Comento de Luciano Fargnol

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Virginia Salles, Mundos Invisíveis, Fronteiras da psicologia transpessoal,
Alpes, Roma, 2013

Descrever o que não é imediatamente visível, que causa impacto, ativa e desafia a nossa percepção habitual, ou o sistema de significados em que nos movemos, é certamente uma experiência à qual somos chamados a responder, empregando toda a nossa capacidade de ultrapassar os ‘estreitos limites da razão’. A autora, com a coragem típica daqueles que vivem as suas experiências primeiro na propria pele, com esta obra provoca não só a nossa organização do mundo, ou como o representamos, mas também nos mostra um caminho, uma possibilidade de acesso a um mundo “outro”, tocando assim o tabu de uma consciência hegemónica que considera aceitável, ou “verdadeira” apenas o que pode compreender e fechar num sistema de definições. Refletamos sobre o significado da etimologia: ‘cum prehendo’, não significa apenas ‘levo comigo’, mas também ‘faço meu’, tomo posse dela, anoto-a. Questiona, de forma convincente e eficaz, porque corroborada pela clínica, a primazia de uma razão que exclui, e nega “a priori” qualquer outra forma de percepção sensível. Deve-se dizer imediatamente que o assunto, no obscurantismo dos séculos passados, era frequentemente considerado pertinente à magia, à superstição, àquela visão do mundo que se enquadrava sob o termo “ocultismo”, ou na área limite das chamadas “ciências ocultas”, mas também da corrente mística dos contemplativos. Quando o filósofo E. Von Hartmann, reforçado pelos limites impostos à razão pela filosofia de Kant, chega à hipótese de um limite para além do qual ir, a fim de compreender ‘o que é desconhecido da consciência’, e define-o como ‘Inconsciente’, abre às ciências humanas uma possibilidade de exploração que pode e deve ser conduzida com os instrumentos da consciência. O ego, que durante alguns séculos, graças ao cogito da memória cartesiana, foi indicado como o senhor absoluto da terra, deve aceitar algo que é “diferente de si mesmo”, já não relegado para o reino da fantasia, do sonho e da imaginação, mas “um lugar de possível experiência”. Uma dimensão, portanto, não um lugar, difícil de explorar, que pela sua própria natureza se apresenta como o “Absoluto Noutro lugar” do qual o autor indica um caminho, uma praticabilidade, um processo, através do qual se pode vivenciá-lo. O grande mérito deste trabalho é mostrar a ‘praticabilidade’ dos ‘mundos invisíveis’, dando assim voz  à possibilidade de ir em direcção ao desconhecido, do conhecimento directo dos ‘alter pars’ a quem deseja fazer esta viagem.

Por exemplo, devemos à coragem de C.G. Jung, de ter enfrentado sozinho, experimentando na sua própria pele, todos os riscos de uma viagem tão “perigosa”. O “Livro Vermelho” é um relato preciso e pontual da sua “viagem interior” ou se preferir, no “outro mundo”, uma nekuia, o que lhe permitiu não só a descoberta de si próprio, mas também a possibilidade de “identificar e aplicar” uma série de ferramentas adequadas à viagem para aquelas terras, aquela matriz/mãe inconsciente com a sua linguagem enigmática que sempre desafiou o homem a descodificá-la.

