São olhos de uma mulher e estão maquilados como no Oriente. Sinto o ventre que vibra. Alongo o meu corpo, como se as minhas pernas e braços estivessem amarrados, e abraço o “terrífico”. Provo uma sensação demoníaca cuja duração é de um segundo, mas é violenta e intensa. Numa dança de pequenos e imperceptíveis movimentos eu me descarrego, me torno vazia e flutuo no ar.

Abro os olhos e observo o ambiente; não consigo distinguir se todos os outros participantes ainda estejam na sala. Não tenho consciência de quanto tempo passou. O “sitter” fala comigo e eu entendo o que ele me diz, mas ainda estou dentro do processo. Fecho novamente os olhos, respiro mais uma vez e “ploff”, dou um mergulho num mar imóvel. Estou num estado de beatitude, de profundo apaziguamento comigo mesma. Eu me amo e me compreendo. Encontro a Francesca menina; ela tem o mesmo semblante que eu reconheço de uma fotografia dos meus oito anos de idade. Ela me olha com os mesmos olhos retratados na foto, profundos e penetrantes. A criança se comunica comigo sem usar palavras e me diz que ela sabe; ela sempre soube. Ela conhece o “caminho”, pois o percorreu milhões de vezes. Ela existe, sempre existiu e sempre existirá. A Francesca menina me parece firme, pura, e, ao mesmo tempo, sábia. Sorrindo, eu a observo enquanto ela caminha na direção daquele mesmo muro que, na fotografia dos meus oito anos, confinava a menina num canto da cena; ela agora transpõe o muro e o deixa para trás.

Abro os olhos, tenho um sorriso estampado nos lábios e o amor que está dentro de mim. Que encontro bonito! Os meus “novos olhos” vertem lágrimas; são lágrimas preciosas que representam o fim da viagem.” 

 

Segue a experiência relatada por Mirella, 32 anos:

 

Lembro que no dia da “respiração” eu estava muito tensa, tinha medo. Tinha medo, sobretudo, de não conseguir me abandonar à experiência, pois sempre foi uma dificuldade muito presente na minha trajetória o “me deixar levar” pelas situações.

Uma vez iniciada a “respiração” lembro de ter imediatamente sentido que o corpo se enrijecia: as mãos, as pernas, o rosto e as costas. Esta sensação durou quase o tempo todo. Comecei a enxergar várias cores: azul, amarelo, preto… Lembro que eu não queria ver o preto. Procurava fixar a atenção em outras cores. Isso me causava um ulterior enrijecimento e uma dor muito forte especialmente no pescoço. Mas o preto continuava aparecendo.

De repente, dentro desta mancha preta vejo umas luzes. Começo a achar que o preto possa ter uma função específica e então resolvo me concentrar também nesta cor. Imediatamente as luzes desaparecem e sou sugada pela mancha preta. É como se uma força me atraísse pelos pés, como se eu estivesse na presença de um “buraco negro”. Lembro de sentir muito medo. Tentando resistir à atração, fico mais tensa ainda e a dor aumenta. Tenho a sensação que o meu corpo esteja se dividindo em dois. A parte das pernas, já foi sugada para dentro do vórtice, começa a se distender, enquanto a parte superior, com a qual eu tento resistir ao movimento, me causa uma dor atroz.

No final, esgotada, desisto e me deixo cair. Eu me vejo, agora, num corredor apertado e escuro no qual aparece a figura do meu irmão Damian, morto aos 7 anos de idade (eu tinha 5 anos quando ele morreu).

Exceto pelo rosto do meu irmão, tudo o mais estava profundamente escuro. Eu me aproximo e procuro abraçá-lo com todas as minhas forças, tentando mantê-lo junto a mim. Ele, porém, não corresponde ao meu abraço, e embora o rosto do meu irmão continue visível eu não consigo sentir o seu corpo. Apesar da ternura infinita que transparecia dos seus olhos, como se ele entendesse os meus sentimentos, eu achei que ele não quisesse ficar ao meu lado e senti uma profunda tristeza.

