A guerra dentro do homem

 

Virginia Salles, Roma

 

Todos nós somos heróis no nascimento quando enfrentamos uma grande transformação psicológica e física. Quando deixamos para trás a condição de criaturas aquáticas e adquirimos a condição de mamíferos que respiram o oxigênio do ar…a dimensão dessa transformação é enorme e seria certamente um ato heróico se fosse praticado conscientemente.

                                                                                                                                                 (Otto Rank)

1. A angústia perinatal

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Ao longo de mais de quarenta anos Stanislav Grof pesquisou sobre os estados não ordinários de consciência, contribuindo de forma valiosa para a compreensão da natureza da consciência e da psique humana. A fim de enquadrar a fenomenologia dos estados não ordinários de consciência e das experiências a eles ligados, Grof ampliou a cartografia do inconsciente onde incluiu, além do nível biográfico, substanciando pelas nossas lembranças de infância e por todas as lembranças pessoais, mais dois níveis transbiográficos, isto é, o nível perinatal e o transpessoal.  O termo “perinatal” (o qual literalmente quer dizer, “em torno ao nascimento”) aborda o trauma do nascimento biológico, descoberto e descrito, pela primeira vez, por Otto Rank. Já com o termo transpessoal, Grof alude a um tipo específico de experiência, cuja característica é a percepção de um alargamento tanto da consciência (para além dos limites habituais do ego) quanto da transcendência dos limites espaciais e temporais.  

 Depois de observar enumeráveis sessões de autoexploração Grof constatou que, conforme a exploração do inconsciente se torna mais profunda, o sujeito passa por várias fases experienciais. O primeiro estágio dessas fases experienciais é o biográfico, local onde se revivem as experiências da vida pós-natal e se confirmam “experimentalmente” as teses da psicanálise clássica. Sucessivamente, o sujeito tende a se deslocar do estágio da terapia (pensado como rankiano-reichiano-existenzial) a um estágio que, em virtude da dimensão arquetípica da psique, poderia ser definido junguiano. Nesse estágio emergem experiências de grande complexidade e intensidade: uma valiosa sequência de morte e renascimento psicológico contemporaneamente à ativação do processo de nascimento biológico. As sensações físico-corporais do nascimento são acompanhadas de emoções e imagens arquetípicas de caráter universal e de uma enorme força numinosa. Algumas destas imagens ilustram fatos sócio-políticos, como, por exemplo, guerras, revoluções, sublevações, triunfos, derrotas, prisões e libertações; todos esses fatos se encontram em relação direta com a sequência dos estágios do processo de nascimento.  

 

Seguindo a descrição de Grof, vejamos quais são as quatro “matrizes perinatais de base”, tendo em mente que cada uma delas se refere a um estágio clínico do parto. 

A primeira matriz perinatal de base (o “universo amniótico”) alude ao período da vida intra-uterina, quando o feto se funde com o organismo materno. No decorrer da experiência holotrópica esta vivência pode se manifestar por meio de sensações físicas concretas (nadar, boiar etc) ou através de profundas imagens arquetípicas carregadas de “nume”, como, por exemplo, visões esplêndidas da natureza, cheias de vigor, beleza e harmonia: águas límpidas e cristalinas, céu azul, florestas virgens, pedras preciosas, ouro, prata ou ainda imagens de paraísos concernentes a várias culturas. A expressão mais elevada da qualidade sagrada e espiritual da primeira matriz perinatal de base é a experiência de união mística ou unidade cósmica caracterizada pela transcendência do tempo e espaço, pelo sentimento de profunda sintonia com toda a “criação” e por fortes sentimentos estáticos. Este tipo de êxtase é chamado de “Oceânico ou Apolíneo”. 

Quando, de alguma forma, a vida intra-uterina é abalada por tentativas de aborto, insuficiência nutritiva ou influências placentárias tóxicas, a experiência também se torna “perturbada”, unindo-se a imagens de “desastres ecológicos”, como, por exemplo,  águas contaminadas, lixo tóxico e, ainda, perigos no fundo do mar, desertos e terras desoladas. As imagens arquetípicas que normalmente expressam esta situação são imagens recorrentes de “forças malignas” e “demônios insidiosos”; são também acompanhadas de um sentimento de abatimento ou, então, de verdadeiro terror; ambos os sentimentos têm origem na percepção de um mundo que “desmorona” e “se extingue”, varrendo consigo todos os pontos de referência, tudo aquilo que, até então, era conhecido e confiável. Durante a imersão na serena existência intra-uterina, experenciam-se situações ou imagens de culturas que, vivendo em absoluta harmonia com a natureza, apresentam organizações sociais sem conflitos, correspondentes aos ideais utópicos de paz, amor e justiça. Por outro lado, imagens de sociedades humanas instaladas em áreas de desastres ecológicos, cuja organização social é instável, acompanham a reativação de vivências intra-uterinas “perturbadas”. 