E Salles começa aqui mesmo, quando diz que “o verdadeiro ato de coragem, o único que nos é exigido como participantes no grande milagre da Vida, é a coragem para enfrentar o Desconhecido, de enfrentar o que de mais incompreensível e perturbador possamos encontrar no nosso caminho” (p.1 ) lembrando-nos que “A história humana dos últimos séculos é semeada com livros vermelhos que permanecem dentro de gavetas, à espera de tempos melhores, por medo da inquisição moderna que começa com o diagnóstico incessante até às várias fases e ritos que marcam o caminho da exclusão do contexto humano daqueles que estão “fora” das suas mentes (p. 9). Um caminho que leva o leitor a uma visão da psicologia que se transforma de psicologia interpessoal em psicologia trans-pessoal. Na sua introdução, por exemplo, lemos, relativamente à experiência emprestada pela psicologia transpessoal, que “tudo nos aparece iluminado com uma nova luz, simplesmente como é, como nunca tínhamos visto antes … e um ‘tsunami emocional pode nos subjugar’ … tons de sons e cores e o significado final de tudo o que estamos a experimentar parecem-nos intraduzíveis em pensamentos coerentes e aceitáveis” (p.XI).  Uma visão que, nem que seja por um momento, nos leva diretamente de volta a W. Blake que argumenta que “quando as portas da percepção estão bem abertas, as coisas parecem-nos como realmente são: infinitas”.  Aldous Huxley toma destas palavras o título do seu livro mais famoso, “As Portas da Percepção”, no qual descreve com precisão as experiências feitas sobre si próprio, com o uso da mescalina, para satisfazer essa “necessidade de transcender a personalidade consciente do Ego…como inclinação fundamental da alma” (A.Huxley, The Doors of Perception, Ed. La grande bevuta, Ferrara, 1978, p.40). O que ele obtém nesta experiência é um abrandamento na percepção da duração do tempo, e a visão “… do que Adão tinha visto na manhã da sua criação: o milagre da existência nua” (op.cit., p.8). Mas também a Henry Michaux de “O Espaço Interior”, ao seu “infinito miserável” experimentado com mescalina; ao uso do LSD por Timothy Leary como uma religião da mente. E mesmo a essa tentativa de descrição e/ou explicação da experiência ‘mágica’ feita pelo antropólogo Carlos Castaneda no seu viaje com o feiticeiro Yaqui Don Juan, através do uso de substâncias psicoactivas tais como mescalina, psilocibina (peiote) e vários cogumelos alucinógenos. Uma viagem, sempre conduzida com a presença do “guia feiticeiro” que tinha a tarefa de “traduzir” em significados compreensíveis as experiências extremas que Castaneda teve e assim conduzi-lo de volta aos estados “ordinários” de consciência.

Não último, uma boa parte da cultura ‘psicadélica’ dos poetas da ‘geração beat’. Todos eles, com objetivos e resultados diferentes, experimentaram, e transmitiram-nos nas suas obras, o que significa “abrir-se à percepção de um outro mundo”, com a ajuda e utilização tanto de substâncias naturais como químicas. Estas são experiências de ‘morte e renascimento’, ou seja, caminhos de aniquilação e/ou dissolução (morte) do Ego, de estados não ordinarios de consciência, de viagens em etapas que envolvem uma ‘descida ao inferno’, e o consequente ‘encontro’ com todas as figuras do outro mundo, e a percepção da morte psíquica, para depois regressar a uma condição de ‘normalidade’, mas completamente transformada.

O próprio Grof não escapa a esta experiência; contudo, após ter experimentado o LSD em si próprio, e tendo compreendido o seu potencial destrutivo, aprofunda a sua pesquisa sobre estados de consciência não habituais porque acredita que “todo o ser humano tem o direito de evoluir para um estado de maior completude” (p.30).  S. e C. Grof dizem que “eles não se referem a entidades físicas, eventos temporais ou localizações geográficas, mas a realidades psíquicas experimentadas quando os estados de consciência são alterados” (S. e C. Grof, Beyond the Threshold, Red edizioni1988, p.83) Ele transforma então a sua experiência inicial de estados não ordinarios de consciência, ligando-a à profunda necessidade de espiritualidade quando diz “Não somos apenas máquinas biológicas e animais altamente desenvolvidos; somos também campos ilimitados de consciência que transcendem o espaço e o tempo. Neste contexto, a espiritualidade é uma dimensão inescapável da existência” (p.30).  Desenvolve um modelo de intervenção psicológica no que, noutra obra, chama “emegências espirituais”. Desde os tempos antigos que o homem sente a necessidade de transcendência, no que diz respeito ao constrangimento terreno de um corpo forçado a permanecer numa visão do mundo e das coisas circunscritas à vontade de uma razão ‘imperatriz’.

