As raízes profundas da violencia

 

 

                            

   Tento golpear na ponta do nariz do meu adversário para poder acertar o osso no seu cérebro.
               Mike Tyson

 

Houve casos em que a agressão física não foi tão severa como a opressão psicológica sofrida pelo povo negro durante o apartheid. É uma tortura psicológica que é impossível de descrever por palavras.

                                                                                                                   Nelson Mandela    

Se pensamos na violência, nos vem à mente as cenas sangrentas relatadas diariamente pela mídia, mas tem algo mais sutil e igualmente perigoso que emerge quase num sussurro, no silêncio abafado do setting terapêutico. Algo que está no ar que respiramos, uma atmosfera mais do que um episódio notavel, inserido num “enredo” que é construído ao longo do tempo. Tem um termo em inglês que descreve esta atmosfera tóxica: gaslighting, que deriva de uma peça de teatro de 1938, Angel Street, de Patrick Emilton, mais tarde transformada num filme: Gas light (na Itália Angoscia) com Ingrid Bergman, realizado por Georg Cukor. Um drama psicológico baseado numa relação conjugal insana: a mulher é levada à loucura pelo seu marido, que, através de um jogo manipulador de ligar as lâmpadas de gás (gas light, “luz de gás”) ou de mover objetos e, simultaneamente, negar o que está a acontecer, leva a sua mulher a duvidar das suas percepções até enlouquecer.

              A violência, neste caso, é sutil, quase invisível, mas continua no tempo, através de pequenos episódios irreconhecíveis como tal. O marido, apresentando-se como vítima das estranhas percepções da sua esposa, através de distorções na comunicação, envia-lhe mensagens contraditórias, incitando à dúvida e confusão com efeitos devastadores. A mulher, cúmplice inconsciente do marido/agressor e incapaz de reconhecer a violência em si, atinge o estado limite da loucura.

Estamos habituados a pensar que a forma de violência que deixa um sinal visível no corpo seja muito mais grave, enquanto, na realidade, as consequências a longo prazo da violência psicológica – exercida através de abusos, comunicações perversas, acusações injustificadas, ameaças, instigação ao suicídio, isolamento (o deserto que o agressor cria em torno da vítima), manias de controle, insultos, desvalorização, escárnio, perseguição, ciúmes desmotivados – são igualmente destrutivas. Na família, por exemplo, a hostilidade disfarçada, a intrusão dos pais em relação aos seus filhos, a sedução, a manipulação, etc… podem ser encontradas nas histórias de muitos adolescentes desajustados e autores de crimes graves.

Nas relações entre adultos, a agressão visa geralmente a preservação do agressor e dos seus limites: uma reação ao fato de que o outro, a vítima, tenha se tornado o objeto das suas próprias projeções. Quando, por exemplo, o parceiro ou outro membro da família se torna o receptáculo da projeção da Sombra – de todas as características que a pessoa não reconhece ou não pode aceitar em ralação a si mesma – ele acaba por se tornar “a ferida”, um espelho negativo ou um obstáculo que se põe entre a pessoa e os seus objetivos pessoais. Às vezes, a encarnação do próprio Mau. Neste caso, não há intenção real de prejudicar ou humilhar o outro, mas simplesmente a comunicação está viciada por outros objetivos que não são a própria comunicação, e “o outro” então deixa de existir. Comunicações perversas, ou seja: a negação da comunicação. Exemplos de comunicações perversas encontram-se nos livros de Kafka: O Processo, O Castelo, A Metamorfose, por exemplo, histórias emblemáticas de uma conversa falhada, viciada, na qual as perguntas nunca recebem respostas que não sejam deformadas, nem encontram um ouvido disposto a escutar. Perante esse tipo de comunicação nos sentimos isolados e desorientados. Invisíveis. A comunicação autêntica, pelo contrário, não isola as pessoas, mas gera alimento emocional, confirma o nosso sentimento e a experiência que temos do mundo e do Outro.

A negação de algo que está acontecendo é um comportamento típico do gaslighter  que induz a vítima, através de um lento processo de envenenamento psíquico, a duvidar das suas próprias percepções e sentimentos e a dissociar-se de si mesma. Em linguagem técnica definimos “dupla ligação” esta perversa e dolorosa forma de relação descrita por Gregory Bateson pela primeira vez no seu famoso livro Towards a Theory of Schizophrenia. Na dupla ligação, a pessoa, tal como no filme, está presa em uma situação na qual a outra pessoa que participa na relação, e com quem tem um envolvimento emocional, comunica duas ordens de mensagens em que uma nega a outra (geralmente a mensagem verbal está em contradição com a não verbal: expressões faciais, tom de voz, postura, comportamentos, etc…). Este modo de comunicação, verdadeira violência psicológica, tende a desconfirmar o mundo interior do outro, a sua própria existência e, consequentemente, a provocar uma profunda divisão interior.