A segunda matriz perinatal de base (“submissão cósmica sem possibilidade de uma saída para o problema) alude ao primeiro estágio clínico que dá início ao parto biológico: começam as contrações uterinas e a cerviz ainda não sofreu dilatação. Imaginemos o feto nascituro que, repentinamente, é expulso do paraíso amniótico, precisando, em seguida, enfrentar o seu percurso-batalha de descida ao mundo. Tal momento é acompanhado de uma crescente ansiedade; o sentimento é de perigo vital iminente, cuja origem, não sendo claramente identificada, provoca reações paranóicas para com o mundo ao redor. Tais reações, porém, não são infundáveis, pois, naquele momento, para o nascituro, o “mundo circundante” é o “útero que o repele”; desta forma, as sensações podem ser muito variadas: envenenamento, possessões demoníacas ou máquina infernal, sorvedouro ou voragem espiral, monstro engulidor, gigante, ou ainda animais assustadores: dragão, serpente, polvo, tarântula etc. Todas essas vivências têm em comum o terrível “pesadelo” da impossibilidade de se achar uma saída para o problema, isto é, não há modo de escapar da dificuldade; pertinente a tal ausência de saída é a experiência de intoleráveis torturas físicas e psicológicas que parecem jamais ter fim ou esperança; é o inferno. As imagens de episódios sócio-políticos, relacionadas a esta matriz, são diametralmente opostas às imagens da matriz anterior; elaboram-se imagens de sociedades totalitárias e opressoras, fronteiras bem vigiadas e circunscritas, várias formas de ditaduras, escravidão, campos de concentração, detentos em prisões inacessíveis, o terceiro Reich de Hitler etc. Nestas vivências o sujeito passa a se identificar exclusivamente com a vítima, em total e profunda empatia com todos os perseguidos e oprimidos. Os temas mitológicos recorrentes são a descida ao reino dos mortos, cavernas e labirintos, perigos subterrâneos, a queda dos anjos, o paraíso perdido. Sob influência desta matriz (algumas pessoas a vivem pela vida toda) o indivíduo parece estar seletivamente cego a todos os aspectos positivos da vida. Típicos dessa matriz são os sentimentos de solidão cósmica, inferioridade, inadequação, desespero e culpa. Olhando o mundo pelas lentes desta matriz, o universo parece um teatro do absurdo, absolutamente sem sentido, uma farsa cruel. Esta percepção de mundo foi amplamente descrita pela literatura existencialista, de Sarte a Kafka, de Camus a Beckett.

A terceira matriz perinatal de base (“luta de morte-renascimento”) tem a ver com o segundo estágio clínico do parto: as contrações uterinas continuam, mas, como agora a cerviz está dilatada, o nascituro pode atravessar gradualmente o canal do parto. Este reencontro com a “esperança” que, finalmente, será possível achar uma saída, conduz a uma intensa luta pela sobrevivência, onde as pressões são fortes e dilacerantes, e, muitas vezes, produz uma sensação de asfixia e sufocamento. Isso tudo é expresso por meio de uma luta extenuante de vida e morte com as sequências típicas das várias etapas da luta do nascituro no canal do parto.  Tais sequências podem estar relacionadas a certas características anatômicas e psicológicas que pertencem ao estágio correspondente do nascimento biológico do sujeito. Os temas recorrentes são elementos “demoníacos” e luta titânica, identificação com elementos violentos da natureza como, por exemplo, tempestades, furacões, maremotos, erupções vulcânicas etc, experiências sadomasoquistas, vivências escatológicas e contato com o fogo (piroclástico). Os aspectos agressivos e sadomasoquistas atinentes a esta matriz, refletem a fúria biológica do organismo cuja sobrevivência é ameaçada pelo sufocamento. O aspecto agressivo pode ser representado por alguns temas recorrentes: guerras e revoluções, cenas violentas de assassinato e suicídio, mutilações, torturas, sacrifícios rituais, combates sangrentos, estupro. A enorme intensidade do impulso sexual de natureza não seletiva e o aspecto escatológico estão ligados ao fato que, neste nível da psique, a sexualidade é intrinsecamente ligada à morte, ao perigo e agressão, à dor física e vários tipos de material biológico (sangue, fluidos, fezes, urina). 

