Real é o que atua……As fronteiras da psicologia transpessoal (Entrevista com Virginia Salles e Maria Fiorentino)

Link da entrevista original

Virginia Salles <> Maria Fiorentino Ambos psicoterapeutas com formação junguiana e transpessoal, ambos exploradores do invisível, Virginia Salles e Maria Fiorentino discutem os limites e as perspectivas da psicologia contemporânea, debruçando-se sobre o significado do feminino, da arte e da imaginação. Virginia Salles <> Maria Fiorentino Ambos psicoterapeutas com formação junguiana e transpessoal, ambos exploradores do invisível, Virginia Salles e Maria Fiorentino discutem os limites e as perspectivas da psicologia contemporânea, debruçando-se sobre o significado do feminino, da arte e da imaginação.

Quais são as chaves mais interessantes que a psicologia contemporânea oferece àqueles que possuem esse instinto para o transpessoal de que Jung falou?

 Virginia Salles – O instinto para o transpessoal abre-nos àquelas experiências da realidade interior que são incompreensíveis para a maioria das pessoas. É uma poderosa força evolutiva que tem sido sempre desencorajada e até demonizada pela psicologia tradicional. Na psicanálise clássica, por exemplo, o inconsciente é finalmente considerado como a sede dos nossos instintos animais e associado aos aspectos mais baixos da natureza humana. Experiências diretas da dimensão espiritual, tais como aquelas descritas na literatura espiritual, xamanismo, etc., nunca são contempladas; pelo contrário, são consideradas como manifestações de doenças mentais graves. A visão mais moderna da psique proposta pela psicologia transpessoal (que vai para além do pessoal) oferece um quadro teórico de referência muito mais amplo, capaz de conter os novos conhecimento que emergem destas ilimitadas experiências das dimensões interiores, de as compreender e integrar. Não só liberta o ser humano da ameaça iminente dos rótulos psicopatológicos, mas, de certa forma, autoriza a livre expressão.

Maria Fiorentino – A psicologia contemporânea está fazendo um grande trabalho de recuperação da antiga tradição terapêutica. Os pais fundadores da Psicologia do profundo, Freud e Jung, já tinham começado a recorrer à cultura grega para apoiar alguns dos conceitos fundadores das suas teorias. Estamos agora familiarizados com os sistemas de cura do mundo antigo, baseados não só na ritualização de certos momentos de passagem da psique, mas também na incubação e leitura de sonhos pelos sacerdotes encarregados dos grandes oráculos do mundo antigo. Alguns campos da psicologia de hoje estão indo além das nossas raízes greco-romanas para investigar e aprender sobre os conceitos de doenças/cura de tradições xamânicas. Hoje em dia, o nascimento da Etnopsicologia, uma disciplina que inclui em si muitas diferentes visões e que estuda os sistemas de cura de várias culturas, permite aos terapeutas ocidentais confrontarem-se com conceitos que estão muito longe da sua tradição científica. A psiquiatria transcultural è interessada nos modelos terapêuticos presentes nas populações de todo o mundo. As culturas não ocidentais contêm muitas referências à dimensão transpessoal, um elemento que falta na nossa história. A etnopsicologia e a etnopsiquiatria podem portanto representar as chaves que nos permitem fazer esta experiência, não apenas de um ponto de vista intelectual. O mundo tornou-se menor e agora podemos entrar em contato com experiências que estão longe dos nossos critérios tradicionais.

Como é útil interpretar o conceito de imaginação hoje em dia?