Eu compreendo que ele deseja ir embora. Decido deixá-lo livre, mas, de repente, ouço um grito. Uma voz de mulher me pede para detê-lo. Estou muito confusa e não sei o que fazer. Meu irmão se solta dos meus braços e, lentamente, vai se distanciando. Estou muito cansada, não tenho mais forças.

A voz, explicando que somente eu posso fazê-lo, me diz para retê-lo. Eu me sinto responsável. Então, num grande esforço, estendo os braços desesperadamente para tentar agarrá-lo, mas não consigo. Neste momento, os meus dedos se enrijecem ainda mais e a dor se faz insuportável. Começo a chorar, eu sinto falta do meu irmão, me sinto sozinha e frustrada por não ter conseguido atender ao pedido daquela voz.

De repente, eu me vejo num lindo campo florido; estou sentada e reencontro o meu irmão o qual, sorrindo, me diz que era este o lugar onde ele desejava se encontrar comigo. Eu me dou conta que agora posso vê-lo por inteiro, não mais somente o rosto como no corredor escuro onde ele era somente um fantasma; estou serena.

Depois Damian se levanta da relva e eu observo que ele não cresceu, continua criança. Isso nos faz entender que o tempo passou e que não pertencemos mais ao mesmo mundo; só nos resta, portanto, nos dizer adeus, coisa que não tínhamos podido fazer no passado. Estamos ali sentados, frente a frente e ele aguarda que eu decida o momento certo para a nossa despedida.

No final, eu me despeço dele e o vejo ir embora; o caminho que ele percorre é cheio de luz e se eleva até o sol. Eu viro o rosto na direção do campo e me deleito com a sua beleza; é como se desejasse imprimir na mente todas as sensações, as cores, os odores que me circundam. Dentro de mim reina uma grande paz, um verdadeiro bálsamo que dissipa todas as tensões acumuladas.

 

Quando trabalhamos com estados holotrópicos de consciência, a dimensão da psique (como é interpretada pelas escolas tradicionais de pensamento) que deve ser  acrescentada na cartografia do inconsciente é a dimensão que definimos com o termo “transpessoal”; o significado deste termo é, literalmente, aquilo que vai além, que transcende o biográfico, o pessoal.

Nos estados holotrópicos de consciência é possível vivenciar experiências com fatos ou situações que a nossa civilização – dominada pela visão materialista do mundo – não considera “reais”, como por exemplo, viagens a mundos mitológicos,  legendários, visões ou identificações com entidades arquetípicas, divindades ou demônios. Podemos vivenciar episódios provenientes da vida dos nossos antepassados ou nos identificar com qualquer aspecto natural do mundo humano, animal ou vegetal etc. Na sua máxima expressão a consciência individual pode transcender cada uma das barreiras e se identificar com a Consciência Cósmica ou Mente Universal assim como é descrita na literatura espiritual. Tudo isso emerge no mesmo “continuum” das experiências biográficas e perinatais, advindo, portanto, das profundezas da psique individual. Ao mesmo tempo, porém, parece que a sua fonte de informação provenha de algo que se encontra muito além da normal mediação dos sentidos e da experiência biográfica; tal observação confirma a hipótese junguiana segundo a qual, para além do inconsciente individual freudiano, podemos contatar e alcançar o patrimônio cultural da humanidade inteira, acessível através do contato com o inconsciente coletivo. 

Os estudos de Grof e as suas observações a propósito dos estados holotrópicos de consciência nos ajudam a ver com maior clareza e simplicidade o fio condutor que une e integra as incompatibilidades teóricas numa visão mais ampla; o fio condutor que tende a superar os conflitos e controvérsias existentes dentro da nossa visão ocidental da psique que se funda em concepções filosóficas inconciliáveis a priori. Exemplificantes de tais concepções filosóficas seriam as teorias e métodos do behaviorismo e da psicanálise, a bioenergética, a psicologia de Freud e aquela dos seus “traidores”: Otto Rank, Wilhelm Reich, Alfred Adler, Carl Gustav Jung etc.