A quarta matriz perinatal de base (“experiência de morte-renascimento”) diz respeito ao terceiro estágio clínico do parto: o nascimento da criança e o término da luta no canal do parto, onde a dor, a pressão extenuante e a tensão sexual são substituídas pela libertação e relaxamento. Alguns aspectos específicos deste estágio podem ser revividos de modo concreto juntamente com as várias intervenções obstétricas presentes no momento do parto. As pessoas que não conhecem nada a respeito do próprio nascimento podem, sucessivamente, ter a confirmação detalhada das intervenções as quais, durante o processo, vêm à tona.

O momento culminante deste estágio ocorre quando a sensação de catástrofe imediata (de proporções cósmicas) é substituída por uma extraordinária libertação. Tal liberdade é associada a imagens de vitória que, suplantando as iamgens de guerras e revoluções, nos falam de alforria e marchas triunfais onde prisioneiros podem aparecer simplesmente como representações de indivíduos ou da própria Pátria. Imediatamente após a morte do ego – esta experiência de absoluta aniquilação, a “chegada ao fundo do poço cósmico” – ocorrem visões de luz branca ou dourada (ambas dotadas de grande esplendor e beleza sobrenaturais) ou, podem vir à tona aparições surpreendentes de entidades divinas arquetípicas, arco-íris, visões de desenhos que lembram as penas de um pavão etc. Todas elas são acompanhadas de um profundo sentimento de liberdade, redenção, salvação e um fluxo de emoções positivas: amor incondicional pela existência e seres humanos. A sensação é de pertencer a um desenho mais amplo e universal, uma profunda gratidão pela vida e “criação”. Repentinamente, tudo aquilo que nos rodeia, o próprio mundo, se transforma num lugar maravilhoso, reveste-se de encantamento e fascínio especiais; parece que, finalmente, fomos “despertados”. Esta experiência provoca um considerável aumento de interesse pelos outros seres humanos e pela vida em geral. O simbolismo arquetípico correspondente a tal experiência de morte e rinascimento pode ser extraído das variadas formas de expressões do inconsciente coletivo. Todas as grandes culturas e as grandes religiões propuseram imagens míticas que se associavam a tal “evento”. Uma representação da morte do ego é o encontro com várias divindades destrutivas como Shiva, Kali, Moloch ou com identificações com Cristo, Osíris, Adônis, Dionísio ou outros personagens míticos “sacrificados”. Já o aspecto divino, pode ser expresso de forma abstrata, como fontes de luz de esplendor sobrenatural ou o encontro com grandes Deusas mães: a Virgem Maria, Isís, Cibele, Iemanjá etc, e, por fim, podem tender, num grau maior ou menor, a certas imagens personificadas pelas diferentes religiões.

 

A grande guerra

 

A sequência experiencial que Grof chamou de “terceira matriz perinatal” ou “a luta de morte e renascimento” (fazendo alusão à ativação do segundo estágio clínico do parto, quando a cerviz, dilatada, permite ao nascituro a passagem gradual pelo canal do parto) é particularmente interessante ao nosso tema; a razão de tal interesse é a estreita relação existente entre a terceira matriz e os aspectos mais violentos e destrutivos da natureza humana abrigados nos profundos recessos da psique. 

A dor e o medo que o nascituro sente, remetem tanto à percepção de um perigo iminente e vital quanto à compressão e sufocamento experimentados por ele durante a passagem; dor e medo geram, portanto,  uma enorme quantidade de agressividade que, não podendo se expressar na situação de confinamento em que se acha o nascituro permanece latente no organismo como uma reserva de energia destrutiva física e psicológica. 