O sonho de Alice, uma mulher de 45 anos, é emblemático de uma situação em que a verdade é negada: a sonhadora é uma criança e vai com o seu pai no carro a uma loja para comprar doces, mas depois vê que ele não estava comprando doces, mas sim maquilhagem feminina.

A mistificação e a desconfirmação são ingredientes indispensáveis na violência psicológica. Mistificar num sentido ativo significa confundir, disfarçar o que está acontecendo enquanto na desconfirmação o que vem negado é mesmo a  existência do outro, através da negação da sua realidade interior: sensações, sentimentos, percepções. O que é implicitamente comunicado é “você não existe”.

No caso de Alice, a violência da comunicação distorcida entre pai e filha revelada no sonho tende a cobrir outro tipo de violência de tipo sexual, numa espiral crescente de violência sobre a violência.

Diante do paradoxo, da contradição entre o que é percebido e sentido e o que é verbalmente afirmado, a criança aprende a negar os seus sentimentos e sensações e a reagir apenas aos estímulos que vêm do mundo exterior. As relações que se baseiam neste tipo de comunicação negada  permanecem estagnadas no tempo, até que a pessoa que as sofre perca completamente o caminho de acesso ao próprio mundo interior. Nesta altura, a vítima só pode “funcionar” usando uma máscara.

A sonhadora caminha num bairro com muitas casas idênticas, todas as pessoas estão indo visitar as suas família de origem (família, de acordo com as associações da sonhadora = emoções não expressas = segredos). 

Ela está num celeiro com um homem e há uma pequena janela redonda através da qual os raios solares entram. Pendurada numa corda ela tenta saltar da janela em direcção ao sol, mas falha e nas suas tentativas cai ao chão.

Alice está na casa onde viveu quando era criança, ela sabe que há quartos murados na casa e derruba as paredes com um martelo; encontra um baú com as camisolas que usava quando tinha 13 anos. Encontra ninhos de vespas, uma vespa morde o seu dedo anelar, onde está a aliança de casamento. Ela sente dor e para se livrar da vespa tem de remover a sua aliança de casamento.

Enquanto comentava um episódio de violência contra uma menina, do qual  tomou conhecimento e que muito a perturbou, Alice tem uma reação exagerada: fecha os olhos e se encolhe toda… depois grita e diz que não é correto, não é correto que uma menina de quatro anos sofra tudo isto… ela diz isto no meio de gritos e soluços e descreve uma cena em que há um homem, mas não consegue ver o seu rosto.

Sonha a terra que se abre e descobertas arqueológicas que emergem.

Em casos de violência sexual em contextos religiosos, como uma igreja, por exemplo, que tem como princípio fundamental a negação do corpo e da sexualidade, a ambivalência atinge níveis insuportáveis para a psique da criança e as consequências são devastadoras: imobilidade, divisão, identificação com a máscara, perda de vida interior, alienação.

É emblemático o caso de Vittorio, 38 anos, que foi iniciado na homossexualidade dentro de um oratório que frequentava com a sua namorada, onde ajudava o sacerdote nas funções religiosas. Hoje em dia, o homem, gay declarado, é incapaz de estabelecer relações emocionais reais que vão para além de relações puramente físicas e ocasionais. Ao mesmo tempo, dedicado à sua igreja e bem inserido nos círculos religiosos – aos quais se sente em dìvida por lhe ter dado a oportunidade de estudar e alcançar o topo da carreira em que agora se encontra – é incapaz de ver com a devida objetividade e sentido crítico a terrível violência sofrida dentro destes mesmos círculos, pelos seus “benfeitores”.

O sonho recorrente de Vittorio é a visão de água que parece limpa, mas ele sabe que não é e não mergulha.

Encontra-se num Hotel e tem uma relação sexual ocasional Um monstro macho agarra-o pelas pernas e imobiliza-o.

Um dia o marido de Alice (que ela descreve como anafetivo) dá-lhe uma bofetada sem qualquer razão… ela é aniquilada quando ouve, depois, a sua voz suave: “Me dá um beijo de boa noite?