A visão da psique proposta pela psicologia transpessoal, em particular a cartografia do inconsciente de Grof e o “espectro da consciência” de Ken Wilber, representam ao mesmo tempo tanto uma ruptura quanto uma continuidade com o pensamento psicológico que a precede. Podemos falar de ruptura com o passado enquanto a psicologia transpessoal tem raízes no moderno paradigma da ciência (pós-teoria da relatividade) o que é, num certo sentido, inconciliável com o velho paradigma newtoniano-cartesiano, base de toda a psicologia ocidental. A continuidade com o passado pode ser encontrada no amplo suporte teórico e na reelaboração e integração num nível mais complexo de todo o pensamento psicológico precedente que transcende o aspecto sectário das diferentes escolas de pensamento.  Wilber estuda a psique no seu aspecto “pluridimensional” e, como Grof, o seu modelo geral de desenvolvimento da consciência humana é, ao mesmo tempo, uma síntese e uma interpretação das grandes tradições espirituais, filosóficas e psicológicas, sejam elas orientais ou ocidentais. Deste ponto de vista, as insanáveis controvérsias no campo psicológico entre as diferentes “escolas de pensamento” significam simplesmente que foram focadas e estudadas diferentes “frequências de onda” do espectro da consciência, segundo a concepção de Wilber ou, então, que foram explorados diferentes territórios esperienciais, segundo o léxico groffiano.

No seu livro “Além do cérebro”, Grof nos oferece um estudo aprofundado da correlação existente entre os novos progressos da ciência, a física quântica-relativista, a teoria dos sistemas, o pensamento holonômico e a visão da psique que emerge das suas observações sobre os estados não ordinários de consciência. Além disso, ele também dá valiosos passos na direção de uma maior integração entre as várias vertentes psicológicas ocidentais, designando a cada uma delas um específico lugar dentro da “cartografia do inconsciente” que emerge destes dados esperienciais. Grof tem o seu ponto de partida em Freud, cuja psicologia é “confirmada” experimentalmente nos casos em que a exploração do inconsciente não supera o nível biográfico; nesses casos a exploração do inconsciente se revela inadequada no que diz respeito à compreensão dos progressos ulteriores. Prosseguindo na descrição da sua “cartografia do inconsciente”, Grof enfatiza a grande contribuição dos “dissidentes” e “traidores” da psicanálise e de todas as escolas de pensamento que vieram depois deles.

Os estudos de Grof redimensionam a importância dos traumas infantis individualizados por Freud como causas patogênicas primárias, considerando-os somente uma das condições para a manifestação de conteúdos e energias dos níveis mais profundos da psique que, nesta perspectiva, tem uma estrutura dinâmica pruridimensional. A psicologia de Freud não reconhece a enorme importância dos traumas infantis tais como acidentes, operações, experiências de sufocamento, feridas, doenças; durante a autoexploração profunda, estes episódios emergem como elemento determinante na gênese de vários distúrbios psíquicos e psicossomáticos. Incluir o nível perinatal na cartografia do inconsciente, com a sua enorme carga energética, de violência e sexualidade, dá um novo tom a muitos aspectos da psicopatologia sexual; reinterpretam-se, portanto, certos aspectos da psicopatologia sexual para os quais a psicanálise não conseguiu fornecer uma adequada explicação, como os casos de suicídios e assassinatos violentos, automutilações, fetichismo, sadomasoquismo, escatologia sexual, assim como alguns aspectos autodestrutivos relacionados a um supereu (superego) sádico e cruel. A visão transpessoal esclarece alguns destes aspectos colocando-os numa perspectiva diversa, sem invalidar no seu conjunto a visão freudiana da psique.