A abertura da cerviz é vista como uma possibilidade de saída; a previsão de poder achar uma saída gera no nascituro uma intensa luta pela sobrevivência com ataques agressivos ao corpo da mãe que o comprime, o sufoca e o expele  e do qual ele quer se livrar;  por outro lado, no processo de expulsão do nascituro, o corpo materno é bombardeado pelas contrações uterinas. Este violento combate entre os dois corpos provoca no pequeno organismo, dores, fortes pressões e sufocação. Durante a ativação deste estágio do nascimento emergem vivências e imagens de cenas extremamente violentas: guerras e revoluções sangrentas, massacres humanos e animais, ataques de granadas, mísseis, cidades assediadas, explosões de bombas nucleares. As pessoas que vivenciam tais experiências participam da cena no papel simultâneo de vítima, agressor e observador. Há também a manifestação de temas “demoníacos” e combate cósmico, identificações com a força e violência da natureza, explosões e catástrofes. Tais cenas normalmente se associam a repugnantes motivos escatológicos. Todavia, a escatologia que efetivamente pode ocorrer no momento do parto, o encontro do nascituro com material orgânico materno, é aqui ampliada numa dimensão tão grande que transcende qualquer outro tipo de experiência realmente ocorrida.

Tudo isso culmina numa sensação de completa aniquilação que é, imediatamente, acompanhada de um inesperado sentimento de liberdade e salvação; conforme o que já foi descrito precedentemente em relação a “quarta matriz perinatal”, esse sentimento é, ao mesmo tempo, vivenciado como um nascimento físico e um renascimento espiritual.

Os estudos de Grof sobre as dimensões perinatais do inconsciente deram uma nova contribuição ao que se conhecia sobre a gênese da agressividade. Desta forma, se revelaram quão profundas sejam as raízes dos aspectos mais inquietantes e perigosos da natureza humana; entre tais aspectos se encontra o que Erich Fromm chamou de agressividade “maligna” cuja dimensão é tão grandiosa que não pode ser comparada à agressividade do reino animal. 

Situando o fulcro dos comportamentos agressivos numa profundidade que até então, as teorias precedentes jamais haviam ousado imaginar, as descobertas de Grof são realmente surpreendentes e revolucionárias. Além disso, elas assinalam como tal tipo di agressividade esteja  interligada a dinâmicas inconscientes jamais elaboradas, o que, desta forma, não permite o acesso à nossa identidade mais profunda a qual, segundo Grof, não é de natureza agressiva.

As matrizes perinatais, reforçadas por todas as experiências emotivas importantes da nossa vida, formam um fulcro energético que age por dentro; elas não só modelam a percepção que temos do mundo e influenciam profundamente o nosso comportamento na vida cotidiana como ainda contribuem para o surgimento de vários distúrbios emotivos, psicossomáticos e psicossociais. Em escala coletiva, as matrizes perinatais pintam com suas tonalidades emotivas as religiões, a arte, a mitologia, as filosofias, e se manifestam através de várias formas de psicopatologia social e política.

Após anos de trabalho e pesquisa, Grof elaborou uma técnica de auto-exploração profunda que visa elaborar e transformar os elementos destrutivos conservados nas profundezas do inconsciente. O ato de reviver o nascimento através da ativação do inconsciente por meio de uma terapia experiencial, não significa somente a repetição concreta das emoções e sensações originais, mas também significa o completamento e elaboração da experiência traumática. As energias perinatais, antes enclausuradas no corpo e nas profundezas do inconsciente, agora, através deste “novo trabalho de parto”, são transformadas e libertadas. Esta experiência tem uma importância fundamental na elaboração dos aspectos mais destrutivos da psique tanto do ponto de vista individual quanto coletivo.

Usando material próprio e de outros estudiosos (Lloyd de Mause, Carol Cohn, Sam Keen), Grof analisou uma grande variedade de história em quadrinhos, caricaturas, piadas, capas de revistas, ilustrações de jornais impressos em período de guerra, além de frases oficiais e não oficiais do discurso político. Tendo se debruçado sobre este vasto material, Grof obteve um extraordinário número de metáforas e imagens relacionadas ao nascimento biológico.

Chefes militares e políticos de todas as épocas utilizaram termos descritivos  da angústia perinatal nas declarações de guerra, nos discursos de mobilização popular e na descrição  de “situação crítica” justificatória da intervenção bélica; todas as palavras empregadas mencionavam o inimigo como aquele que, “tirando o fôlego”, ameaça o espaço vital, oprime, sufoca e estrangula o povo.