Maria Fiorentino – Imaginação, ou seja, a capacidade de evocar e/ou criar imagens é uma atividade presente nos seres humanos desde a pré-história. É o elemento que liga o mundo objectivo externo com a dimensão subjectiva interna. A psique desenvolveu-se precisamente a partir desta faculdade. É, portanto, uma função muito importante que intervém no processo de conhecimento e o molda. A imaginação é declinada principalmente a dois níveis: a dimensão das imagens inconscientes e a da elaboração de objetos reais. Com base nas imagens inconscientes Jung construiu o método da imaginação ativa: um procedimento para entrar em contacto com as próprias imagens interiores, muitas vezes desconhecidas à consciência: “Se nos concentrarmos numa imagem interior […] o nosso inconsciente produzirá uma série de imagens que formarão uma história completa » (Jung, Simboli onirici del processo di individuazione, 1936). Quanto ao segundo aspecto, a elaboração de objetos reais, a imaginação entra no processo do conhecimento, permitindo a integração do mundo interno e externo. Testemunhas disto são os artistas que elaboram as suas próprias imagens internas, tornando-as visíveis no e para o mundo. Na cultura contemporânea, a imaginação ainda é muitas vezes mortificada pela educação escolar. O mundo multiforme das imagens que proliferam na Internet e na televisão paradoxalmente não ajuda a imaginação: são esquemas pré-constituídos, coletivos, aos quais a psique – especialmente a dos mais jovens – adere passivamente, sem elaboração. É necessário difundir uma cultura do imaginário, um termo caro a Corbin e Hillman. O que podemos esperar em futuras declinações do imaginal são precisamente as palavras que Hillman usa para definir o Ego imaginal: “Um Ego imaginal não significa um Ego cheio de imagens trazidas pelas drogas, ou um Ego cheio de cognições sobre imagens. Pelo contrario, significa comportar-se de forma imaginativa” (Hillman, The Myth of Analysis, 1972).

Virginia Salles – Estamos habituados a pensar na imaginação como algo que não existe. Mas também a realidade em que nos movemos e que percebemos com os nossos cinco sentidos é hoje seriamente chamada em causa pelas novas ciências de fronteira. Para sair deste impasse talvez seja melhor considerar, como  Steiner e o proprio Jung  no Livro Vermelho, que “é real o que age”. Os psicólogos do profundo conhecem muito bem o poder transformador e a força psicológica da linguagem imaginária, que é muito mais poderosa e eficaz do que o discurso racional. As imagens atuam, têm vida própria e por vezes podem até tornar-se “autónomas” e levar-nos onde nunca pensávamos de poder chegar. Na prática terapêutica é importante aceitar a imagem tal como ela se apresenta, e deixá-la falar. Se a experiência é a da dor de viver, por exemplo, deixamos que os seus monstros falem, deixamo que se movam livremente nos labirintos do nosso mundo interior e exprimam as suas razões. Independentemente dos abismos de onde venham, deixamo-los agir dentro de nós e se transformarem. Transformar as imagens interiores é transformar a nós próprios. É este o seu propósito místico, arquetípico.

O que se vislumbra por detrás das fronteiras da psicologia transpessoal?

Virginia Salles – Uma nova dimensão existencial e quem sabe… um novo mundo. A característica mais evidente e realmente promissora da nova visão do mundo que emerge da psicologia transpessoal, claramente em contraste com a ciência académica, é a de reconhecer a realidade ontológica das dimensões espirituais, de oferecer, portanto, dignidade de existência ao que normalmente está escondido. Isto não só torna legítima a investigação espiritual, mas também reconhece a sua importância na evolução do homem, tanto do ponto de vista individual como coletivo. De certa forma “nos autoriza” a rasgar o véu das aparências. Por detrás das fronteiras da psicologia transpessoal, vejo abrir ao homem a possibilidade de acesso a uma verdadeira espiritualidade baseada na experiência pessoal e não nas ideologias dogmáticas das religiões organizadas. Podemos mesmo considerar o movimento transpessoal como uma espécie de “revolução” silenciosa  que visa abolir a escravidão psicológica dos limites do ego e da supremacia da Razão que tem caracterizado os últimos séculos da nossa civilização. Outro aspecto notável é a descoberta da tendência natural da psique para a auto-cura através da mobilização da  inteligência-energia interna profunda que guia o processo de transformação (o curandeiro interno de Grof). Uma vez que aqueles que experimentam “outro mundo” já não são considerados “loucos a serem amarrados”, segue-se uma mudança de perspectiva que tem implicações práticas consideráveis nas nossas vidas, cuja qualidade depende da profundidade do nosso “mundo interior” ou daquilo a que podemos agora verdadeiramente chamar “inteligência espiritual”.