Durante a autoexploração experiencial, quando a pessoa supera a fase “freudiana”, emerge nas sessões um profundo confronto com o nascimento e com a morte. O confronto com a morte e, de modo especial, a “crise de significado” que advém disso, consentem uma interpretação segundo a filosofia e a psicoterapia existencial; entre estas merece particular atenção a terapia da Gestalt desenvolvida por Fritz Perls, o qual utiliza uma técnica de integração pessoal baseada no princípio que, na natureza tudo é “gestalt”, tudo é unificado e coerente. Essa diretriz de cunho holístico – empregada no processo de percepção e experimentação de conflitos e traumas do passado no momento presente – leva tanto ao completamento das gestalt não concluídas no passado quanto a uma melhor compreensão de todos os processos físicos e emotivos. A chamada “terapia primária”, a terapia esperiencial de Arthur Janov baseada na emissão por parte do paciente de gritos inarticulados e primígenos, viabiliza a emergência de vários traumas, “camadas de dor primitiva”, originadas em períodos variados da infância. Janov também descreve a profunda dor radicada tanto na lembrança quanto na reativação, através de gritos, do trauma do nascimento.

Durante os estados holotrópicos a remoção e a descarga de energia sexual conseguem debelar a rigidez física; tal fato, portanto, torna muito útil o contato com a interpretação proposta pela psicologia reichiana. Reich estava ciente da enorme carga energética que os sintomas neuróticos continham como também conhecia os limites de uma terapia baseada nos meios puramente verbais; por isso, tendo em vista eliminar os bloqueios e liberar a energia comprimida pela remoção, ele empregava técnicas respiratórias, contato físico direto e várias manipulações corpóreas; o conjunto dessas práticas permitia que o paciente se abandonasse aos movimentos espontâneos e involuntários do corpo o que o levava a superar a rigidez física e a relaxar as “armaduras musculares do seu temperamento”. O mais importante dos métodos terapêuticos neo-reichianos é a chamada bioenergética; essa teoria foi criada por A. Lowen o qual, visando influenciar o funcionamento mental do paciente, empregava os processos energéticos do corpo, a linguagem e seus movimentos corporais; mente e corpo, portanto, trabalhariam juntos na tentativa de solucionar problemas emocionais.

Quando se aprofunda a exploração do inconsciente e se supera o nível biográfico, a potente sequência experiencial de morte e renascimento psicológico que emerge é associada às manifestações físicas e psíquicas típicas do nascimento biológico. Freud hipotizou que o trauma do nascimento pudesse ser a origem e o fulcro de cada uma das angústias futuras; ele, porém não desenvolveu esta intuição e, sucessivamente, rejeitou a posição estrema de Otto Rank que via a origem de todas as angústias na separação do útero materno e cada um dos conflitos como expressão do desejo e medo deste retorno ao “paraíso perdido”. Durante o processo holotrópico, através da elaboração e do completamento da “gestalt” perinatal, o trauma e as energias enclausuradas nas profundezas da psique são liberadas e transformadas; tal ação favorece o acesso à dimensão mais profunda da psique, a dimensão que chamamos de transpessoal. Centradas na perda do útero e na dor desta separação, as teorias de Rank negligenciam o enorme sofrimento, o estresse físico e emotivo que existem na passagem do nascituro pelo canal do parto durante o nascimento biológico; todo esse sofrimento emerge de modo inequívoco durante a reativação da experiência do nascimento. Quando as intuições de Rank o levaram a afirmar que o trauma do nascimento era o elemento central da angústia humana, prestaram um serviço à compreensão desta fase experiencial. No entanto, embora as suas intuições tenham sido valiosas, não se deve perder de vista que o processo morte-renascimento tem implicações que vão além da separação do útero ou do fato de reviver unicamente o nascimento biológico. No seu original ensaio intitulado “Thalassa”, Sándor Ferenczi, também ele aluno de Freud, descreve a inteira evolução sexual humana como um impulso a retornar à forma de existência aquática original, como uma tentativa de volta ao líquido amniótico que representa a água do oceano “introjetada” no útero materno.