É de grande significado a linguagem perinatal empregada quando se faz  referência à explosão da bomba  atômica de Hiroshima. O avião que a lançou foi batizado com o nome da mãe do piloto: Enola Gay. Por sua vez, o apelido da própira bomba atômica era “the little boy”, e, por fim, a mensagem codificada para comunicar a missão realizada era “a criança nasceu”.

Se analisarmos as várias modalidades nas quais o inimigo é representado em situações de guerra ou revolução (Sam Keen), salta aos olhos que o adversário, como é descrito e ilustrado, nada tem a ver com o inimigo “real”. As imagens que o representam são imagens estereotipadas e, no sentido junguiano, são projeções de aspectos de sombra, variações “do arquétipo do inimigo”: o Estrangeiro, o Bárbaro, o Infiel, o Pecador etc.

Segundo a análise que Grof formulou, baseando-se no vasto material colhido em época de guerra, a representação do inimigo revela também uma preponderância de imagens repletas de angústia perinatal que remetem às contrações uterinas durante o trabalho de parto: o polvo insidioso, a tarântula, o dragão que deve ser morto, a jibóia que comprime e tritura.

Em período de guerra nós substituímos os elementos removidos do inconsciente por alvos externos.  Portanto, muito antes da guerra que o homem poderá travar num front qualquer, existe a guerra a ser travada dentro do próprio homem. Esta é projeção de dimensão profunda da psique que poderia ser enfrentada e integrada num outro modo, por exemplo, através de uma profunda terapia experiencial. Este tipo de elaboração de elementos removidos do inconsciente é proposto, em escala coletiva, por Grof; sem dúvida alguma, tendo em mente a superação das formas de agressividade “maligna” (origem de muitas das nossas modernas “catástrofes”), a elaboração de elementos removidos do inconsciente seria uma modalidade possível. 

Em um dos seus estudos sobre a dimensão perinatal da guerra nuclear (Carol Cohn), foi encontrado na linguagem dos militares um grande número de simbolismo sexual quando se faziam referências às armas nucleares. Muitas das críticas à política nuclear utilizam termos de natureza “sexual-bélica” aludindo ao universo feminino como, por exemplo, “inveja do míssel” ou “veneração fálica”. Esses estudos chegam à conclusão que “… os cientistas homens deram vida a uma estirpe (as armas nucleares) dotada de extremo poder e domínio, disposta a subjugar a natureza feminina.”

Os temas da agressividade sexual, a rejeição e o domínio do feminino (o corpo da mãe), bem como a escatologia que emerge nos períodos de guerra (campos de concentração, cidades sitiadas etc), apresentam uma profunda analogia com as imagens da terceira matriz perinatal; a mesma semelhança também está presente nas expressões de exploração, domínio, opressão do feminino por parte do universo masculino, e, em geral, em todas as formas de manifestação de poder e supremacia egóica.

A guerra, portanto, a mais feroz e violenta que existe dentro de cada homem, é a guerra que ele combateu contra um corpo feminino; cada pessoa, para vir à luz na qualidade de indivíduo separado e com “limites” próprios, precisou combater contra o corpo materno. Todos aqueles que, por meio de uma profunda auto-exploração, tenham vivenciado o próprio nascimento, sabem quanta violência e brutalidade emerge quando se entra em contato com essa verdadeira caldeira de energia destrutiva.

Durante a auto-exploração, quando nos conectamos com a experiência do “nascimento biológico”, tocamos também o reservatório de análogas experiências dolorosas pertencentes à espécie humana, conservadas na memória ancestral do inconsciente coletivo (o “nascimento arquetípico”). Para Jung, os arquétipos do inconsciente coletivo exercem uma influência que transcende o comportamento indivual, podendo determinar os eventos da história humana. Este é o caso, por exemplo, da emersão do mito de Ragnarok na psique coletiva do povo alemão; tal mito teria conduzido à grande catástrofe destrutiva da segunda guerra mundial.

Segundo as teorias de Grof, a luta de cada ser humano para se separar do corpo da mãe e estabelecer os próprios confins, com toda a violência e destrutividade que essa luta comporta, é o fulcro energético de todas as agressividades humanas. Tal luta, quando projetada no mundo externo, tem como manifestação extrema a ação bélica. No Quando, num contexto terapêutico, essas profundas dinâmicas inconscientes de violência e brutalidade são colocadas face a face, instaura-se um processo de cura e transformação. Diversamente, porém, a expressão externa desta brutalidade e violência, tanto em escala individual quanto coletiva, não leva ao mesmo processo. Segundo Grof, a energia destrutiva perinatal representa a maior força instintiva embrionária de todos os eventos bélicos. Desta forma, o escopo da ativação da energia destrutiva perinatal não pode ser obtido no teatro de guerra exterior nem mesmo em caso de vitória. O objetivo desta ativação do inconsciente é absolutamente intrapsíquico: a libertação psicofísica da energia perinatal e o renascimento psicoespiritual. 