 Maria Fiorentino – A viagem està começando. A psicologia tem pouco mais de cem anos e só recentemente começou a levar em consideração os aspectos mais eminentemente subjectivos da psique. A subjectividade sempre assustou a cultura científica ocidental e, em particular, a psicologia. A Psicologia do Profundo representa a base da investigação em Psicologia Transpessoal e esta relação está se revelando muito frutuosa. Se pensarmos que a psicologia dinâmica nasceu com o magnetismo de Mesmer e as terapias hipnóticas de Charcot e Bernheim, podemos dizer que a Psicologia Transpessoal é colocada como uma disciplina que pode integrar os resultados desses métodos: jà naquela època os relatórios clínicos tinham testemunhado uma abertura sobre fenómenos não explicáveis com a lógica actual. A Psicologia Transpessoal é uma espécie de grande contentor de conceitos e conexões relativas aos aspectos paradoxais da psique. Isto nos introduz  na física quântica e nos seus paradoxos. Para além dessas fronteiras encontram-se todos aqueles aspectos paradoxais dos mundos invisíveis – para usar o título do livro de Virginia Salles – que podem ser abordados e investigados numa viagem de descoberta que está apenas a começar.

Como é que o psicólogo se torna artista?

Virginia Salles – Aldo Carotenuto afirmou que a terapia é um ato criativo que não pode e não deve coincidir com a adaptação. O imenso sofrimento que vivemos quando a realidade externa parece não nos pertencer e não acolhe com agrado a expressão da nossa realidade interior exige uma mudança urgente: a “criação” de outra visão do mundo, de outro modo relacional, de um novo “canal de expressão”. O sofrimento, caso contrário, não pode ser atenuado. O terapeuta torna-se “um artista” cada vez que abandona qualquer visão pré-constituída do ser humano, do mundo, do “setting”, da terapia, da ideia partilhada de “normalidade”, e abre-se à singularidade e ao mistério de outro ser humano. Cada vez que, juntamente com o “outro”, empreende uma viagem de conhecimento e existencial única e irrepetível. Tudo isto tem um preço que não deve ser subestimado. Libertar-nos do medo e poder mostrarnos ao mundo pelo que realmente somos implica reacções coletivas e efeitos em cadeia que nem sempre são fáceis de gerir. Não é por acaso que apenas algumas pessoas possam realmente dar-se ao luxo de serem criativas.

Maria Fiorentino – Como Karl Popper afirmou, a psicoterapia é uma arte. A arte e a psicologia sempre estiveram intimamente ligadas entre si. Freud descobriu coincidências incríveis nas obras do escritor Arthur Schnitzler, ao ponto de não querer ler as suas obras, por medo de que algumas das descobertas que estava fazendo já tivessem sido antecipadas pelo escritor! A profunda ligação entre analistas e artistas é bem descrita por Janine Chasseguet-Smirgel: “O que é chamado no artista fantasia e inventividade corresponde no analista à capacidade de criar constelações, elementos, relações até agora desconhecidas. Porque nem mesmo no artista existe uma criação ex nihilo, mas uma recuperação de uma forma pertencente ao mundo interior de cada um e virtualmente presente. Isto significa que o espectador, o ouvinte, ou o leitor se encontram, graças à obra de arte, perante elementos que emergiram das profundezas da psique e que eles… são levados a reconhecer através de um processo semelhante ao insight e que, tal como o insight, liberta uma energia até agora encapsulada… A inspiração é o lugar de intersecção da criação estética e da psicanálise, a partir da qual as duas atividades são individualizadas” (Chasseguet-Smirgel, For a Psychoanalysis of Art and Creativity, 1971). A identificação de mundos inexplorados é tarefa de cada psicólogo e de cada psicoterapeuta, e este é o ponto em comum com o artista. A inspiração está localizada em áreas remotas e muitas vezes inacessíveis da psique consciente. A tarefa da psicologia é descobrir estes mundos e torná-los acessíveis a todos, para que todos possam experimentar o que significa  realmente a criatividade.