O tema da “viagem” coloca a questão de “onde”: é uma viagem “dentro de” si mesmo, portanto uma viagem psíquica, é uma questão de ir para lugares de percepção inexplorados, num perigoso, mas fascinante “meio-termo” entre o céu e a terra.  Uma viagem que pode ser “narrada” no regresso, numa língua que não só seja compreensível, e portanto aceitável, mas também transformadora.  Não se trata, portanto, de uma viagem pura sem rumo, como “os errantes do dharma”, mas sim de uma “viagem finalizada”. O objetivo é duplo: em primeiro lugar o conhecimento, mas também a transformação de si próprio. A experiência de que Virginia Salles nos fala não é exclusivamente ‘psicodélica’, não liberta tout court as imagens internas de um sujeito, por pura contemplação, não é, portanto, referível a uma filosofia ‘mística’, mas traz fundamentalmente um sujeito de volta ao reino da experimentação ‘psicologicamente vivível’. É um procedimento experiencial que, uma vez que modifica profundamente a percepção do ego do sujeito sobre o mundo, acaba por ser ‘curativo’. Assinala-nos assim a importância crucial na relação terapêutica entre a experiência transformadora e a cura.

Este tipo de abordagem dos estados não habituais de consciência, tal como proposto por Stanislav Grof, se manifesta durante as esperiencias de respiração holotrópica. Portanto, a respiração. Virginia Salles lembra-nos que “a respiração, a ‘respiração vital’, tem sido utilizada desde tempos imemoriais como um poderoso meio de acesso ao mundo interior”, que o seu objetivo final tem sido sempre o de satisfazer “aquela necessidade insaciável de espiritualidade tão intrínseca à natureza humana” e que, “através da respiração podemos induzir estados não habituais de consciência e catalisar experiências intensas que são terapêuticas e susceptíveis de causar mudanças profundas” (p.31).

A respiração acontece segundo um ritmo constante, primeiro indicador da vida num sujeito, ritmo que fala da relação inside-outide, é a respiração que “põe em movimento” o coração, outro movimento sístole-diastole… não devemos esquecer que nesta dinâmica se realiza a renovação das células. A esse proposito cita o psiquiatra e psicanalista, J. A. Gaiarsa que, nos últimos anos, soube dizer-nos que  “o primeiro momento do desenvolvimento e formação do ego é respiratório, e como “respirar” é a primeira coisa que o recém nascido faz: “o movimento respiratório começa com o nascimento, é dado com a consciência do mundo e é constituído como a primeira forma de autoconsciência”. (p.31)

Encontramos a respiração rítmica misturada com palavras sagradas (oração), mesmo no Hesychasm e em algumas disciplinas do Breath Yoga, são práticas que conduzem não só a visões místicas, mas a um estado de autêntico bem-estar ligado à percepção do momento intensamente espiritual que se está a viver. Devemos lembrar que estamos falando da forma de agir dos monges que, através de uma ascética corporal adequada, aprenderam a manter as suas “inclinações corporais” sob controlo e que, como resultado dos progressos já alcançados, passaram da ascética do corpo para a ascética da alma. Virginia Salles (p.32) diz que, segundo Grof “a evolução da consciência deve ultrapassar as fronteiras do ego e a respiração é um dos meios mais poderosos para que isto aconteça”. Ele retoma a ideia de um processo analítico que se desenrola e cresce como uma obra de arte, restituindo à análise a dignidade de um ‘lugar sagrado’ onde, como espaço uterino, que está na base da experiência emocional, é possível “tornar significativos, traduzindo-os em símbolos, os aspectos da vida interior que nunca são suficientemente pensados, expressíveis ou representáveis” (p. 163). Assim, nos temenos analíticos, o drama arquetípico na base do sofrimento do paciente é reproduzido de uma forma experiencial. Portanto, o controlo da respiração, que também produz estados não ordinarios de consciência, êxtase e transformações, é particularmente eficaz na obtenção precisamente dessas profundas reestruturações de experiências vividas, a que muitos chamam “cura”.

 

 

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