Nessa mesma direção é interessante a alusão de Grof sobre as dinâmicas psicológicas do comunismo: “O postulado que acredita na necessidade de uma experiência violenta (de natureza revolucionária) tanto para dar fim ao sofrimento e opressão quanto para instituir uma  nova situação de maior harmonia, somente será correto se tal experiência for entendida como um processo de transformação interior. Porém, caso essa experiência, ao invés de ser projetada para o mundo interior, seja projetada para o mundo externo (como uma ideologia política de violentas revoluções), o  postulado se mostrará perigosamente equivocado. Nesse último caso, o equívoco será converter um esquema de nível profundo, essencialmente arquetípico de morte e renascimento espiritual numa situação externa, na forma de um programa ateu e antiespiritual.”.

  Na visão de Grof, a ativação do nível perinatal da psique com emersão da absoluta violência e destrutividade da história humana, poderia estar ligada à tendência inata da psique a reviver e superar os próprios traumas para curar-se, alcançando, assim, maior equilíbrio, tanto no plano ontogenético quanto filogenético.

Analizando a intensidade e quantidade das experiências perinatais que retratam a agressividade e crueldade da história humana, Cristopher Bache formulou a hipótese segundo a qual o inconsciente coletivo está contaminado por todas as memórias das violências perpetradas em cada uma das épocas da história humana; tal ação ocorre da mesma forma para o inconsciente individual o qual se polue dos traumas da nossa infância e adoloscência. Segundo Bache, a consequência é que, depois da ativação das memórias que fazem parte do inconsciente coletivo, o nosso processo individual transcende a esfera pessoal e nos faz participar da “cura naquele espaço da consciência que pertence à espécie”.

Na visão de Grof, todas as características do atual momento evolutivo da história humana pertencem à terceira matriz perinatal: emergência de impulsos destrutivos que se manifestam por meio de conflitos bélicos, revoluções, atos terroristas, acentuação da tendência do homem moderno ao poder e ao domínio (síndrome de “separação”), acúmulo de lixo das mais variadas espécies, também tóxicos (escatologia), pornografia (sexualidade alienada), o domínio e exploração dos recursos naturais que, tristemente, anunciam o iminente desastre ecológico.

A reconciliação

 

A batalha empreendida pelo nascituro quando atravessa o canal do parto, aumenta o sentimento de delimitação e confinamento numa dimensão corporal cujo êxito é o nascimento como individualidade separada e a formação dos confins do ego, os confins entre o eu e o mundo. A grande guerra interior que o nascituro trava contra um corpo feminino (o corpo materno) é a guerra para vir à luz e nascer enquanto indivíduo separado; no entanto, esta luta apresenta desdobramentos bastante insidiosos. Na visão de Grof, o comportamento psicológico do homem contemporâneo, diante da natureza e da terra, poderia ser considerado uma ulterior expressão da ativação da terceira matriz perinatal a nível coletivo. No que diz respeito à natureza (Mãe), o homem contemporâneo procura “controlá-la” para poder “se defender” dela; já na relação com a terra (Mãe) ele a vê como objeto de exploração e domínio.

A nossa era se caracteriza, sobretudo, pela separação entre o ego racional e a unidade primordial com a natureza, pela perda da partécipation mystique. A visão oriental da evolução da consciência, a filosofia perene, assim como a psicologia transpessoal, encara a superação deste limite (superação que leva à destruição e metamorfose do ego limitado) uma etapa determinante da evolução humana; a única via de acesso para se chegar a uma consciência mais ampla, uma dimensão existencial que, neste momento epocal da nossa história, adquire conotações “salvíficas”. 