No seu livro Mundos Invisíveis, Virginia Salles recorda como a Tragédia na Grécia Antiga era um processo concebido para tornar o espectador novamente saudável: que arte pode redivinizar o mundo de hoje?

Maria Fiorentino – Não há arte em particular, mas todas podem contribuir para a recuperação de um equilíbrio harmonioso entre o homem e a natureza, entre o homem e o ambiente e o homem consigo mesmo. A perda do ritual na era moderna criou sérios danos: antigamente os vários momentos da vida humana e as passagens de uma idade para outra eram colocados dentro de uma dimensão ritual que continha as emoções e permitia a passagem para a nova situação. No mundo moderno não existem horizontes míticos-rituais – para o dizer com Ernesto De Martino – e isto tem produzido imensos danos, a angústia tem crescido e a vida humana já não tem pontos de referência. Nesta situação a psicoterapia tem uma tarefa fundamental, a de fazer o homem entrar em contacto com as suas próprias necessidades profundas: “É necessário um encontro direto com o “Mistério”, com a força espiritual, uma imersão nas profundezas do nosso mundo interior” (Salles, Mundos Invisíveis, 2013). É portanto importante recuperar a tradição da espiritualidade que, nas suas várias formas, incluindo as não religiosas, tem acompanhado a vida dos homens.

Virginia Salles – Uma arte que nos arraste para além do ego, a nossa doença. Uma doença que nos últimos séculos no Ocidente tem sido exasperada e levada às suas consequências extremas. Robert Musil no seu livro O Homem sem Qualidades afirma que se extrairmos o significado de todas as obras artísticas obtemos uma negação interminável, exemplificada e baseanda na experiência, de todas as regras, regulamentos e princípios nos quais se funda a sociedade que ama tal arte. Picasso vai mais longe e define a arte como uma reação dramática, na qual a realidade é desintegrada. A arte que nos torna novamente saudáveis me faz pensar naquelas obras-primas que destabilizam os nossos pontos de referência habituais e atuam como verdadeiros pólos magnéticos de atracção para os arquétipos do mundo interior, para as nossas divindades. Através da obra de arte podemos, portanto, ouvir os seus pedidos e deixar-nos perturbar pelo Mistério. Podemos, num certo sentido, evocar aquilo que “ainda não existe”, mas que poderia surgir desta imersão na nossa fonte interior de vida. No homem vive algo que vai além do próprio homem, e isto, algo sobre-humano no homem de hoje, deve nas gerações futuras, tornar-se cada vez mais manifesto.

Sempre em Mundos Invisíveis é dedicado um capítulo à figura de Maria Madalena, arquétipo de uma feminilidade diferente. De que forma pode esta figura representar uma ferramenta evolutiva para as mulheres e homens contemporâneos?