Alice sonha com um cadáver qua flutua numa piscina na sua casa.

Só através de uma profunda e dolorosa viagem interior e da tomada de consciência que segue é que nos sentimos “autorizados” a ver a criança aprisionada dentro de nós e ouvir finalmente o seu grito até agora abafado. Só então poderemos compreender essa necessidade extrema de negar a dor ao ponto da escolha destrutiva da auto-imolação.

Alice me diz que procurou lembrar de todos os homens que frequentavam a sua casa quando ela era criança, mas que não consegue focalizar. Me fala de uma grande ansiedade e de repente todo o seu corpo fica rigido e começa a tremer fortemente, as pernas, o peito, a garganta doem-lhe, depois um tremor cada vez mais violento e começa a chorar e a gritar: “Mamma! Mamma!!!” No final da sessão, exausta e abalada, ela sai para o jardim, sente vontade de correr….

Defender-se significa blindar-se, resistir, não se deixar arranhar. Enquanto a contrapartida da defesa é o amor: é “deixar-se penetrar”, abrir portas, ultrapassar as fronteiras, deixar-se “ferir” com a seta, como  no mito de Eros.

Após um longo período de rigidez, em que tudo foi controlado pelo filtro da racionalidade antes de poder ser considerado digno de ser expresso, Alice começa a descodificar as mensagens do seu mundo interior, começa a redescobrir o valor do que sente, das suas emoções e intuições, do que o seu corpo lhe comunica sabiamente. Ela finalmente escuta-o, aquele corpo afligido por uma doença grave nas suas partes mais íntimas, e consegue assim captar todo o significado de um mundo feminino negado, ferido com uma ferida mortal. 

Encontra-se num país do Médio Oriente (país opressor da mulher), presa num espaço de forma  diagonal com um teto muito alto. Ela vê o seu sexo dividido verticalmente e jorra muito sangue.

A capacidade de dominar e conter-se é muitas vezes encorajada e considerada, em algumas famílias, como a de Alice, uma virtude. As emoções e os sentimentos não podem ser expressos, não fluem. Uma condição que tem sido transmitida ao longo de gerações. Mas as emoções inexpressas não evaporam, permanecem atrás de portas fechadas no nosso mundo interior e, em muitos casos, descem a um nível menos sutil, encarnam-se nos nossos corpos, nos nossos músculos, tecidos….  entranhas. Num ambiente  acolhedor e protegido como o setting terapêutico, a pessoa pode finalmente se permitir escutar, reconhecer, viver finalmente sem medo tudo aquilo que se agita dentro de si. Todo o mundo emocional de Alice, outrora demonizado como algo proibido, adquire agora valor sob a bandeira de uma nova consciência. O corpo sabe… é ele, mais do que a sua cabeça, ligado ao ser primordial, à Mater-ia, o guardião da verdade.

Ela e o seu marido no carro com uma rã (metamorfose).

Alice desce uma colina ao lado de um amiga. A descida torna-se cada vez mais íngreme e chega até o mar. É um mar verde e transparente com areia dourada. Ela dá um mergulho e se sente em paz.

Estas são apenas algumas notas, fragmentos de um caminho terapêutico, em que o corpo, recipiente de segredos invioláveis, teve um papel determinante em toda a sua fúria rebelde.

Marcel Proust sofria de asma. A sua mãe, pelo que emerge das suas cartas, se preocupava muito com ele, queria decidir tudo por ele até nos mínimos detalhes e queria fazer dele o filho de que ela precisava (asma= respiro sufocado=”preciso de AAAARRRR!!!”). Não me admira que Proust não conseguisse se libertar de tanto controle e que só após a morte de sua mãe ele pôde publicar as suas observações críticas e agudas sobre o mundo burguês, ao qual ela pertencia, e descrever o universo dos seus sentimentos e emoções mais profundas.

Viola, 43 anos, vítima de violência, tem o seguinte sonho: está visitando um sítio arqueológico e tem de seguir um itinerário diferente, geralmente proibido ao público. Há outras pessoas lá, mas é um homem que quer que ela siga este caminho. Explicam-lhe que existem inscrições antigas ao longo das paredes e, como este era um lugar frequentado por crianças, existem principalmente gravuras de jogos e cenas de sexo. Caminha mais alguns metros e encontra-se diante de um abismo… o medo do vazio deixa-a sem fôlego.