Jung, indagando nas profundezas do ânimo humano, se depara com “algo” que vai além da própria pessoa, algo que não pertence mais ao indivíduo enquanto tal, mas pertence ao transindividual; ele o chamou de “inconsciente coletivo”. Segundo Jung, por meio de um caminho interior que ele batizou de “processo de individuação”, o homem transcende as fronteiras do eu e do inconsciente pessoal e chega a uma dimensão mais profunda de si mesmo que está em conexão com toda a humanidade e com o inteiro cosmo. Num certo sentido, Jung reelaborou em chave psicológica uma antiga idéia que foi reproposta pelo cristianismo: a existência do “divino” dentro de cada homem. Esta visão antiga, mas ao mesmo tempo novíssima sobre a psique humana faz de Jung um psicólogo “moderno”, portador de um pensamento psicológico revolucionário, precursor do movimento transpessoal.

 

A psicologia junguiana com a sua nova visão da psique é aquela que mais se aproxima da compreensão do profundo significado da experiência de morte e renascimento que ocorre durante a reativação do nível perinatal do inconsciente, em toda a sua valência psicológica e espiritual. Com as suas intuições acertadas, como, por exemplo, a ligação existente entre matéria e psique (fenômenos “psicóides”) e o estudo das coincidências extraordinárias (“sincronicidades”), os seus conceitos de inconsciente coletivo e arquétipos, a sua abertura na direção da dimensão espiritual da psique, foi a primeira a colocar realmente em discussão os fundamentos filosóficos da visão do mundo ocidental e hipotizar uma drástica revisão do velho paradigma da ciência dominado pela visão do mundo newtoniana-cartesiana. No último período da sua vida, Jung se mostrou particularmente interessado nos avanços da ciência, e trocou várias cartas com Paoli, um eminente físico; Jung tinha esperança de encontrar na física moderna um apoio teórico à sua visão sobre a psique. Todavia, ele parece ter negligenciado a relação que existe entre a valiosa experiência de morte e renascimento psicológico e o nascimento biológico, no sentido mais físico possível, e a importância deste fato nos seus aspectos físico-corpóreos e também espirituais. O pensamento junguiano é o mais próximo da visão de Grof no que diz respeito à psique e à premissa transpessoal; de fato, Jung é considerado “o primeiro psicólogo transpessoal”.

 

Roberto Assagioli, ilustre expoente italiano da psicologia transpessoal, apresenta uma cartografia da personalidade semelhante ao modelo junguiano da psiche,  pois compreende elementos coletivos e espirituais com propostas de uma nova técnica de psicoterapia e autoexploração. A psicologia de Assagioli e a psicologia de Jung continuam a ser as únicas escolas do pensamento ocidental a oferecer uma autêntica compreensão dos processos que estão implicados numa profunda autoexploração experiencial.

Um dos nomes mais importantes da psicologia humanista, Abraham Maslow, num estudo aprofundado sobre pessoas que haviam experimentado estados místicos espontâneos (chamados por ele de “experiências de cume”) defendeu a tese que, na verdade, diferentemente do que se pensava até então, tais vivências eram muito mais fenômenos sobrenaturais do que patológicos. Maslow prosseguia, afirmando que as vivências estavam associadas a uma saudável e natural tendência humana à autorealização, tese defendida por Grof no seu conceito de “emergências espirituais”. As idéias de Maslow influenciaram profundamente a visão holística da psique típica da psicologia humanista e, em seguida, contribuíram para a formação da psicologia transpessoal.

A psicologia de Grof, com a sua cartografia do inconsciente, forneceu à psicologia uma visão mais ampla e integrada da psique humana onde cada precedente teoria ocupa uma posição precisa; cada uma delas está relacionada a níveis diferentes de profundidade, dentro de uma específica dimensão experiencial, mas isso não invalida nenhuma das estruturas teóricas ou experiências subjetivas. Este novo contato representa uma verdadeira revolução, uma integração tanto aguardada quanto necessária. Através da sua proposta de visão unificada da psique, essa nova integração poderia atenuar as antigas “cisões” existentes na psicologia contemporânea.