Virginia Salles – A nossa religião tem raízes profundamente machistas, basta pensar como as mulheres e a sexualidade feminina são descritas, por exemplo, no Malleus Maleficarum, o livro fundamental da Inquisição. A nossa necessidade de domínio e controlo sobre as coisas da natureza e o consequente afastamento gradual do mundo instintivo e feminino foi levada a extremos nos últimos séculos da nossa civilização ocidental. Não só a sexualidade e o mundo feminino, mas os próprios deuses pagãos, que representam a força da natureza em nós, como  a divindade grega Pan, por exemplo, têm sido abominados e demonizados. No catolicismo, Maria Madalena é considerada uma prostituta, mas no Evangelho o seu nome nunca é mencionado nos episódios em que Jesus se dirige a uma prostituta. A ciência e o desenvolvimento tecnológico são conquistas da mente racional, masculina, conquistas pagas a caro preço. Ao favorecer e reforçar o aspecto racional da psique, desacreditamos e desvalorizamos o mundo feminino na sua totalidade e no seu Mistério. Foi um desenvolvimento unilateral que, se por um lado nos ofereceu muitas vantagens, por outro nos tornou àridos. Nos últimos anos hà uma tendência na esfera coletiva – em sonhos, arte, cinema e literatura – para recuperar o mundo feminino, mas num sentido muito amplo que vai além da mera “libertação das mulheres” da matriz feminista. É acima de tudo uma revolução psicológica de recuperação da sensibilidade, da intuição, da União e do respeito pela Natureza. A emancipação do feminino reivindicada não apenas na esfera social mas a um nível mais profundo como Anima mundi, requer uma representação metafísica correspondente, uma nova imagem arquetípica de “mulher divina”, já não virgem, mas poderosa e inteira: uma imagem da mulher sexualizada. No contexto religioso, a figura de Maria Madalena surge assim como uma figura feminina revitalizada e mais completa que serve como antídoto restaurador da unilateralidade da nossa consciência masculina.

Lembro-me da “metamorfose dos deuses”, da qual Jung fala, uma transformação, neste caso, da mulher inconsciente, arquetípica dentro de nós, e que marca o advento de uma nova entidade metafísica.

Maria Fiorentino – Maria Madalena é uma extraordinária figura feminina, que conseguiu atravessar, quase incólume, os tempos do obscurantismo religioso. Agora estudiosos e historiadores redescobriram-na, identificando outros fios que a ligam a uma das maiores figuras de todos os tempos, Cristo. Muitas lendas floresceram à sua volta, o local mítico do seu enterro tem sido o Confronti 106 destino de peregrinações de reis, após dois mil anos a sua imagem está mais do que nunca cheia de sugestões. Como Virginia Salles sugere, Maria Madalena pode representar a imagem arquetípica do divino feminino integrando a trindade masculina: o princípio de Sofia. Maria Madalena, libertada dos enganos moralistas que a queriam como prostituta, está a assumir o papel de uma mulher rica de eros como uma qualidade positiva, uma mulher que liberta a serpente que era sufocada pela Mãe divina. Se tantos pintores sentiram a necessidade de a representar, isso deve-se ao fascínio que emana dela, apesar das mortificações que o mundo católico-patriarcal lhe infligiu.

Como é possível integrar os ensinamentos do xamanismo no mundo ocidental sem distorcer o seu conteúdo?

maria fiorentino – Não creio que seja possível. As várias formas de xamanismo desenvolveram-se e viveram dentro de um horizonte mítico-ritual. O sistema de crenças partilhado pela comunidade dentro da qual o xamã vivia representava o pano de fundo no qual ele se movia e praticava as suas viagens, as suas curas, os seus feitiços.

O mundo ocidental é desprovido de rituais, é desprovido de mitos, já não tem o húmus que durante séculos representou a coexistência do mundo comum e do mundo extraordinário. A única coisa que podemos fazer é observar estes fenómenos nos poucos lugares do mundo onde ainda sobrevivem, para que a sua memória não se perca e que possa ser recuperada uma herança de conhecimento.