A violência física, em particular a violência sexual, é um dos elementos mais espinhosos e delicados que emergem durante um processo terapêutico, o mais sujeito a muros de resistência por vezes intransponíveis. Os “segredos de família”, guardiães da imagem de “boa famìlia”, às vezes até “perfeita”, construída pela pessoa ao longo dos anos, são difíceis de desvendar e às vezes representam um grande impedimento durante o caminho do auto-conhecimento. Mas cada corajosa tomada de consciência destes segredos dissolve a energia aprisionada na remoção, abre as portas de acesso ao mundo interior e traz consigo um sentimento indescritível de libertação com consequências muito positivas do ponto de vista existencial, criativo e relacional.

 Viola está num local subterrâneo, tem de fazer pipi e um homem acompanha-a ao banheiro. O homem aproxima-se dela, põe a mão sobre os seus ombros e olha morbidamente para os seus genitais, que não são os de uma criança, mas os de uma mulher adulta.

A tomada de consciência que segue com toda a sua dor, promove a conjunção dessas partes de si mesma até agora separadas e irreconciliáveis: o corpo e a alma.

Dinanzi al paradosso, alla contraddizione tra ciò che si percepisce e si sente e ciò che viene affermato verbalmente, il bambino impara a negare i suoi sentimenti e sensazioni, tutto il suo sentire ed a reagire solamente agli stimoli che provengono dal mondo esterno. I rapporti che si fondano su questo tipo di comunicazione negata non possono modificarsi nel tempo, rimangono stagnanti fino a fare smarrire completamente, a chi li subisce, la via di accesso al proprio mondo interiore. A questo punto la vittima può “funzionare” soltanto indossando una maschera.

As raízes profundas da violência contra as mulheres: uma visão transpessoal

 

Quando falamos de violência, especialmente de violência física, geralmente falamos de violência contra as mulheres. A violência cultural e histórica está associada às vítimas femininas: um mundo submerso e silencioso, feito de horrores domésticos, denunciado pelo movimento feminista e assimilados pela consciência coletiva nas últimas décadas. Mas por que é que a mulher é o alvo privilegiado de tanto ódio e violência assassina?

Viemos ao mundo separando-nos de um corpo feminino e esta experiência arquetípica de separação, o nascimento, é, segundo alguns estudiosos, Otto Rank entre outros, a maior dor e o maior trauma do ser humano.

As antigas tradições espirituais consideram a experiência do nascimento como o abandono da nossa “natureza divina”, ou seja, do nosso ser infinito e sem limites. “Separação” que é definida como uma ferida existencial que lentamente se transforma numa dor indescritível, “a dor sem nome”: uma sede de infinito e o anseio por algo que não sabemos como definir.

Stanislav Grof, no seu estudo aprofundado sobre as várias fases do nascimento, fala de uma luta titânica empreendida pelo nascituro com o corpo materno, através do canal de parto (Terceira matriz perinatal), que aumenta cada vez mais o seu sentido de delimitação e confinamento numa dimensão corporal, e que tem como resultado final o nascimento como uma individualidade separada e a formação das fronteiras do ego: as fronteiras entre “eu” e o mundo.

As pessoas que revivem esta luta arquetípica através de uma terapia experiencial profunda falam sobre a dor visceral e generalizada que sentem ao tomar forma humana. Dizem que se sentem afastados da sua verdadeira natureza e que, de alguma forma, o nascimento os arrancou dessa sensação de total liberdade e unicidade e os aprisionou num corpo individual, material. À medida que atravessam o canal de nascimento sentem-se cada vez mais limitados e confinados, como se esta passagem fosse a porta que do mundo sem limites do espírito se abre para a dimensão pessoal/material. A partir de agora a nova condição existencial de “separatividade” torna-se uma componente da natureza humana.

 

 

A Grande Guerra

 

A grande guerra interior, descrita por Grof, a que foi travada pela criança por nascer contra um corpo feminino para vir à luz como um indivíduo “separado”, tem implicações insidiosas. Se, por exemplo, sofrermos violência de qualquer tipo, sexual, física ou psicológica, este sentido de separatividade/isolamento torna-se mais agudo, mais profundo e mais difícil de eliminar. A violência aqui deve ser entendida como uma invasão da integridade física, sexual, emocional, intelectual ou espiritual, uma intrusão através dos limites que nos definem na nossa singularidade/identidade.