Segundo Tarnas, “a exaltação do ego racional friamente consciente de si mesmo e radicalmente separado de uma natureza exterior desencantada (…)” determinou  a evolução da cultura no ocidente e grande parte dos conflitos e instabilidades típicas da nossa época; atualmente a instabilidade caminha para o seu clímax. Para Tarnas, a crise do homem moderno é uma crise essencialmente “masculina” prestes a ser solucionada por meio da extraordinária emergência do princípio feminino na nossa cultura, Escreve Tarnas: “A reintegração do feminino reprimido só é obtida se o masculino passar por um sacrifício, a morte do ego. A mente ocidental deve querer abrir-se para uma realidade cuja natureza poderá estilhaçar suas crenças mais firmes sobre si e sobre o mundo. Nisso consiste o verdadeiro ato de heroísmo. Agora será preciso transpor um limiar, que exige um corajoso ato de fé, de imaginação, de confiança numa realidade mais ampla e mais complexa (…)”

 

 O princípio feminino emerge na busca de algo que A. Lowen define “graça”; é a busca da harmonia perdida com o corpo e a natureza, toda vez que nos abrimos a esse “relacionamento”. Para Tarnas, tal príncipio emerge na crescente consciência ecológica, na redescoberta das emoções, do inconsciente e da intuição; reside ainda no respeito para com a Mãe-Terra e os mistérios da gestação e nascimento, no crescente reconhecimento da inteligência intrínseca da natureza, no recuperado interesse pelas antigas lições exotéricas, no misticismo oriental, no xamanismo, na psicologia do profundo, arquetípica e transpessoal. O princípio feminino aparece todas as vezes que se abre uma porta ou se abate um muro geográfico ou psicológico.

Jung profetizara tal mudança epocal da psique contemporânea: uma coniunctio oppositorum entre o princípio masculino dominante e o feminino que ascende vertiginosamene. Segundo Tarnas, tal transformação sempre foi a meta recôndita de todo o desenvolvimento intelectual e espiritual do ocidente. O desejo mais profundo, soterrado no inconsciente do homem moderno, é o desejo de superar esta fratura e reconciliar-se com o feminino interior.

Um novo horizonte

 

Os estudos de Grof afirmam que as raízes da agressividade humana alcançam profundidades jamais antes tocadas pelos conceitos teóricos que, até então, haviam tentado explicar este fenômeno humano. As teorias de Grof focam e individuam o enorme acúmulo de violência e destrutividade mantidos de forma latente no inconsciente individual, mas, sobretudo, no inconsciente coletivo da nossa espécie. A fim de elaborar e transformar as energias destrutivas e a evolução da personalidade, as pesquisas de Grof e o desenvolvimento da psicologia transpessoal levaram ao descortinamento de novo horizontes através de eficazes métodos de auto-exploração experienciais. Alguns métodos estão ancorados em tradições terapêuticas, outros são adaptações modernas de antigas práticas espirituais extraídas das nossas mais variadas e remotas crenças. Experiências e intuições de pessoas que provaram os estados holotrópicos de consciência manifestam uma preocupação recorrente no que diz respeito a temas de atualidade como, crise global, ecologia, guerras, evolução da consciência etc.

No mundo atual, sempre que uma pessoa se encontra num processo de profunda transformação pessoal, deparando-se com situações que devem ser enfrentadas e resolvidas internamente, temas típicos do processo perinatal são exteriorizados. A experiência de morte e renascimento psicoespiritual, isto é, a passagem experiencial da terceira à quarta matriz perinatal, leva o indivíduo a uma conexão consciente com as lembranças e emoções positivas perinatais e pós-natais; tal conexão leva à mudanças radicais nas dinâmicas intrapsíquicas da pessoa: reduzindo a tendência à ambição, ao controle e ao poder, determina tanto a reconciliação com o princípio feminino quanto o deslocamento do centro de atenção psicológica do tempo passado e futuro para o momento presente; desta forma, aumenta consideravelmente a capacidade de aproveitar e se alegrar com os aspectos mais autênticos e vitais da existência, como o corpo, o amor, o alimento, a arte e a natureza.

Assim sendo, fazendo tesouro do que os estudos de Grof nos trasmitem, a integração dos conteúdos perinatais do inconsciente provoca uma contínua diminuição da agressividade que se imaniza aos traumas e conteúdos inconscientes nunca antes elaborados e que, portanto, bloqueiam o acesso à nossa dimensão mais profunda. Para Grof, uma transformação desse porte, vivida em escala suficientemente vasta, levaria à abertura global, à melhora considerável da qualidade de vida no nosso planeta e a um relacionamento diferente tanto entre os homens quanto entre eles e a natureza.