Virginia Salles – O xamã faz uma viagem ao além, luta contra os espíritos, os mesmos espíritos que uma vez derrotados se tornarão os seus ajudantes nas práticas de cura. A restauração da dignidade dos ensinamentos xamânicos sem distorcer o seu conteúdo requer um quadro conceptual de referência mais amplo que reconheça a existência de diferentes dimensões da realidade. Em cada grande tradição espiritual encontramos dois níveis diferentes de conhecimento: o transcendente, profundo, que se refere às experiências subjectivas, e outro, mais “restrito”, que é o dos “dogmas religiosos”, das regras de comportamentos sociais e morais. O aspecto mais vital e autêntico de uma religião é o interior, que é também eterno, enquanto o segundo, formal e mais contingente, está sujeito a mudanças tanto no tempo como no espaço. O autêntico núcleo de cada tradição espiritual une os seres humanos, elimina preconceitos e suaviza os conflitos étnicos e culturais. As experiências xamânicas pertencem a esta dimensão porque descrevem experiências do mundo invisível, experiências que dizem respeito à essência profunda da vida. Ao longo dos séculos, este aspecto essencial da experiência subjetiva tem sido frequentemente demonizado, colocado em segundo plano ou mesmo ignorado; enquanto que o aspecto dogmático tomou conta, distanciando-nos da nossa “fonte vital”, e exasperando cada vez mais as diferenças. Na medida em que valorizamos a dimensão mais autêntica do ser humano, estas diferenças de cultura e conteúdo tornam-se cada vez mais irrelevantes, enquanto a essência e profundidade da experiência destaca-se cada vez mais. O xamanismo tema inda muito a nos oferecer,  muito para experimentar e compreender, permanecendo ele mesmo.

Como desbloquear o impasse cultural em torno da psicologia transpessoal em Itália?

Maria Fiorentino – A psicologia transpessoal encontrou dificuldades não só em Itália, mas também no local onde nasceu e se desenvolveu, os Estados Unidos. Parece-me que as razões deste ostracismo são imputáveis a uma cultura científica, amplamente espalhada por todo o Ocidente, baseada em critérios restritivos em que não é dado espaço a elementos novos ou diferentes. Podemos dizer que a perspectiva sobre outros mundos é fortemente penalizada no Ocidente: pense nas dificuldades que a publicação de um texto como o Livro Vermelho de Jung encontrou, no qual o autor fala de experiências que não são facilmente colocadas dentro dos padrões clássicos de pensamento. Para ultrapassar o impasse é necessária uma transformação cultural, que coloca não só a psicologia transpessoal, mas todas as vias de investigação em campos de conhecimento não tradicionais, numa dimensão de aceitação e escuta.

Virginia Salles – Não é fácil responder a esta pergunta, não é fácil encontrar um ponto de viragem para ultrapassar os preconceitos em relação às experiências transpessoais em geral, e em Itália em particular. A visão do mundo que nos é proposta no campo transpessoal bem como o modelo da psique de referência são completamente diferentes dos que são maioritariamente partilhados no mundo ocidental. As pessoas que vivem experiências do mundo invisível encontram grandes dificuldades para as colocar num quadro de referência aceitável, uma vez que lhes faltam as ferramentas necessárias para a sua compreensão: aquele conjunto de mitos, ritos e crenças que ajudam a elaborar e validar a experiência.

Estas experiências acabam por ser desviantes em relação à visão do mundo partilhada pela cultura de pertença. A psicologia e psiquiatria tradicionais oferecem um modelo de psique limitado à biografia pós-natal que não inclui e considera patológicas experiências que são geralmente aceites e dotadas de significado no campo transpessoal. O modelo de referência da psicologia transpessoal expandiu grandemente a tradicional “cartografia do inconsciente” ao incluir, para além do período biográfico, outras possibilidades experienciais: os territórios pré-natais e perinatais e todas aquelas experiências dos mundos invisíveis que hoje em dia são precisamente definidos como transpessoais. Lembro-me de ter feito esta mesma pergunta a Grof há alguns anos atrás durante uma entrevista e reporto aqui a sua resposta: “Penso que há experiências, evidências, observações mais do que suficientes surgidas do trabalho com estados de consciência não habituais que, se fossem sistematicamente estudadas, levariam a uma revolução comparável à que aconteceu aos físicos nas duas primeiras décadas do século XX, quando passaram da física newtoniana à física relativista e depois à física quântica. É extraordinário o que os físicos foram capazes de fazer, que foi mudar a forma de pensar. Da mesma forma, com todas as provas que foram produzidas ao longo do tempo, a psicologia poderia seguir o mesmo caminho. O que quero é que as provas já esistem, e se as pessoas que as observam tivessem uma mente suficientemente aberta, a revolução aconteceria automaticamente”.