A sequência experiencial descrita por Grof como a “Terceira Matriz Perinatal” ou “a luta de morte e renascimento”, relacionada com a ativação da segunda fase clínica do parto – quando o colo do útero se dilata e permite a passagem gradual do nascituro pelo canal de parto – adquire particular importância no nosso discurso devido à sua estreita relação com os aspectos mais violentos e destrutivos da natureza humana presentes nas profundezas da psique: a possibilidade de uma saída, que se apresenta ao nascituro com a abertura do colo do útero, ativa nele uma luta intensa para se libertar das garras da morte com ataques agressivos ao corpo da mãe que o esmaga, sufoca e expulsa e do qual se quer libertar, e tambèm da parte do corpo da mãe a ele através das contrações uterinas. Este violento combate entre os dois corpos causa dor, forte pressão e  asfixia à criança que está nascendo.

A atitude psicológica e a agressividade do homem contemporâneo para com a Mulher, para com a Natureza (Mãe), a serem “controladas”, e para com a Terra (Mãe) como objeto de exploração e domínio, segundo alguns estudiosos (Grof, R. Tarnas, C. Bache, etc…) poderia ser vista nesta perspectiva, como mais uma expressão da ativação deste aspecto da experiência de nascimento, da “Terceira matriz perinatal” a nível coletivo.

 Quando durante uma terapia experiencial profunda esta fase do nascimento é ativada, surgem temas e cenas recorrentes caracterizadas por violência extrema: massacres humanos e animais, guerras e revoluções sangrentas, explosões atómicas, lançamento de granadas e mísseis, cidades postas sob fogo e espada, lutas sangrentas, estupros. A dor e o medo ligados à percepção de um perigo vital iminente por parte da criança por nascer, o esmagamento e a angústia de asfixia sentidos durante esta passagem, geram uma enorme agressividade que, não podendo ser expressa na situação de confinamento em que a criança por nascer se encontra, permanece aprisionada no organismo como num reservatório de energia destrutiva, tanto do ponto de vista físico como psicológico. Todo este processo culmina no sentimento de completa aniquilação, imediatamente acompanhado por um inimaginável sentimento de libertação, de salvação, que é vivido simultaneamente como nascimento físico e renascimento espiritual, descrito por muitas pessoas que revivem a experiência do nascimento. Esta fase do nascimento é definida por Grof como a “Quarta Matriz Perinatal”.

Os estudos de Grof sobre as dimensões perinatais do inconsciente lançaram nova luz sobre a gênese da agressividade, revelando as raízes profundas de um dos aspectos mais perigosos da natureza humana: a agressividade “maligna” descrita por Erich Fromm, que atinge uma dimensão tal que não pode ser comparada com a agressividade presente no reino animal.  Estas descobertas colocam o fulcro da agressividade humana a uma profundidade nunca antes imaginada e salientam como tal agressão está ligada a dinâmicas inconscientes nunca processadas, de modo a impedir o acesso à nossa identidade mais profunda que, de acordo com as experiências que emergem da prática de terapias experienciais profundas, não é de natureza agressiva.

As matrizes perinatais[2], amplificadas por todas as experiências emocionais importantes das nossas vidas, formam um fulcro energético que atua a partir do interior[3], influenciando a nossa percepção do mundo e o nosso comportamento na vida quotidiana e dando origem à formação de vários distúrbios emocionais, psicossomáticos e psicossociais. A uma escala coletiva, matrizes perinatais coloram religiões, arte, mitologia, filosofias com o seu tom emocional e manifestam-se através de várias formas de psicopatologia social e política. Jung argumentou que a influência exercida pelos arquétipos do inconsciente coletivo, transcende o comportamento individual e pode determinar os acontecimentos da história humana. É o caso, por exemplo, da emergência, na psique coletiva do povo alemão, do mito Ragnarok que, segundo Jung, levou à grande catástrofe destrutiva da Segunda Guerra Mundial.

Grof examinou uma grande variedade de desenhos animados, caricaturas, piadas, ilustrações de jornais impressas em tempo de guerra, bem como frases usadas em jargão político e, recorrendo também a material recolhido por outros estudiosos (Lloyd de Mause, Carol Cohn, Sam Keen), encontrou uma surpreendente abundância de metáforas e imagens relacionadas com o nascimento biológico. Os líderes militares e políticos de todas as épocas, nos discursos às populações civis destinados a justificar a intervenção de guerra e nas declarações de guerra, utilizam termos que descrevem a angústia perinatal: o inimigo é aquele que “tira o fôlego”, oprime, sufoca, estrangula o povo.