Diferentemente dos métodos psicoterapêuticos tradicionais, a característica por excelência da vertente transpessoal não é o conteúdo, mas sim o contexto. O terapeuta transpessoal tem ciência da vastidão do “território experiencial” e das potencialidades evolutivas intrínsecas à natureza humana; assim sendo, ele se dispõe a acompanhar o cliente no seu percurso interior, toda vez que for necessário, através de novas e amplas possibilidades existenciais.

Durante as profundas autoexplorações experienciais observadas por Grof, quando se chega aos níveis perinatais e transpessoais do inconsciente, há um despertar da espiritualidade sendo que, às vezes, estas experiências marcam o início de um percurso “místico”; é nesse ponto que a psicoterapia assume cada vez mais um significado mitológico e se torna indistinguível da busca filosófica e espiritual da nossa identidade mais profunda. Nestes momentos nos damos contas que, antes de expandir os nossos limites, como diria Alan Watts, estamos “encapsulados dentro da nossa pele”; quando, ao contrário, as fronteiras são finalmente abatidas alcançamos outra dimensão do ser. As tradições espirituais do mundo todo vêm em nossa ajuda, na medida em que nos deixaram vários mapas, verdadeiras e próprias cartografias do inconsciente, dos estados mentais, de dificuldades e variadas vicissitudes, armadilhas e perigos com os quais podemos nos deparar ao longo deste difícil percurso. O núcleo desta ativação interior é o arquétipo do centro, definido como o nosso profundo ‘Ser’, o chamado “Si-mesmo” (“o curador interno” de Grof). 

As experiências transpessoais podem ser muitas vezes proféticas com respeito à nossa percepção ordinária. A visão do mundo atual que emerge destas profundas autoexplorações experienciais é bastante dramática: quem vive tais experiências passa a ver o mundo de outra perspectiva: vê uma humanidade que perdeu a bússola, o contato com a sua essência, com a própria “humanidade”, pondo em risco a própria sobrevivência; mas há também o vislumbre de algo diferente: a possibilidade de uma mudança que somente a partir de uma profunda transformação interior poderá ocorrer. Durante os estados holotrópicos de consciência, emergem preocupações relacionadas a temas atuais como a crise global, a ecologia, as guerras etc, em pessoas que até então não se preocupavam ou ao menos não tinham consciência deste tipo de preocupação. Durante tais estados de consciência, a ciência, por exemplo, é vista de uma forma “sombria”; após ter conseguido reduzir consideravelmente os riscos e sofrimentos da humanidade, ela agora se apresenta como “o outro lado da moeda”: por causa da sua exasperada unilateralidade, a própria ciência se tornou uma ameaça à nossa sobrevivência.

Jung expressava esta preocupação com as seguintes palavas: Vivemos aquilo que os gregos chamavam de Kairos, ou seja, o momento certo para uma “metamorfose dos deuses, dos princípios e símbolos fundamentais. Esta peculiaridade da nossa época – que não é certamente uma escolha nossa – é expressão do homem inconsciente que vive dentro de nós e que está mudando. As gerações futuras deverão levar em conta esta importante transformação, de modo que a humanidade não se destrua pelas mãos da tecnologia e da ciência… a aposta é alta e depende muito do assentamento psicológico do homem moderno; a pergunta a fazer é: o homem sabe que o outro lado da balança é ele próprio?”.

 Grof descreve o mundo atual como “uma situação desesperada”, discorrendo sobre uma necessidade urgente de mudança em escala coletiva, de uma corrida contra o tempo sem precedentes na história da humanidade; ele reinvindica o direito de cada ser hamano de evoluir na direção da própria completeza. Richard Tarnas no seu livro “The passion of the western mind” defende a idéia que “a paixão mais profunda do espírito ocidental è aquela de re-unir-se à essência do seu próprio ser”

Tudo isso nos faz refletir e parece querer nos exortar à interioridade, à introspecção, a um percurso na direção de propósitos que não pertencem a este mundo. Talvez somente assim, centrando o olhar no próprio mundo interior, sem medo, confiando e se rendendo a esta escuridão, o homem poderá finalmente reencontrar a si mesmo.