Do material recolhido em tempo de guerra sobre a representação do inimigo, analisado por Grof, emerge uma prevalência de imagens carregadas de angústia perinatal, relacionadas com as contrações uterinas durante o parto. O inimigo aparece como uma tarântula, um polvo insidioso, o dragão a ser morto, a cobra-jibóia que comprime e estrangula.

Particularmente significativo foi o uso de linguagem perinatal por ocasião da explosão da bomba atômica em Hiroshima. Ao avião que lançou a bomba foi dado o nome da mãe do piloto: Enola Gay. A bomba atómica recebeu o nome de “menino” e a mensagem acordada para comunicar a missão cumprida foi “o bebê nasceu”.

Na guerra, substituímos estes elementos removidos do inconsciente por alvos externos.  Antes do homem ir para a guerra, portanto, já existe a guerra dentro do homem. Uma projeção de uma dimensão profunda da psique que poderia ser abordada e integrada de outra forma, por exemplo, através de uma terapia experiencial profunda.

Os temas da agressividade sexual, a rejeição e a opressão do feminino (o corpo da mãe) e a escatologia que emerge em tempos de guerra (campos de concentração, cidades sitiadas, etc…), mostram uma profunda analogia com as imagens da terceira/quarta matriz perinatal, bem como todas as expressões de exploração, dominação, violência para com o feminino pelo masculino e, em geral, todas as formas de manifestação de poder e supremacia egóica.

A guerra então, a guerra mais feroz e violenta que existe dentro de cada homem, é aquela que ele lutou contra o corpo feminino, o corpo materno, para vir à existência, para nascer como um indivíduo separado e estabelecer os seus próprios “limites”. Quando, durante uma profunda auto-exploração, nos ligamos à experiência do nascimento biológico, não só entramos em contacto com uma concentração inimaginável de ferocidade brutal, como também exploramos esse reservatório de experiências dolorosas semelhantes pertencentes à espécie humana, que são preservadas na memória ancestral do inconsciente coletivo (o nascimento arquetípico). A luta de cada ser humano para se separar do corpo da sua mãe e estabelecer os seus próprios limites, com toda a violência e destrutividade a ele ligada, permanece, segundo as teorias de Grof, o núcleo energético de toda a agressividade humana. Esta luta, projetada no mundo externo, tem como manifestação extrema a ação da guerra.

As teorias de Grof identificam e descrevem a enorme acumulação de violência armazenadas no indivíduo, mas sobretudo no inconsciente coletivo da nossa espécie, e colocam as raízes da agressividade humana a uma profundidade nunca antes imaginada pelos teóricos que tentaram explicar este fenómeno.

Viola está numa exposição de arte e no cartaz lê uma frase: “NÃO SEJA DOIS PEDAÇOS, VOLTE A SER UM SÓ PEDAÇO”. O cartaz também mostra o contorno de uma cabeça humana, feita com letras de um quebra-cabeças.

Mirella, 30 anos, vítima de violência psicológica, sonha que foi dançar mas em vez de um salão de dança, encontra-se numa casa de prostituição.

Uma mulher marcada no rosto por um grupo de homens, mas ela olha bem para eles e vê que não são homens, mas fantoches.

A ferida existencial profunda expressa neste sonho com “a cicatriz no rosto” é uma imagem do sentimento doloroso de humilhação e “anulação” sofrido por muitas mulheres vítimas de violência.

A ativação do nível perinatal da psique, que faz emergir com grande intensidade toda a violência e destrutividade da história humana, poderia estar, num certo sentido, associada a essa tendência inata da psique para reviver e superar os seus próprios traumas a fim de se curar e alcançar um maior equilíbrio, tanto a nível ontogenético como filogenético.   

Jung previu uma mudança epocal na psique contemporânea: uma “metamorfose dos deuses” ou princípios fundamentais: a coniunctio oppositorum entre o princípio masculino dominante e o feminino que está se afirmando cada vez mais no mundo de hoje. Esta transformação sempre foi, segundo Richard Tarnas, o objetivo oculto de todo o desenvolvimento intelectual e espiritual no Ocidente. O desejo mais profundo da mente racional seria, portanto, de superar esta grande fratura, que tem as suas raízes na experiência do nascimento, e de se unir ao feminino interior.

 

 

[1] T. Dethlefsen, R. Dahlke, Malattia e destino, Edizioni mediterranee, Roma, 1990

 

[2] Cfr. sull’argomento  l’ampia bibliografia di S. Grof

[3] Vedi concetto grofiano di COEX (Systems of Condensed Experience)